Volta

 

Rousseau e os mitos das origens: a “Idade de Ouro” e o “Bom Selvagem”

 

 Ana Luiza Silva Camarani

Universidade Estadual Paulista / Araraquara

 

No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1989), Jean-Jacques Rousseau propõe-se a examinar “o primeiro embrião da espécie” (p. 52) e ao fazê-lo, mostra-o

 

fartando-se sob um carvalho, saciando-se no primeiro riacho, encontrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto, e eis satisfeitas as suas necessidades. A terra abandonada à sua fertilidade natural e coberta de imensas florestas que o machado jamais mutilou oferece a cada passo provisões e abrigo aos animais de toda espécie. [...] As crianças, trazendo ao mundo a excelente constituição dos pais, e fortificando-a pelos mesmos exercícios que a produziram, adquirem, assim, todo vigor de que a espécie humana é capaz (1989, p. 53).

 

Essa volta para o passado, para o início da vida humana, recupera o mito da Idade de Ouro, que teria sido tratado, pela primeira vez, no século VIII a. C., pelo poeta grego Hesíodo (1967, p. 90-3), ao distinguir cinco raças humanas criadas pelos deuses: a raça de ouro, a de prata, a de bronze, a raça dos heróis e, finalmente, a de ferro. A raça de ouro, sempre jovem sob a proteção de Cronos, vivia feliz, sem preocupações, sem sofrimento, em harmonia com a natureza benevolente que os nutria; a raça de prata mostra a rápida degeneração dos homens que envelheciam rapidamente, punidos por sua arrogância; a raça de bronze é devotada à guerra e a raça dos heróis diz respeito aos semi-deuses lendários; a raça de ferro, por sua vez, traduz a plena degradação do homem, privado da juventude, moral e socialmente decadente tendo a força como sua única lei, descartando a consciência e o respeito humano.

Mas são as Metamorfoses, de Ovídio, poeta latino do século I a. C., que parecem melhor dialogar com o texto de Rousseau. No livro I, intitulado “As quatro eras”, lemos:

 

A Idade do Ouro foi a primeira época em que nutriu

Por sua própria vontade, justiça e direito; não lei.

Nenhuma punição foi necessária; o medo

Era praticamente desconhecido e as tábuas de bronze

não continham

Nenhuma ameaça legal; nenhuma multidão suplicante

Se apresentava à face dos juízes; não havia juízes.

Não havia necessidade deles. As árvores ainda

Não haviam sido cortadas e transplantadas,

para enfeitar outras plagas

Os homens sentiam-se contentes em seus lares,

e não viviam em cidades [...] (OVÍDIO, 2003, p. 11).

 

Como se vê, não havia leis nem eram necessários juízes, não existia o medo, a natureza era intacta e constituía-se no próprio lar dos homens. O poeta continua a descrever a Idade de Ouro e, ao situar a humanidade em uma eterna primavera, assinala:

 

Ninguém precisava

de soldados.

As pessoas eram pacíficas e tranqüilas;

Os anos corriam em paz. E a Terra, livre de problemas,

Sem ser ferida pela enxada ou pela relha do arado, 

produzia

Tudo o que os homens necessitavam, e esses homens

eram felizes [...] (OVÍDIO, 2003, p. 11).

 

Essa felicidade diminui e acaba por extinguir-se no decorrer das eras posteriores à Idade de Ouro; assim é que, na Idade de Prata, com o surgimento das estações do ano, do inverno, os homens passam a abrigar-se em cavernas e faz-se necessário arcar com o peso do arado para o plantio dos grãos. A Idade de Bronze mostra um ser humano com uma índole transformada, agressiva, que passa a utilizar-se de armas. Na Idade de Ferro, vê-se a liberação de todo o mal: a violência, o desejo de possuir, o solo demarcado e a terra sem vitalidade, a existência de guerras e pilhagens e a avidez pelo precioso metal, raiz de todo o mal.

É justamente essa decadência da humanidade - provocada pelo desejo de possuir, pelo solo demarcado, pela violência e a necessidade de leis - que Rousseau vai mostrar, na segunda parte de seu Discurso, ao narrar a origem da sociedade, focalizando ainda o estado de natureza, mas subordinado então a uma história:

 

O exemplo dos selvagens, que foram encontrados quase todos nesse estágio, parece confirmar que o gênero humano fora feito para assim permanecer para sempre, que esse estado é a verdadeira juventude do mundo, e que todos os progressos ulteriores foram, em aparência, outros tantos passos para a perfeição do indivíduo, mas, na verdade, para a decrepitude da espécie (1989, p. 92).

 

A degradação da humanidade, decorrente da evolução da sociedade, teria como causas primeiras o fim da igualdade entre os homens e o surgimento da propriedade:

 

enquanto só se dedicaram a trabalhos que podiam ser feitos por uma só pessoa, e a artes que não exigiam o concurso de várias mãos, eles viveram livres, sãos, bons e felizes, tanto quanto podiam ser por sua natureza, e continuaram a desfrutar entre si das comodidades de um comércio independente. Mas, a partir do momento em que o homem precisou do auxílio de outro, a partir do momento em que se aperceberam ser útil a um só possuir provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade introduziu-se, o trabalho tornou-se necessário, e as vastas florestas transformaram-se em campos vicejantes que foi preciso regar com o suor dos homens, e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinar e crescer com as colheitas (ROUSSEAU, 1989, p. 92-3).

 

Na conclusão de sua exposição, que parece encontrar o pensamento de Montaigne no ensaio intitulado “Dos canibais” quando este descreve a surpresa dos selvagens do Novo Mundo ao visitarem Rouen e observarem a fartura de alguns homens e a miséria de muitos, Rousseau esclarece:

 

Conclui-se dessa exposição que a desigualdade, sendo praticamente nula no estado de natureza, encontra sua força e seu crescimento no desenvolvimento de nossas faculdades e nos progressos do espírito humano, e enfim torna-se estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. Conclui-se ainda que a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural sempre que não ocorre na mesma proporção que a desigualdade física; distinção que determina bem o que se deve pensar, com relação a isso, do tipo de desigualdade que reina entre todos os povos policiados; pois que é manifestamente contra a lei da natureza, seja qual for a maneira como se a defina, uma criança governar um velho, um imbecil impor-se a um homem sábio, e umas poucas pessoas fartarem-se de supérfluos enquanto à multidão esfomeada falta o essencial (1989, p. 118).

 

No entanto, no século XVIII, a desigualdade é julgada necessária ao equilíbrio da sociedade e de seu bem-estar: “Longe de ser desqualificada como uma injusta sobrevivência [do século anterior], a desigualdade é proclamada fator de progresso. O bem-estar da comunidade exige a dependência de toda uma categoria de indivíduos” (MAUZI, 1960, p. 153, tradução minha). No artigo sobre a Igualdade do Dictionnaire philosophique, Voltaire escreve: “É impossível em nosso desgraçado globo que os homens que vivem em sociedade não estejam divididos em duas classes, uma de ricos que comandam, outra de pobres que servem” (Apud MAUZI, 1960, p. 153, tradução minha). Mais categórico, Turgot afirma não ser a desigualdade um mal, ao contrário, “é uma felicidade para os homens, um benefício” (Apud MAUZI, 1960, p. 153, tradução minha); d’Holbach, por sua vez, pensa que “longe de ser nociva, a desigualdade contribui para a vida e a manutenção da sociedade” (Apud MAUZI, 1960, p. 154, tradução minha). Da perspectiva desses filósofos, a desigualdade estaria inscrita na natureza, não sendo, pois, uma convenção humana; a verdadeira convenção seria uma igualdade imposta pelas leis, já que a vida complexa de uma nação conduz à divisão do trabalho, o que exige a indicação das diferenças.

Assim sendo, para fundamentar seu pensamento que segue em direção oposta ao progresso louvado por grande parte dos filósofos, Rousseau, em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, vale-se do mito como verdade universal; ou, como compreende Normand (1939), em sua “Introdução” ao Discours sur l’origine de l’inégalité, Rousseau assinala insistentemente o caráter conjetural das explicações positivas sobre o progresso baseadas em pesquisas históricas rápidas e superficiais; começando por descartar os fatos históricos mal conhecidos, “os evocará como mitos, úteis à ilustração de seu raciocínio” (NORMAND, 1939, p. 27, tradução minha).

De acordo com Eliade, o mito das origens

 

conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. Noutros termos, o mito conta como, graças aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir [...]. O mito só fala daquilo que realmente aconteceu, daquilo que se manifestou plenamente (1989, p. 12-3).

 

No Ocidente, a nostalgia de uma Idade de Ouro percorre a literatura desde Hesíodo, como vimos, passando por Platão e Ovídio, até chegar ao Paraíso dos cristãos, ao maravilhoso jardim do Éden, criado por Deus, em que o homem vivia plenamente feliz junto da natureza, na perfeição dos “começos”, a que se refere Eliade.

Esse mito do Paraíso terrestre e de seus habitantes nos tempos fabulosos que precederam a História, teria dado origem a um outro mito – o do Bom Selvagem -, decorrente da memória mitificada da imagem exemplar da humanidade da Idade de Ouro:

 

Os séculos XVI, XVII e XVIII inventaram um tipo de « bom selvagem » à medida de suas preocupações morais, políticas e sociais. Os ideólogos e os utopistas [...] invejaram sua liberdade, [...] sua existência bem-aventurada no seio da Natureza. Mas essa « invenção do selvagem » [...] era tão somente a revalorização, radicalmente secularizada, de um mito muito mais antigo : o mito do Paraíso terrestre [...] (ELIADE, 1957, p. 40, tradução minha).

 

Eliade ainda nos esclarece de um detalhe que “nos surpreende imediatamente: o ‘bom selvagem’ descrito pelos navegantes e louvado pelos ideólogos pertence, em muitos casos, a uma sociedade de canibais” (1957, p. 42-3, tradução minha). Os viajantes não fazem disso um mistério; e é inspirado em um desses relatos que Montaigne escreve seu ensaio « Dos canibais », em que lemos:

 

A essa gente chamamos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o epíteto. [...] Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva (1968, p. 284).

 

O que importa, como ainda explica Eliade,

 

é que o Renascimento, como a Idade Média e como a Antigüidade têm a lembrança de um tempo mítico em que o homem era bom, perfeito e feliz. E acreditou-se reencontrar nos selvagens que se acabava de descobrir os contemporâneos dessa época mítica primordial (1957, p. 44, tradução minha).

 

O mito do bom selvagem segue, assim, sua carreira em todas as utopias e ideologias ocidentais até Jean-Jacques Rousseau, o que mostra não ter o Ocidente renunciado ao antigo sonho da busca pelo paraíso terrestre, da volta à idade de ouro da humanidade.

Em seus textos literários, que prefiguram os temas maiores do Romantismo, entre eles o sentimento pela natureza, Rousseau deixa entrever sua nostalgia pela Idade de Ouro, seu desejo utópico de recriar o Paraíso perdido.

A paz e o repouso junto da natureza, longe da sociedade e de seus conflitos, refletiria o ideal de felicidade de Rousseau, sua concepção da Idade de Ouro; assim é que, em Júlia ou a Nova Heloísa, romance publicado em 1761, podemos acompanhar o apaziguamento da alma de Saint-Preux ao caminhar pelas montanhas do Valais:

 

Foi lá que desvendei, sensivelmente, na pureza do ar em que me encontrava, a verdadeira causa da transformação de meu humor e da volta desta paz interior que perdera havia tanto tempo. [...] Parece que, elevando-nos acima da morada dos homens, lá deixamos todos os sentimentos baixos e terrestres e que, à medida que nos aproximamos das regiões etéreas, a alma adquire alguma coisa de sua inalterável pureza (1994, p. 82-3).

 

A natureza montanhosa dá lugar a campos e bosques em seu último livro, Os devaneios do caminhante solitário, obra redigida de 1776 a 1778, em que Rousseau descreve as lembranças do curto período em que viveu, isolado dos homens, refugiado na natureza que ele próprio qualifica como selvagem e romântica: “De todas as habitações em que morei (e tive algumas encantadoras), nenhuma me tornou tão verdadeiramente feliz e me deixou tão terna nostalgia quanto a Ilha de Saint-Pierre no centro do lago de Bienne” (1986, p. 71). A vida rústica e bucólica, feita de simplicidade e igualdade, é a representação do paraíso.

Rousseau não se atém, no entanto, a tentativas de reencontrar o Paraíso perdido no espaço da natureza intocada; ele projeta sua imaginação em direção a uma utopia ao criar o Eliseu, o jardim de Clarens, concebido artificialmente como um pedaço da natureza que ressuscita a exuberância, a liberdade, a vida espontânea e pura de um Éden. Saint-Preux descreve-o em uma de suas cartas:

 

Ao entrar nesse pretenso pomar, senti-me atingido por uma agradável sensação de frescor que obscuras sombras, uma verdura animada e viva, flores esparsas por todos os lados, um murmúrio de água corrente e o canto de mil pássaros trouxeram à minha imaginação pelo menos tanto quanto aos meus sentidos; mas, ao mesmo tempo, julguei ver o lugar mais selvagem, mais solitário da natureza [...] (1994, p. 410).

 

A solidão, outro elemento caro à literatura do Romantismo, une-se aqui à concepção de jardim selvagem, sem caminhos traçados nem canteiros organizados, ou seja, um jardim romântico, por oposição às linhas bem definidas da arquitetura clássica dos jardins franceses. No Eliseu, a arte responsável pela criação desse espaço paradisíaco permanece invisível e não é deteriorada por nenhuma contaminação social; esse jardim caracteriza-se, na verdade, como um refúgio, como uma ilha de paz, onde todos os sentimentos se depuram. O sonho da solidão ou da intimidade em um refúgio é um dos muitos prolongamentos do mito da Idade de Ouro.

Vê-se, assim, que o pensamento do filósofo genebrino é transportado para suas obras literárias: a crítica à desigualdade entre os homens, o desgosto do convívio social, leva-o à busca da solidão e do repouso ao pé da natureza e ao sonho de um tempo passado e feliz – características que contribuem para torná-lo, na França, o grande predecessor do Romantismo.

 

 

Referências bibliográficas

 

ELIADE, Mircea. Mythes, rêves et mystères. Paris : Gallimard, 1957. (Idées, 271).

 

ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Tradução de Manuela Torres. Rio de Janeiro: Edições 70, 1989. (Perspectivas do homem, 19).

 

HESIODE. Théogonie - Les travaux et les jours – Le bouclier. Paris: Les Belles Lettres, 1967. (Universités de France).

 

MAUZI, Robert. L’idée du bonheur dans la littérature et la pensée françaises au XVIIIe siècle. Paris: Armand Colin, 1967.

 

MONTAIGNE. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Globo, v. 1, 1968.

 

NORMAND, Jean. Notice. Discours sur l’origine de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours. Lettre sur les spectacles. Paris: Larousse, 1939. (Classiques Larousse).

 

OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução: Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003.

 

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. Brasília: Universidade de Brasília, São Paulo: HUCITEC, 1986.

 

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Comentários: Jean-François BRAUNSTEIN. Tradução: Iracema Gomes Soares e Maria Cristina Roveri Nagle. Brasília: Universidade de Brasília; São Paulo: Ática, 1989.

 

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Júlia ou a Nova Heloísa. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: HUCITEC, Campinas: UNICAMP, 1994.

 

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