Emílio ou Da Educação – um discurso pedagógico ou político:
o conceito de cidadania em Rousseau

Paulo Cesar Cedran
cedran@matao.sp.gov.br
mestre em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista – FCL
doutorando em Educação Escolar pela FCL
Secretário de Educação e Cultura do Município de Matão

O objetivo do presente artigo é destacar em que sentido a obra máxima de Rousseau no campo educacional inclui-se num universo de produção intelectual, cuja preocupação transcende o ato pedagógico, formativo, caracterizado pelo processo educacional do Emílio, encontrando-se em sua confluência com a formação política proposta por Rousseau no Do Contrato Social. Nossa discussão gira em torno da correlação dessas duas obras, tentando resgatar um conceito de cidadania, que poderíamos ler, nas entrelinhas do discurso de Rousseau, como possibilidade de reflexão, para não dizer, superação do impasse instaurado por Rousseau na sua concepção naturalística de homem e sociedade.

Se o homem é essencialmente, naturalmente bom, e a vivência social civilizatória o corromperia, como lidar com a possibilidade de superar esse encadeamento conceitual?

Tentaremos buscar essa possibilidade em uma concepção de cidadania que emerge na obra rousseauneana, buscando os indícios desse conceito em uma formação e estruturação intelectual.

Os críticos mais ferrenhos de sua obra, sempre procuram descaracterizar o percurso formativo do Emílio, dizendo que lhe fora educado ausente de uma vivência social e que, portanto, Rousseau jamais conseguirá incluí-lo de forma concreta no mundo social, considerando o processo educativo nos moldes propostos por Rousseau.

Bento de Andrade Filho, criticando o percurso metodológico da Educação do Emílio, diz:- "Educador completamente falido, numa experiência que não conseguiu prolongar além de um ano (como preceptor dos sobrinhos dos abades Mably e Condillac) pode-se considerar por suas publicações e, especialmente, por sua novela educativa "Emílio", o mais genial filósofo educacional do passado.

A par dessa clarividência absolutamente invulgar, Rousseau incorre em sua obra, nas mais estranhas e chocantes incoerências, as quais só não anularam o mérito de quanto produziu por ser êsse (sic) mérito grande demais, indestrutível sob o aspecto do conjunto.

Assim a idéia central da educação rousseaunista é a "conformidade com a natureza":

" E como o autor expõe tal idéia? Na situação menos natural que imaginar se possa, ou seja, num isolamento completo do educando, fazendo o herói do seu romance viver e educar-se, sem pais, sem família, longe de todo e qualquer ‘convívio social’ " ( ANDRADE FILHO, 1953, pág. 182)

Nesta longa citação, Andrade Filho desmonta o argumento metodológico de Rousseau, construindo sua crítica no sentido de que o isolamento completo para a educação do Emílio não permitiria que o mesmo fizesse o contraponto moral, necessário para combater os males sociais. Ora, o que Andrade Filho esqueceu de considerar é que esse refúgio, esse isolamento proposto por Rousseau, significa uma escolha metodológica que lida num percurso intelectual, que Rousseau procurou coerentemente manter, ou seja, a idéia de que o homem natural não pode ser confundido com o homem da natureza, contrariamente ao que dizia Thomas Hobbes não seria aquele onde estaria mais exarcebado o sentido de selvageria, em contraposição ao homem civilizado, que Rousseau irá criticar em seu "Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens". Como diz a Enciclopédia Histórica do Pensamento:- 

"No Contrato Social, Rousseau trata do homem civil, do cidadão, sem nunca perder de vista o homem natural. Este, porém, não pode ser confundido com o homem da natureza, cuja história hipotética Rousseau desenvolve no discurso sobre a Desigualdade. O homem natural, uma espécie de suplemento do homem da natureza, na medida em que o ultrapassa, permanece a essência do homem civil, mesmo quando este é ofuscado pela corrupção. O homem natural é que fundamenta, por exemplo, a primeira fase da educação de Emílio (personagem – título da obra pedagógica de Rousseau), que é afastado do convívio social até os 15 anos. "O homem nasce bom, a sociedade o corrompe", diz Rousseau; mas a pedagogia e uma sociedade justa, nos termos do Contrato, por exemplo, podem corrigir isso, como propõe o Emílio". –(HISTÓRIA DO PENSAMENTO, 1988, pág. 404).

Esta afirmação pode parecer fácil de ser percebida em se tratando de um processo de análise global da obra de Rousseau. A questão maior seria a de identificar este processo no contexto de cada obra de Rousseau, ou seja, entender que as considerações de Rousseau no Emílio, nos dá a impressão de serem caudatárias de um desencanto total, que não apresentaria alternativa em relação à civilização. 

Logo no primeiro livro do Emílio, diz Rousseau:

"Tudo é certo em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem". 

E em seguida complementa:

"Os preconceitos, a autoridade, a necessidade, o exemplo, todas as instituições sociais em que nos achamos submersos abafariam nele a natureza e nada poriam no lugar dela".– (ROUSSEAU, 1995, p. 09) .

Esse trecho deixa a impressão de que o processo civilizador, seria o eterno contraponto, e negação à natureza do próprio homem, como que, contraditoriamente, utilizando-se desse mesmo processo buscava-se preservar a humanidade do homem.

Atentando para essa possibilidade, Rousseau complementa:

"Nascemos fracos, precisamos de forças, nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é- nos dado pela educação. Essa educação nos vem da natureza ou dos homens ou das coisas- (ROUSSEAU, 1995, P.10)

Rousseau, exemplificando estes três estados da educação, lembra que precisamos de três espécies de mestres. Ele lembra que somos senhores apenas da educação dos homens e ainda com restrições. Retomando a contraposição de homem que ele considera, diz:

"O homem natural é tudo para ele; é a unidade numérica, é o absoluto total, que não tem relação senão consigo mesmo ou com seu semelhante. O homem civil não passa de uma unidade fracionária presa ao denominador e cujo valor está em relação com o todo, que é o corpo social" . ( ROUSSEAU, 1995 p 13.)

Essa contraposição nos deixa a sensação de que o estado civil fracionaria o homem e, portanto, geraria uma forma de individualismo que Rousseau, contrapondo-se ao liberalismo do séc. XVIII, irá diferenciar, ou seja, esse homem individual, traria em sai as condições de poder Ter em posse de si, o exercício de sua vontade social, que caracterizaria uma primeira noção de cidadania. Não seria um individualismo no sentido de fragmentar e exarcebar as diferenças sociais, mas um individualismo que permitiria a formação de um todo social, de uma Polis (Estado) coerente com o exercício de sua vontade social.

Como diz Freitag:

"Os filósofos iluministas do século XVIII, têm em comum com os filósofos gregos a defesa do indivíduo, da razão e da universalidade da natureza humana.Cada indivíduo é um representante singular da espécie humana, que potencialmente é dotado de razão". (FREITAG, 1996, p. 19. )

Esse sentido apresentado por Freitag mostra que haveria uma diferença entre este e o individualismo de Locke, pois como diz Lourival Gomes Machado:

"Em Locke (Rousseau), contrariamente, aproveitou muito das formulações destinadas a preservar a pessoa livre, mas soube ver o defeito, em contrapartida, desse individualismo que prejudicava a exata definição da realidade estatal". ( – MACHADO, 1987, p.9-10.)

Neste contexto ao realizar a crítica do individualismo na sociedade civil, Rousseau descreve este processo sempre alertando para o sentido que a instituição pública assumiu no século XVIII, para tanto, ele afirma no Emílio:

"Quereis ter uma idéia de educação pública, lede a República de Platão". ( ROUSSEAU, 1995, p. 14.)

Com esta afirmação e determinação Rousseau concluirá que:

"A instituição pública não existe mais, e não pode mais existir, porque não há mais pátria, não pode haver cidadãos".
( ROUSSEAU, 1995, p. 14.)

Quando Rousseau identificar o conceito de instituição pública como derivado de uma nação de pátria, ele estaria novamente voltando aos gregos, a Platão e Aristóteles, para definir um projeto educacional que nasça embasado num Estado (Polis) onde a educação, consequentemente, teria um caráter de educação para a cidadania, uma vez que ele lembra que o Emílio, deve Ter em seu processo de formação uma dimensão moral sólida. Como diz Freitag:

"A moralidade sempre envolve uma dimensão social, como foi sublinhado pelo sociólogo francês (Durkheim). Emílio não teria consciência moral se permanecesse ‘no estado de natureza’, isolado dos seus pares. Apesar de suas reservas contra a sociedade, Rousseau tinha pleno conhecimento do caráter (também) social da consciência moral de seu discípulo. E quando dizemos social, admitimos a ensinabilidade,que por sua vez pressupõe a faculdade de aprendizagem do educando". (FREITAG,1996, p. 49.) 

Poderíamos dizer, portanto, que Rousseau parte de uma dupla distinção formativa do homem, mas que esse projeto de formação política, que a educação poderia encabeçar, já estaria na formação educativa engendrada no Emílio.

Agora entendemos a afirmação de que não existiria mais a instituição pública, uma vez que para Rousseau, ela necessariamente passaria por uma definição de educação cívica. Essa educação cívica, seria um dos substratos necessários à formação do cidadão. Como diz Salinas Fortes:

"Fazendo uma severa crítica ao cristianismo, tanto por sua intolerância, quanto por ser uma religião funesta ao espírito cívico (já que divide o homem entre sua pátria real um outro mundo espiritual), o filósofo propõe a idéia de um culto religioso à própria pátria cujos artigos de fé – ‘não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade’- seriam fiados pelo soberano e teriam como principal objetivo sacramentar o pacto social". SALINAS FORTES, 1996, P. 92.

O que Salinas Fortes identifica em Rousseau é que a idéia de uma religião civil, seria pois a base de uma formação moral e, por conseguinte, de um aperfeiçoamento da educação para a cidadania.

Podemos, segundo Salinas Fortes, dizer que no itinerário intelectual o discurso de 1754, marca o início de um processo onde a passagem, do Estado de natureza para o Estado Civil é identificado no processo de apropriação privada dos meios de produção, conduzindo inevitavelmente ao que Hobbes chama de Estado de Guerra, que ameaçaria a própria sobrevivência do homem.

Nesse sentido, a alternativa, proposta por Rousseau é identificada nas páginas do Emílio, quando ele propõe uma alternativa pedagógica e para o contrato, uma alternativa política, sem contudo deixar de permear essas duas alternativas em ambas as obras.

Diante desta dupla solicitação, Rousseau diferentemente de Voltaire acreditava que o círculo vicioso instituído pela desigualdade poderia ser rompido, com a derrubada das velhas instituições. Como diz Durant:

"Aqui estava o velho círculo vicioso; os homens formam instituições, e instituições formam homens; em que ponto a mudança pode se meter nesse círculo? Voltaire e os liberais achavam que o intelecto podia romper o círculo educando e modificando os homens, lenta e pacificamente; Rousseau e os radicais achavam que o círculo só poderia ser rompido por uma ação instintiva e apaixonada que derrubasse as velhas instituições e construísse, segundo os ditados do coração, outras novas, sob as quais reinariam a liberdade, a igualdade e a fraternidade" (DURANT, 1996.)

Esse radicalismo de Rousseau, permitiu contudo que o próprio conceito de pedagogia ganhasse um sentido político, até então desconsiderado. Como diz Luzuriaga:
"Mas, na segunda metade do século, muda o clima espiritual e se orienta no sentido de uma educação do tipo emocional, naturalista e revolucionária, cujo representante terreno intelectual é Rousseau e, no político, a Revolução Francesa, que assenta as bases da educação nacional democrática". (LUZURIAGA, 1966, p.111-112)

Esse sentido de Educação que a Revolução Francesa, assimila de Rousseau, propõe levar o homem na própria definição de Luzuriaga à plenitude de sua máxima, ao desenvolvimento máximo do ser humano reconhecendo o valor do indivíduo como objeto supremo.

Esse homem que Rousseau pretende terá a plenitude, a partir do momento que ele iniciar o seu processo de regeneração, daí a proposta pedagógica, educacional do Emílio, por um processo de reconstrução individual e social. Nesse contexto diz Chauí:

"O homem para Rousseau, não se regenera pela destruição da sociedade e com o retorno à vida no meio das florestas. Embora privada, no estado social, de muitas vantagens da natureza, ele adquire outra:- capacidade de desenvolver-se mais rapidamente, ampliação dos horizontes intelectuais, enobrecimento dos sentidos e elevação total da alma (...). O propósito visado por Rousseau é combater os abusos e não repudiar os mais altos valores humanos". (CHAUÍ, 1987, p. XIII, XIV.)

Essa regeneração abarca o que Rousseau propõe com relação à uma educação para a cidadania, nos termos que considere, o desenvolvimento das potencialidades naturais da criança e o seu afastamento dos males sociais, como nos lembra a própria Chauí.

Esse afastamento não significa de forma alguma o isolamento em si, mas sim, a instauração de estágios no processo pedagógico que considere as necessidades individuais do desenvolvimento.

Rousseau propõe portanto, uma educação progressiva e positiva, que podemos definir no seguinte processo:- 

"... o processo educativo preconizado por Rousseau é negativo, limitando-se àquilo que não deve ser feito. A educação positiva deve iniciar-se quando a criança adquire consciência de suas relações com os semelhantes. Passa-se, assim, do terreno da pedagogia, propriamente dito, aos domínios da teoria da sociedade e da organização política". (CHAUI, 1987 pág. XVI)

Nesse processo percebemos a passagem do terreno propriamente dito da pedagogia, para o terreno da política.

Eis aí o outro substrato necessário à construção de seu conceito de cidadania, dado por um sentido de formação individual com fins social.

Entra portanto em jogo a questão do contexto social, em que

"As possibilidades de desigualdade e injustiça entre os cidadãos, são evitadas mediante a ‘total alienação de cada associado, com todos os seus direitos, em benefício da comunidade’.

Não sendo total essa alienação, o indivíduo ficará exposto à dominação pelos outros. Em caso contrário, o cidadão não obedece a interesses de apenas um setor de cada conjunto social, mas à vontade geral, que é ‘uma força real, superior à ação de qualquer vontade particular’. Essa obediência jamais suscita qualquer apreensão, pois a vontade geral, segundo Rousseau, é sempre dirigida para o bem comum". (CHAUI, 1987, p. XVIII)

Essa retomada à superação da desigualdade, não se daria mais nos termos de um retorno ao estado de natureza, mas pela própria condição de ser do cidadão, que seria portanto – o indivíduo, que aceitando a vontade geral passa a pertencer a um corpo moral coletivo, adquirindo também a liberdade de obedecer a uma lei que ele prescreve a si mesmo.

Nesse sentido, diz Valdemarin:

"Nos termos deste pacto, o homem não pode mais ser concebido como indivíduo fora da sociedade, tornando-se ‘parte indivisível do todo’, numa união que gera a vontade geral. O ponto central dessa formulação é que o termo soberano se aplica ao sujeito do poder legítimo e não a indivíduos particulares. Essa pessoa pública (cidade ou república) é composta por homens (cidadãos) que partilham tanto dos riscos como das vantagens de um objetivo comum e que, individualmente, detêm uma parcela da autoridade soberana, porque dela participam em igualdade de condições. Assim colocado, o ‘governo’ fica sendo somente uma instância administrativa, detentora do poder subordinado à vontade coletiva" ( VALDEMARIN, 2000, p. 38)

Essa vontade geral portanto realmente poderia ser vivida e exercida em nome da soberania, através das leis, o mesmo lembrando que:

"A lei estabelecida pela vontade geral não garante aos homens igualdade em termos de riqueza e poder, mas iguala-os perante os outros e o Estado, regularmentando para que as coisas ocorram de acordo com as regras aceitas, impedindo a violência de um homem sobre o outro e criando as condições necessárias para a existência da liberdade e da igualdade" (VALDEMARIN, 2000, p. 41)

Diante desse fato, podemos dizer que a educação para a cidadania, corresponderia também a uma concepção de criança diversa da existente, ou seja, vê-la de forma singular, como diz Ghiraldelli Jr:

"Se Locke trabalha com o objetivo de estabelecer as condições de liberdade dos homens, Montagne, antes dele, quer que os adultos façam da criança um homem – o que já significa considerar que ela não é um ‘adulto em miniatura’- e Rousseau, depois dele, quer que os adultos deixem a criança ser criança, de modo que a infância aconteça, pois ela é o que há de melhor nos homens". ( GHIRALDELLI, JR, 2000, p. 15).

Nesse sentido as críticas de Rousseau ao sistema educativo tornam-se pertinentes, pois confundiu-se o sentido de formação do educando, fato este que gerou uma educação para a obediência e não para a cidadania. Rousseau propõe que a educação pública deve ter aguçado o sentido de patriotismo e não algo particular. Como diz Paul Arbousse Bastide:

"Assim como a virtude supõe o patriotismo, êste (sic) também supõe uma educação pública e não particular (...). A educação deve ensinar a amar a pátria (...), as crianças devem ser educadas em comum, graças a um pacto social da educação pública que compromete o conjunto dos pais".( ARBOUSSE – BASTIDE, 1958, p. 281).

Esta valorização dada por Rousseau à educação pública pode ser melhor elucidada quando no verbete sobre a Economia Política o próprio Rousseau diz:

"A educação pública, sob regras prescritas pelo govêrno (sic) e sob a responsabilidade de magistrados designados pelo soberano, constitui, pois, uma máximas fundamentais do govêrno (sic) popular legítimo. Se as crianças são educadas em comum no seio da igualdade, se tiverem imbuídas das leis do Estado e das máximas da vontade geral, se forem instruídas no sentido de respeitá-las acima de tôdas (sic) as coisas, se estiverem cercadas de exemplos e de objetos que incessantemente lhes dizem da terna mãe que os alimentou, do amor que têm por êles (sic) dos bens inestimáveis que recebem dela e da retribuição que lhe devem, não dividemos que dêsse (sic) modo aprendam a se querer mùtuamente (sic) como irmãos a não querer jamais senão o que a sociedade deseja, a substituir o estéril e vão palavrório dos sofistas pelas ações de homens e de cidadãos a se tornarem um dia os defensores e os pais da pátria de quem por tanto tempo foram filhos". (ROUSSEAU, 1958, p. 301)

É importante notar que para Rousseau essa educação consistirá no que nós chamamos de um terceiro sustentáculo de formação para a cidadania, ou seja, ela forneceria o amalgama necessário à coesão do Estado.

Portanto, chegamos ao seguinte dilema, fazer o homem ou o cidadão, como diz Arroyo:

"Rousseau, no seu Emílio, ou da educação, percebia esse dilema da pedagogia – ‘ É necessário escolher entre formar o homem ou o cidadão’. Em sua obra recomendará o primeiro, formar o homem natural, que está na criança e não formar o homem social, o cidadão". (ARROYO, 2000 p. 67

Na verdade acreditamos que seria praticamente impossível separar a formação do homem e a formação para a cidadania em Rousseau, uma vez que como diz Freitag:

"Para Rousseau a educação tinha uma conotação essencialmente política. A formação do Emílio é uma educação para a liberdade e o exercício da cidadania".(FREITAG,1996, p. 88)

Mesmo Rousseau dizendo que não se pode fazer os dois ao mesmo tempo, no sentido de educação para a cidadania, o próprio processo educativo do Emílio é uma prova dessa possibilidade de leitura.

Salinas Fortes aponta que será nesta disjunção que Rousseau permitirá a solução do dilema , quando diz:

"É na perspectiva dessa disjunção - que propõe soluções apropriadas para momentos e situações distintas que o problema da realização do ideal político ou do ideal pedagógico rousseauneano ganha sua localização adequada. E é, por outro lado, o quadro histórico fornecido pelo segundo Discurso que fornece o solo real sobre o qual se desenha a alternativa".( SALINAS FORTES, 1996, p. 93-94)

Será pois no conceito de educação negativa que perceberemos o processo formativo proposto por Rousseau, dirá Salinas Fortes, sobre o Emílio:

"Toda sua educação, caracterizada como ‘educação negativa’, iria mantê-la imune aos vícios circundantes. É bem-sucedida a educação que conseguiu fazer o indivíduo em formação acompanhar a ‘marcha da natureza’, reprimida pela marcha enlouquecida das educações vigentes. Além de ser um tratado sobre a bondade natural do homem, ao reconstruir as etapas naturais de formação do indivíduo humano, assim como o Discurso o fez em relação à espécie". (SALINAS FORTES, 1996, p. 94-95)

Mas Arroyo lembra que a pedagogia moderna deturpou o sentido de educação para a cidadania, proposta por Rousseau, quando se busca identificar a cidadania na servidão civil pura e simplesmente, diz Arroyo:

"Já que o ideal da servidão civil é inevitável, tentemos vacinar a criança contra essa condição, façamos da escola um experimento de autêntico convívio natural, harmonioso, cívico e democrático".(ARROYO, 2000, p. 67)

Como alternativa acreditamos que devemos, como nos lembra Arroyo, olharmos criticamente para o capitalismo e buscarmos uma cidadania que não seja outorgada, mas conquistada, não consentida. Nesse contexto, as páginas finais do Emílio, quando este inicia viagens dentro de um projeto educacional para se conhecer países e sistemas de governo, dirá Rousseau:-

"Isto suposto, para definir os termos de que precisamos, observaremos que em lugar da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação forma um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto as vozes Assembléia. (...) Quanto aos membros eles próprios, adquirem a denominação de povo coletivamente e, em particular, de cidadãos, como membros da cidade ou participantes da autoridade soberana, e súditos, como submetidos à mesma autoridade".(ROUSSEAU, 1995, p. 555-556.

A propósito das viagens do Emílio, dirá Freitag:

"A viagem tem, portanto, uma finalidade específica no aprendizado: comparar as formas de governo de um país para outro. A permanência em um país ou a viagem para outro estão vinculadas a um princípio de cidadania: concordar com o sistema de governo vigente.(...) O Emílio educando terá a liberdade de descobrir, compreender e organizar o seu mundo por conta própria". (FREITAG,1996, p. 72)

Neste contexto percebemos que a formação pedagógica do Emílio está diretamente ligada a um processo de formação política com vistas a educação para a cidadania, mesmo sabendo que

"A certeza existente em meio a tanta dificuldade permanece sendo a necessidade de uma educação coerente com os princípios políticos que se pretendem realizar e seus desdobramento em práticas compreensíveis nas diferentes etapas do desenvolvimento humano".(VALDEMARIN, 2000, p. 52).

Precisamos mais do que nunca, resgatar outros aspectos em Rousseau, como diz Nascimento:

"... é bom não nos esquecermos de que existe um outro Rousseau, que teria muito a dizer aos povos, não em épocas de grandes transtornos e convulsões sociais, como ocorre nas revoluções, mas em tempos normais, ou pelo menos no vigor das leis"( NASCIMENTO, 1991,P. 199)

Mesmo assim, não podemos esquecer que o maior mérito de Rousseau reside no fato de fazer da educação, como diz Salinas Fortes, uma possibilidade pedagógica de livrar o indivíduo da corrupção circundante, possibilidade esta, tão necessária em tempos de educação neoliberal, onde o amor à pátria se dilui numa pseudo-globalidade dos povos e a educação pública, tão defendida por Rousseau, torna-se sinônimo de ineficiência diante dos pressupostos economistas que passarem a predominar na área educacional.

Se acreditamos ser possível se formar o homem e o cidadão nos termos propostos por Rousseau, refletir nosso momento educacional à luz de sua obra, nos intriga incessantemente a pensar.
 

Matão, Janeiro 2002.
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MACHADO, Lourival Gomes- Introdução in Os Pensadores, Jean-Jacques Rousseau, 
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