SUMÁRIO

 

PREFÁCIO – Juraci Dórea

INTRODUÇÃO – Maria Eugenia Boaventura

1. FESTAS RELIGIOSAS 

lavagem da igreja
festa de senhora santana
festa de antigamente

2. A FEIRA DE ONTEM

boêmia
a cidade do silêncio e da melancolia
a cidade dormindo
a season cor do sol
árvores, crianças beleza, alegria...
cantiga de ninar
viagens
comércio
a velha e a nova cidadde
a paisagem urbana e o homem

3. CARTAS DA SERRA

            I
            II
            III
            IV

4. PROPOSTA DE HISTÓRIA

via-láctea da esperança
museu do vaqueiro
sombra iluminada
museu do couro
vamos fazer regata na lagoa

5. DESENHO DE SERTÃO

alimentação nordestina
no silêncio do nordeste
respeitosas ruínas do passado pastoril
entre alecrins e candeiais floridos
freguesias centenárias
sob o ditame rude de almajesto
a boca do tabaréu no foro
é preciso perder-se a mística do capim
folclore no caminho
velhos cruzeiros

6. PAISAGENS PESSOAIS

o solar da soledade
paisagem e leitura
paisagem e serenidade
arquivo e confidências
paisagens

7. “MUSEU IMAGINÁRIO”

8. AGRADECIMENTOS 

I

 

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214

 


UMA CERTA FEIRA

 

[...] o sentido histórico compreende uma percepção não só do passado do passado mas da sua presença [...] Esse sentido histórico, que é um sentido do intemporal assim como do temporal,  e do intemporal e do temporal juntos, é o que torna um escritor tradicional. E é, ao mesmo tempo, o que torna um escritor mais agudamente consciente do seu lugar no tempo, da sua própria contemporaneidade.

T.S. Eliot. “A tradição e o talento individual”

 

 

 

 

 

 

            No meio dos guardados do escritor Eurico Alves Boaventura, numa antiga arca de vinhático, tampa com fundo desenhada em dourado e azul desmaiado, recolhi estes textos, cuja montagem final resultará para muitos numa história proustiana de Feira de Santana. Neles vem à tona a sofisticada, a imponente e a urbanizada cidade de poucas décadas atrás, preservada pela narrativa fluente de tom afetivo do poeta, diferente da cidade desfigurada de hoje.

            Para o antigo visitante, como eu, que conheceu um pedaço, mesmo pequeno, destes espaços quase oníricos, evocados por pena de historiador e de ficcionista, a perplexidade, diante da avassaladora decadência da sua fisionomia urbana, talvez seja maior do que para o seu habitual morador. Daí o impulso primordial para a organização deste livro.

            Dessa desfiguração, não surgiu, por enquanto, quase nada de original ou interessante que atraia a visita do turista. A sua curiosa e antiga feira livre, realizada sempre e apenas às segunda-feiras, foi substituída pelo comércio caótico e permanente, empanando o majestoso traçado das suas principais avenidas. O progresso equivocado e desordenado parece ter abalado o outrora famoso orgulho feirense.

            Não conheço nenhuma narrativa que possa prestar-se tão bem para a representação da Feira como estes textos de Eurico, marcados por uma relação intensa de contemporaneidade com o vivido historicamente. A atualidade e o pioneirismo dos temas desta antologia revelam-se impressionantes: ecologia, urbanismo, preservação do patrimônio arquitetônico e cultural, educação dos menores carentes, alimentação, etc. Assuntos variados, na moda, e preocupação obsessiva da reflexão do escritor, desde os anos 30. Melhor, questões levantadas e adaptadas à realidade da sua terra. Escritos de juventude e de maturidade se articulam por um traço comum: a paixão pelo homem nordestino e sua paisagem.

            Antes, Eurico historiador criara uma espécie de saga sobre a vida do interior sertanejo, no seu comovente livro Fidalgos e vaqueiros (Salvador, Ufba, 1989). Agora, ainda que de modo fragmentário, recria a sua cidade num retrato de corpo inteiro. Involuntariamente mistura história da vida privada com história das mentalidades e rememora o cotidiano, os costumes, as festas religiosas, as relações comerciais, as viagens, trazendo à tona as marcas típicas da Feira do passado.

            Os textos publicados em jornais e revistas ou inéditos recolhidos foram por mim agrupados em blocos conforme afinidade temática. “Festas religiosas” descreve a antiga solenidade desses eventos e a importância que se dava ao animado e prazeroso protocolo de preparação. Em “A Feira de ontem”, o escritor flagra a sua terra em diferentes aspectos: a vida noturna ocupa os primeiros textos, onde o cronista surge ora embevecido, ora entediado com o ritmo manso da cidade. Minuciosamente, numa escrita ágil e atraente, reconstitui o cotidiano sócio-econômico e a pacata vida doméstica com total disponibilidade para se embalar as crianças ao som de velhas cantigas. O entusiasmo contagia o leitor e provoca o desejo de conhecer os lugares por onde o autor passou, de realizar os passeios, de participar das conversas ou de freqüentar as mesmas festas. Note-se que o processo de valorização da tradição, posto em prática pelo escritor, não descarta o aplauso caloroso às novidades e à modernização civilizadas, trazidas pelo progresso não predatório.

            “Cartas da serra” e “Proposta de história” são blocos complementares. No primeiro, tem-se a intervenção do Eurico jornalista, lembrando ao prefeito eleito, seu velho amigo, algumas medidas simples e costumeiramente desprezadas para o embelezamento da cidade, como a criação de jardins e praças a serem formadas com plantas rústicas da região; apontando a necessidade da criação de um Arquivo Público Municipal, ou do Museu do Motorista, ou ainda de um Museu de Arte Popular. A preocupação constante com a preservação do imaginário, da história e da paisagem do sertão transforma-se em proposta concreta, detalhada, sob a forma de documento público como a “Carta à Câmara de Vereadores de Feira de Santana”, em torno da criação do Museu do Vaqueiro. Uma semente do futuro Museu Regional, criado por Assis Chateaubriand, do qual Eurico foi um grande entusiasta, ou mesmo da Casa do Sertão da Universidade, que o escritor infelizmente não alcançou. Nos pormenores, percebe-se o olhar atento do homem erudito e atualizado, mas que também se interessa pelo bem estar da sua gente. Apoia por exemplo o beneficiamento da Lagoa de São José das Itapororocas, em artigo na imprensa local e sugere ao poder municipal a criação de uma área de lazer para a população da redondeza, muitas vezes relegada ao esquecimento. Saindo da área da cultura, aparece o intelectual socialmente envolvido com a situação do menor abandonado, que tão bem conhecia em decorrência de seu trabalho como Juiz de Direito. Problema ainda sem solução nos grandes conglomerados urbanos e  portanto mais um assunto do momento tratado também pelo Eurico conferencista.

            No conjunto “Desenho de sertão”, esboça o mapa antropológico, social, etnográfico, ecológico da sua região. A alimentação, a destruição dos velhos casarões rurais, o desmatamento, o abandono da arquitetura religiosa, o misticismo, a linguagem do tabaréu englobam os tópicos explorados em escritos de diferentes matizes e épocas.

            Fechando esta antologia muito pessoal do escritor feirense, reuni fragmentos intimistas produzidos por um homem culto, inconformado com a realidade indomável, mas perfeitamente sereno perante suas opções de cidadão, de sonhador inveterado, de apaixonado pela paisagem e pelo povo do seu sertão. São digressões provocadas pela lembrança ou pelo reencontro com o seu meio, já que por força da profissão vivia distante de Feira:

Não quero outro horizonte, não pretendo outras linhas que não as que encontrei, na meninice e na mocidade. E agradeço a Deus o presente que me deu.

 

           

            Dentro de cada bloco, os textos estão dispostos por ordem cronológica,  acompanhados de notas, na sua maioria, criadas pela organizadora e algumas outras do autor indicativas dos livros consultados foram ampliadas, conferidas e aprimoradas. Na medida do possível, procurei registrar a procedência das citações dos textos literários. Para tanto, a bibliografia manejada neste e nos demais volumes do autor, por mim organizados, foram localizados na Biblioteca do escritor. Da mesma forma aconteceu com as ilustrações. A princípio, pensei em estender ao máximo a coleta do material, pesquisando em diferentes bibliotecas e arquivos baianos. Todavia, a idéia de restringir-me exclusivamente ao acervo deixado por Eurico ganhou terreno, na medida em que despontava um novo perfil do intelectual, o do escritor-colecionador, até então, desconhecido do público.

            Caberá, mais tarde, a futuros estudiosos da terra a pesquisa para ampliação deste trabalho. Resta torcer para que a obra de Eurico possa inspirar o poder público local, ao que parece visivelmente ausente da cidade há décadas, na sua urgente recuperação; e, simultaneamente, sua Universidade no estudo sistemático do passado da região, visando a uma interferência ativa na construção do seu presente. Quem sabe, o brio do feirense possa também reacender!

           

                                 27 junho 2000 (no 91o aniversário do poeta)  

Maria Eugenia Boaventura