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Um piano ao cair da noite
Tese analisa relação entre o texto e o
instrumento nas serestas de Villa-Lobos


O que o piano faz enquanto uma pessoa canta um texto? Mais que um galante acompanhante da voz, em peças para piano e voz, este instrumento tem uma atuação própria, exercendo uma função de ambientador, suscitador, evocador e até mesmo motivador do texto poético musicado. Essas características podem ser observadas em uma composição pós-tonal, em que a sonoridade do instrumento é ampliada para além do que o sistema tonal permite, por oferecer detalhes, são identificadas em peças de Villa-Lobos, compositor brasileiro do início do século 20. Pianista, regente, compositor e escritor, Achille Guido Picchi analisa em sua tese “As Serestas de Heitor Villa-Lobos: um estudo de análise, texto-música e pianismo para uma interpretação” a relação entre o piano e o texto sobre o qual um compositor debruça para compor sua música. “Se você tirar a voz em algumas canções de Villa, o piano pode soar sozinho. O piano é muito rico, intenso, cheio de ideias em relação ao texto”, explica Picchi.

A partir de uma análise criteriosa da obra do compositor brasileiro, a tese mostra como Villa-Lobos consegue transmitir, graças a sua genialidade musical, as imagens que ele mesmo cria do texto poético, graças ao seu próprio pianismo. No trabalho, Picchi foi além do conceito de pianismo defendido por outros musicistas, que se referem simplesmente ao ato de tocar piano. Para ele, a técnica envolve todo o trabalho com o piano, inclusive a composição. Neste caso, Villa-Lobos, apesar de não ser pianista de formação, produziu obras de grande qualidade para piano e voz.

O pianismo de Villa-Lobos ganha lugar na análise das Serestas também. Especialmente em Canção do Carreiro, baseada no poema de Ribeiro Couto, ele observa que o ostinato (persistência de um som na mesma nota) do piano assume dimensões estruturais. “Em cada uma das partes da canção ele aparece como condutor ilustrativo das ‘leituras’ do texto poético”, reforça Picchi. A maneira rude de abordar a sonoridade mostra o rigor na interpretação desta canção. Para isso, a escrita de Villa-Lobos quanto à dinâmica, chega a um nível alto de exigência, no que diz respeito a posicionamento das mãos e utilização dos pedais na execução, pedido pela canção lida por ele. “O fato de a escrita da parte do piano ser, em grande medida, feita de células minimais de posicionamento das mãos indica, claramente, a intenção do gesto composicional instrumental de Villa-Lobos. Leve-se em conta que, sendo muito incômodo do ponto de vista da execução, esse posicionamento acaba por, digamos, ‘fundar’ uma idéia técnico-funcional para a expressão da ambientação pianística que a canção lida pelo compositor exige”, explica Picchi.

Som e imagem
Ciclo de 14 canções (12 compostas em 1926 e duas em 1946) que figuram entre as mais importantes obras-primas da canção de câmera brasileira, as Serestas analisadas por Picchi deram som e imagem a textos de grandes nomes da literatura brasileira como Álvaro Moreyra, Manoel Bandeira, Olegário Mariano, Dante Milano, Ronald de Carvalho, Carlos Drummond de Andrade, Ribeiro Couto, Guilherme de Almeida, David Nasser e Abgar Renault. Nas análises de Picchi, é possível observar a relação forte entre melodia e texto poético. Ao tabelar a Seresta n. 8, baseada no poema Canção do Carreiro, de Ribeiro Couto, Picchi mostra como o desenho da tônica dos versos no texto está relacionado à rítmica da frase na música. Também o esquema sonoro empregado pelo compositor segue a estrutura das rimas. De acordo com Picchi, é possível identificar a figura do carreiro na peça, a todo momento, por meio do resultado sonoro da obra, ainda que, em alguns momentos, a voz (texto) dê lugar somente ao piano.

Manuscritos originais investigados por Picchi demonstram as experiências de Villa-Lobos para aproximar o piano do texto do Carreiro, por exemplo. “Inclusive os gritos do carreiro. Ele escreve isso. Então o brasileiro, ao ouvir isso, tem uma identidade com isso imediata. O piano faz uma coisa absolutamente nova de sonoridade, querendo mostrar tudo isso. Mas não é nada parecido com o que a gente tem como acompanhamento normal. Inclusive mostro na tese que ele fez várias experiências antes disso”, acrescenta.

Segundo Picchi, também em Canção do Carreiro parece haver dois eixos de interesse na criação da canção por parte do compositor, pois na Parte A, uma situação dramática do poema, em que o cantor faz um “Êh”, típico do grito do carreiro, a nota Si funciona como espécie de declamação, tudo isso sustentado pelo ostinato do piano. Isso, segundo Picchi, mostra que há toda uma ambientação procurando, sonoramente, ilustrar o canto dos boiadeiros conduzindo manadas por campos extensos, inclusive os glissandi sistemáticos nos fins de cada frase. Neste momento, novamente o piano e um novo ostinato fornecem a ambientação e a sustentação psicológica para essa parte, bem como uma imagética sonoramente sugestiva em relação à passagem do carro de bois. Há, entretanto, uma nova utilização do canto monótono que fora enunciado para ilustrar o carreiro e sua marcha lenta e melancólica, fazendo com que o silêncio do piano, nesse momento, sugira a parada do carro de bois.

Picchi ressalta que a prática de Villa-Lobos sempre foi ler o poema e colocar música. Apenas um poema de Manuel Bandeira, nas Serestas, foi escrito para que ele musicasse, mas em seus escritos Bandeira chama de letra, e não de poesia. Picchi explica que existem algumas confusões em análise de literatura quanto às características de um poema e de uma letra, principalmente em música popular, mas, apesar do empenho de alguns estudiosos em mostrar a diferença entre uma e outra, há especialistas que afirmam não haver diferença.

Música-poesia
Na opinião de Picchi, Villa-Lobos consegue fazer o que os grandes compositores de canção fazem. “Quando a canção é boa, você de maneira intuitiva consegue fazer as coisas acontecerem. Isso é importante porque o Villa-Lobos não era pianista, tocava violão bem e melhor ainda violoncelo. Mas o piano é absolutamente original. Ele inventou uma maneira de escrever piano para canções e isso está provado na tese”, explica.

Para o autor, o compositor tem uma maneira especial de tomar a poesia e ver o que se encontra dentro dela para, a partir daí, musicá-la. As imagens criadas pelo compositor em relação ao texto são claras para o pesquisador, que une a experiência de musicista à de poeta. Mas apesar de toda bagagem e da convivência com as palavras e com profissionais da literatura brasileira, foi necessário utilizar metodologias próprias de análise musical e de análise poética igualmente sólidas na análise de cada uma das canções das Serestas, como foi feito com a Canção do Carreiro. “Na tese, mostro como Villa-Lobos tira aquela música do ponto de vista da criação dele, com toda a bagagem que ele tem de compositor, e junta voz e tudo aquilo que o piano ajuda a fazer para criar essa imagem”, explica.

Para o autor, que já integrou um grupo de pesquisa do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, o trabalho trata-se de uma “leitura do texto pelo compositor”. “Chamei assim. Porque a leitura simples ou direta tem outra conotação. Essa leitura do texto poético para composição é outra”, explica.

Canção de câmara
O estudo permitiu definir a música brasileira para voz e piano como canção de câmara e mostrar que as canções formam um ciclo, por terem uma relação especial uma com a outra. “É uma responsabilidade fazer isso porque temos de encontrar algum fio para afirmar que é isso que faz o ciclo. Com este tipo de análise e pensamento e minha experiência de 30 anos em cima dessas peças eu consegui mostrar: isso é um ciclo”, acrescenta. Ele explica que tal descoberta pode não mudar muita coisa, mas é importante no aspecto da apresentação, que deveria ser vista como o todo de uma obra, e não de várias obras juntas.

A primeira grande conclusão a que a tese ajudou a chegar, segundo Picchi, é que Villa-Lobos teve uma maneira de trabalhar tão importante quanto qualquer compositor da história. “Existe um problema em relação ao Villa que é um problema colonialista do Brasil de julgar o que é nosso muito menor que o aquilo que vem de fora. Pode ser chavão ou coisa comum, mas é bom ressaltar que ele, como todo compositor da história, produziu muito como qualquer pessoa. A produção não é regular, em alguns momentos ela é irregular, mas o regular do Villa é muito mais importante que o irregular”, esclareceu.

Para ele, Villa tem muito mais acertos que falhas. “Ele acertou muito mais do que errou. E tem importância fundamental na história da música brasileira não só como compositor, mas também como músico em relação à música brasileira, à fachada da música brasileira, à ideia do brasileiro”, explica. O autor acentua que uma série de mudanças histórico-musicais são devidas à figura de Villa-Lobos.

“É para a genialidade que a análise da tese mostra que temos de olhar. Sempre digo a meus alunos de composição uma frase de Mozart: ‘1% da produção de um músico é inspiração, todo criador tem inspiração, mas chega um momento de pôr aquilo no papel, daí tem de transformar numa coisa que é 90% de trabalho.’ Trabalho mesmo, e Villa-Lobos trabalhou muito”, conclui Picchi.

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Publicação
Tese: “As Serestas de Heitor Villa-Lobos: um estudo de análise, texto-música e pianismo para uma interpretação”
Autor: Achille Guido Picchi
Orientadora: Adriana Giarolla
Unidade: Instituto de Artes (IA)
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