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Dançando conforme a música

LUIZ SUGIMOTO


A profissão de músico apresenta suas singularidades, mas este trabalhador também vem se submetendo aos padrões de flexibilidade exigidos em outras áreas de atividade, a fim de facilitar sua inserção no mercado de trabalho, hoje composto por profissionais que vêem na versatilidade o principal mecanismo de sobrevivência. O trabalho e a formação profissional no campo da música é o tema de “Eu despedi o meu patrão”, tese de doutorado de Zilmar Rodrigues de Souza, orientada pelo professor Ricardo Goldemberg e apresentada no Instituto de Artes (IA) da Unicamp.

Zilmar Rodrigues, que dirige a Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), faz uma distinção entre o trabalhador músico e os demais trabalhadores. “A estrutura orquestral ilustra bem a concepção de divisão e especialização do trabalho no âmbito musical, que é similar à divisão de tarefas numa indústria automobilística. Mas, embora o músico execute uma habilidade aparentemente repetitiva, ele é valorizado na sua individualidade. Já para o operário, o trabalho é um meio de satisfazer as necessidades situadas fora dele”.

Segundo o pesquisador, a atividade musical também inclui aspectos rotineiros como o treinamento baseado na repetição obstinada de movimentos, as técnicas de ensaio que pedem a retomada exaustiva de trechos da música e até o ritual que antecede o ensaio – pontualidade no horário, afinação do instrumento, aquecimento. “Ainda assim, e mesmo o trabalho sendo parcelar, a atividade do instrumentista é dinâmica e traz a idéia de interpretação coletiva”.

Rodrigues acrescenta que o operário, por sua vez, é alienado do produto de seu próprio esforço, despertando interesse apenas por sua força de trabalho, sendo por vezes reconhecido como “funcionário do mês”. “Já o músico tem seu nome incluído na programação, no portfolio e no disco da orquestra. Além disso, se qualquer trabalhador da indústria pode ser substituído, um violinista de notoriedade dificilmente será preterido por outro, pois tem uma forma pessoal de tocar, imprimindo a sua marca”.

De acordo com o autor da tese, o próprio músico sempre tendeu a se diferenciar dos demais trabalhadores, como se a sua obra, enquanto fruto do talento, não tivesse preço. “Entretanto, esta idéia de trabalhador singular vai sendo revista, diante das mudanças ocorridas nas últimas décadas, como novas configurações da música na sociedade, novos espaços de atuação, bem como novos conceitos estilístico-musicais e novas possibilidades de consumo”.

Rodrigues ressalta que, com o barateamento dos custos da gravação e a popularização dos estúdios, e a digitalização musical e a veiculação da música via Internet, ficou fácil produzir o próprio disco e divulgá-lo na rede. “Agora, o músico precisa pensar nas estratégias que irá utilizar para dar visibilidade ao produto por ele criado”.

Flexibilidade
Zilmar Rodrigues está atento às mudanças desde 1999, quando assumiu a coordenação do curso técnico na Escola de Música da UFRN. Era o momento em que o Ministério da Educação promovia uma reforma na Educação Profissional, com novas orientações curriculares para adequar esta formação às demandas de mercado. “Conceitos como flexibilidade e modularização, tão discutidas em outras áreas, foram transpostas também para a música”.

O pesquisador informa que a intenção é de que os currículos ofereçam aos alunos uma vivência do que enfrentarão como profissionais. Mais: que eles sejam preparados para gerenciar a própria carreira, evitando muitas vezes a especialização em um instrumento ou gênero musical. “São poucos os espaços com trabalho assalariado. Resta ao músico tornar-se plural em suas atividades, flexível perante o mundo do trabalho; um indivíduo que seja quase uma ‘firma’”.

Ao pleitear a vaga no doutorado na Unicamp, o pesquisador apresentou projeto para estudar o impacto e os frutos da reforma nos cursos técnicos de música. Aprovado para o programa, ele se deparou com autores da sociologia das profissões e decidiu incluir no projeto a questão da profissionalização, visando saber quem é o trabalhador músico de hoje. “Promover este recorte na área profissional foi um desafio, pois a formação do músico é variada e o autodidatismo ainda é predominante”.
Rodrigues também se deu conta de que ainda existe um muro entre a música popular e a música erudita, encontrando dificuldades para fazer esta delimitação. Julga, entretanto, que os limites entre o erudito e o popular se tornam cada vez mais tênues. “É comum o músico de orquestra sair de um concerto e ir tocar jazz num bar”.

Diploma
Na tese, Rodrigues tece conceitos e reflete sobre o profissional da música, além de colher a opinião de alunos e professores da Escola de Música da UFRN sobre formação, profissão e mercado. Ele observa que o músico, ao chegar à escola, geralmente já foi iniciado no instrumento, e alguns buscam o diploma apenas para validar esta condição. “Os outros querem mesmo o aprimoramento técnico, sendo comum apontarem o excesso de teoria em detrimento da prática”.

O ensino de música no país, explica o pesquisador, vem de um modelo conservatorial que privilegia a performance, ao passo que a academia privilegia o saber certificado. “Muitos alunos procuram a escola por causa da excelência de um professor. Aliás, outra peculiaridade na música é a figura do mestre, que sempre cumpriu papel essencial no âmbito do ensino musical. Um docente da nossa escola, que faz doutorado na Unicamp, tem alunos que vieram de São Paulo e da Argentina para estudar violoncelo com ele”.
Zilmar Rodrigues informa que o autodidatismo ainda é muito presente na formação do músico e que muitas orquestras do país não exigem o diploma para a admissão de músicos. “A seleção visa atestar a competência do candidato. Da mesma forma, diploma não é pré-requisito para o músico popular entrar no mercado de trabalho”.

O diploma é uma exigência, sim, na academia. Segundo o autor do estudo, em concursos para professores adjuntos exige-se inclusive o doutorado em música, o que já representaria uma grande mudança no cenário da profissionalização. “O magistério sempre foi uma fatia importante do mercado de trabalho para o músico. São portas que vão se abrindo, embora sejam pouquíssimas as pós-graduações no país e a Unicamp e a UniRio sejam as únicas a oferecer o curso de graduação em música popular”.

Crônicas
A partir de informações obtidas nas entrevistas com alunos da Escola de Música, Rodrigues escreveu cinco crônicas comentadas sobre o trabalhador músico, que compõem um dos capítulos da tese. “Elas envolvem questões como gênero, sindicalização, saber formal e autodidatismo, e também a flexibilidade, considerando que o profissional versátil é aquele que possui mais chances de se inserir no mercado”.
Um exemplo é do saxofonista que, ao pleitear uma vaga, é solicitado a também tocar instrumentos próximos, como flauta e clarinete. Uma crônica de Zilmar Rodrigues trata de um aluno baterista que abdicou em parte do autodidatismo para aprender edição de partituras e harmonia. “Ele ganhou dinheiro editando partituras no computador e passou a lecionar harmonia. A idéia de flexibilidade vinda do setor produtivo, em que o trabalhador tem a sua ocupação mas desempenha várias funções, está chegando à música”.

Do estigma ao temor dos pais

Zilmar Rodrigues de Souza, autor do trabalho: o músico está sujeito às normas e regras delineadas pelo mercado (Foto: Divulgação) Em um dos capítulos da sua tese de doutorado, Zilmar Rodrigues de Souza procura mostrar como a profissão de músico foi se consolidando no Brasil, recorrendo para isso a clássicos da literatura e a trechos de músicas e letras. “O violonista dos romances de Lima Barreto – como em Clara dos Anjos e em Triste Fim de Policarpo Quaresma – aparece sempre como um malandro à margem da sociedade. É difícil estudar uma profissão em que seu próprio exercício esteve vinculado à boemia e malandragem”.

As observações na Escola de Música da UFRN permitem a Zilmar Rodrigues afirmar que esta imagem perdura até hoje. “Quando o filho escolhe a música como profissão, percebe-se claramente o receio dos pais com relação às dificuldades financeiras futuras. Se for uma filha, o receio aumenta, pois a visão é de que ela vai entrar em espaço dominado por homens. Mesmo nos cursos que oferecemos para crianças da comunidade, os pais apreciam a idéia da educação musical, mas temem qualquer orientação para a formação profissional”.

Rodrigues convida ainda a reflexões sobre a profissionalização no país, atentando para a desconstrução da indústria fonográfica, que antes intermediava o sucesso do músico popular. “O sucesso era então medido pela vendagem de discos. Hoje, entretanto, o disco não é mais um fim, e sim um meio de o músico se projetar, aproveitando o barateamento e o fácil acesso a gravações para divulgar sua música rapidamente pela Internet”.

A tese trata também do trabalho do professor de música nas instituições de ensino, que o autor considera outra vítima de conflitos. “Geralmente, quem se propõe a ensinar na universidade é um músico de excelência, com grande habilidade performática. Quando chega, ele encontra uma estrutura burocratizada, com departamentos e coordenações, sendo obrigado a participar de reuniões e comissões, corrigir provas, fazer pesquisa e também tocar. Tudo isso toma muito do tempo que um músico gostaria de dedicar ao seu instrumento”.

De um modo geral, Zilmar Rodrigues afirma que trabalho do músico possui singularidades nem sempre notadas noutras áreas profissionais, como talento, criatividade, inspiração e originalidade, mas que, no entanto, hoje está sujeito às normas e regras delineadas pelo mercado. “O exercício da profissão musical passa a se inserir num contexto de relações concretas e complexas referente à divisão do trabalho no mundo capitalista, no que diz respeito aos meios de produção, às profissões, relações de emprego e carreiras profissionais”.

 

 
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