| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 307 - 24 de outubro a 5 de novembro de 2005
Leia nesta edição
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.. Vanguarda e mito
.. Febre Aftosa
.. Nas bancas
.. Marx, ontem e hoje.
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‘Marx foi pioneiro em prever a oligopolização’

JU – Correntes pregam que as transformações pelas quais passou o mundo colocaram na pauta da esquerda novas demandas (ambientalismo etc), que passam ao largo dos cânones marxistas, embora a maior parte dessas urgências sejam tributárias ou derivadas das idéias do filósofo alemão. O senhor acredita que a esquerda pode abrir mão da perspectiva marxista?

Armando Boito – Sem uma análise acurada do modo de produção capitalista, não se pode explicar a destruição do ambiente. Na revista do Cemarx, a Crítica Marxista, publicamos um texto muito esclarecedor sobre essa matéria – “Ecologia e condições físicas de reprodução social: alguns fios condutores marxistas” de autoria de François Chesnais e Claude Serfati. Temos também aqui no Brasil colegas como o Guillermo Foladori, da Universidade Federal de Santa Catarina, que mostram a importância da obra de Marx, a começar pelo O Capital, para se entender a destruição do ambiente. Não sou especialista na matéria, mas creio que sem uma análise marxista do capitalismo e também do imperialismo, a luta ecológica perde-se numa superficialidade anódina.

Fernando Gabeira – Discordo da formulação. Não considero os novos temas tributários ou derivados das idéias de Marx. Na verdade, há temas que escaparam completamente ao seu espírito e isso é compreensível também pelo fato de que Marx não era adivinho. Acho possível abrir mão da perspectiva marxista, sem, no entanto, subestimar sua riqueza teórica, aproveitando aqueles elementos que podem nos ajudar a compreender a sociedade e o mundo. É marxista, por exemplo, dizer que o concreto é o concreto porque é a síntese de múltiplas determinações. Abre um vasto caminho de análise sem necessariamente obedecer aos cânones de Marx.

Jorge Grespan – Depois de mais de um século de disputas políticas e teóricas bastante acirradas, a teoria de Marx demonstrou ser a mais consistente e a mais fértil para a compreensão das condições do mundo capitalista. Mas a discussão com os que discordam total ou parcialmente dela foi muitas vezes bastante rica para o esclarecimento, o desenvolvimento ou o ‘aggiornamento’ do próprio marxismo.

Como eu disse antes, faz parte da definição do capitalismo mesmo a modificação permanente das formas em que se expressa a sua contradição constitutiva – a relação capital/trabalho assalariado. E com a modificação das formas reais é evidente que os temas de análise e da pauta política vão também se modificando. Seria uma traição ao sentido profundo do marxismo se alguém acreditasse que Marx já pensou tudo o que havia de importante para ser pensado, que a tarefa atual é apenas de aplicar suas idéias, que as novas questões são secundárias etc...

Roberto Romano – Quando o marxismo ainda era uma doutrina prestigiosa nos campi, alguns estudantes exigiram que “numa universidade marxista, se estudasse Marx”. Errado. Em primeiro lugar, uma universidade pública não é marxista nem bakuninista, nem liberal ou católica.

Em segundo, a seguir Marx, seria preciso assumir o seu modus operandi: ler Aristóteles, Hegel, Adam Smith, Ricardo, Malthus, para efetivar a crítica da economia política. A crítica efetiva só pode ser feita, depois que o estudioso domina as razões básicas das teses criticadas. “Não ler e não gostar”, ler apenas os autores autorizados pelo grupo ou partido, beira o fanatismo. Não é possível abrir mãos dos textos de Marx e de muitos marxistas notáveis pelo saber. Como não é possível abrir mão da filosofia grega, dos teólogos que pensaram a idade média e toda a cultura letrada. Ler, examinar, verificar escritos, sem protocolos, é condição de liberdade.

JU – Em que medida o marxismo dá conta das mudanças nos meios de produção – mercado informal e globalizado, desemprego em massa, oligopólios etc – registradas nas últimas décadas?

Armando Boito – Já discorri um pouco sobre isso quando respondi a primeira e a segunda questão. Gostaria apenas de acrescentar algo.

Vários argumentos que se usam para defender a tese segundo a qual a obra de Marx estaria ultrapassada são argumentos de pessoas que não estudaram a obra que criticam, a começar pelo O Capital. Veja o caso do desemprego em massa. Marx foi criticado, ao longo do período do Estado de bem-estar e de política keynesiana, com base no argumento de que o capitalismo teria resolvido o problema do desemprego e das crises econômicas, tornando superada a lei geral da acumulação capitalista, que Marx desenvolveu no Capítulo 23 do volume I d´O Capital, e tornando caduca também a tese de que as crises são decorrência necessária da própria acumulação capitalista.

Ora, agora que o desemprego voltou com força, seria no mínimo estranho apresentar tal fato como prova da superação da obra de Marx. Convido os leitores do Jornal da Unicamp a lerem o citado capítulo 23 e verificarem se lá temos ou não conceitos e teses que permitem compreender o desemprego em massa dos dias atuais. Algo semelhante se passa com a chamada globalização e o novo capital financeiro. Temos aí novidades que precisam ser estudadas e requerem conceitos novos. Porém, algumas idéias básicas sobre o capital de empréstimo, sua separação da produção, sua potencial dominação sobre o capital produtivo e o fato de ele poder converter-se em capital parasitário, tais idéias, tão imprescindíveis para compreender o capitalismo atual, são desenvolvidas por Marx nos capítulos da quinta seção do Livro III de O Capital.

É muito importante submeter a obra de Marx à crítica, mas o primeiro passo para isso é estudá-la.

Fernando Gabeira – A teoria marxista continua tentando entender o que se passa. Menciona por exemplo Ernest Mandel e mais recentemente Negri. No entanto, há tanta coisa acontecendo, tantas novas explicações sobre a mesa. Não sei porque exigir do marxismo essa ininterrupta capacidade de entender e explicar o real. Talvez seja porque ainda tenhamos um superdimensionamento de suas possibilidades ou porque herdamos dele um certo fechamento em relação a outros horizontes críticos.

Jorge Grespan – Ao contrário! Foi Marx quem descreveu e explicou esses fenômenos pela primeira vez. A sua teoria é justamente pautada pela crítica do capitalismo, e crítica no sentido objetivo em que o sistema não precisa ser julgado subjetiva ou moralmente, já que ele mesmo expõe suas mazelas, como ocorre com as crises econômicas. Marx foi o primeiro a elaborar uma teoria dessas crises que evidenciasse o caráter intrínseco delas no capitalismo, isto é, que superprodução, desemprego, quebradeiras financeiras generalizadas não são acasos, ou meras possibilidades determinadas por “fatores” externos, mas pertencem à própria essência desse sistema social.

Mais ainda, ele foi pioneiro em prever a tendência à oligopolização, numa época em que todos economistas afirmavam dogmaticamente a eternidade da concorrência: fenômeno também contraditório, para Marx a concorrência levaria ao seu oposto, ao monopólio, pela força de concentração que também é inerente ao capital. Por outro lado, e até como forma de solucionar temporariamente esses problemas, o capital exibe uma notável capacidade de se regenerar, modificar padrões e ampliar, criando os mercados mundiais.

Mas em cada uma dessas formas ou desses níveis, a contradição fundante volta a se apresentar, conduzindo o sistema a nova crise, com as seqüelas do desemprego, destruição do próprio capital, concentração de propriedade e renda. Os fenômenos recentes do chamado desemprego estrutural, mercado informal, “globalização” estão todos na órbita do movimento contraditório do capital, consistindo na faceta mais nova daquilo em que Marx acertou em cheio quando, ainda no século XIX, definiu como esta relação social e historicamente específica, fundante da chamada modernidade.

Roberto Romano – Creio que ele “não dá conta” de todos esses problemas difíceis. Como, aliás, ninguém pode se jactar de conhecer todo o universo implicado na pergunta acima. Alguns cenários globais podem ser produzidos para ajudar a intelecção do mundo atual, mas a busca dos elementos empíricos e a sua análise com auxilio de conceitos, definem um processo longo, penoso, que exige trabalho interdisciplinar prudente e aberto ao diálogo.

No mundo inteiro surgem instituições, movimentos e grupos dedicados a pensar o mundo atual. As análises publicadas não trazem muita esperança, mas também não jogam medo absoluto no futuro imediato. Apenas para ficar na questão dos recursos naturais e, nela, o problema das águas. Sem petróleo (algo que motiva os piores conflitos bélicos em nossos dias) é possível a sobrevivência da humanidade, pois energias alternativas existem e podem ser aprimoradas. Mas sem água desaparece a vida humana. Vastas populações estão condenadas à morte certa no mundo. Ensaios de cooperação entre países e movimentos políticos opostos trazem alguma esperança neste setor. Em Israel, técnicos e cientistas palestinos e israelenses trabalham em conjunto para recuperar as fontes hídricas da região. Algo semelhante pode ser feito em todos os continentes. Mas isso exige muito saber técnico e muito diálogo entre partidos, governos, Estados. Note-se que falamos de efetividades econômicas que determinam o destino de coletivos inteiros. E muitos pensadores marxistas ou não marxistas podem ajudar na tarefa de entender e administrar esses desafios.

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