| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 307 - 24 de outubro a 5 de novembro de 2005
Leia nesta edição
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CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 5
O autoritarismo dogmático prenuncia os campos de concentração

(Foto:USP)


"O socialismo exige democracia, mas não a democracia parlamentar, comandada pela burocracia do Estado capitalista"

Armando Boito

Finalmente: “Guiados pelos ensinamentos do camarada Stalin, nosso educador, estudemos e assimilemos a doutrina marxista-leninista” (Luis Carlos Prestes, Nossa Política, Problemas, 1950). Para todas essas citações, leia-se Rückert, Sérgio Joaquim, Persuasão e Ordem: a escola de quadros do Partido Comunista do Brasil na década de 50, mestrado/Unicamp, 1987.

Essas formas doutrinárias foram introduzidas e aceitas voluntariamente pela massa dos militantes, com perícia cirúrgica e litúrgica: “todo lugar comum, todo cliché, é na realidade uma espécie de reza, funciona pelo mecanismo da repetição e da sugestão, veicula na vida social a mesma potência hipnótica das ladainhas na vida religiosa” (Shoshana Felman, Folie et Cliché). De Marx aos que se julgaram, em Moscou ou no Brasil, infalíveis consciências políticas do proletariado, ocorreu um enrijecimento noético. A pesquisa se transformou em catecismo. E tudo isso tem muito a ver com a razão de Estado, o realismo que se curva ao existente em nome de uma revolução mitológica, a ser revelada no Final dos Tempos.

Segundo Max Weber, quando uma seita percebe que o Dia de Juízo demora a chegar, ela se adapta para viver no mundo “tal como ele é”. Surge a Igreja burocrática e prudente, com Santas Inquisições e sacramentos, ladainhas. Ao examinar a história dogmática do cristianismo, marxistas atilados poderiam ler no final : De te fabula narratur. Não leram.

JU – Há também quem diga que a utopia do século XXI é a técnica, ou seja, os impactos sociais, econômicos e políticos da tecnologia esvaziariam de sentido as ideologias clássicas. Qual sua opinião a respeito?

Armando Boito – Se incluirmos o marxismo entre as “ideologias clássicas”, é claro que o desenvolvimento tecnológico não o torna ultrapassado. Toda a teoria da história de Marx baseia-se na idéia de que o desenvolvimento das forças produtivas, que envolve a ciência e a tecnologia, é o elemento motor, em última instância, da mudança econômica, política e social. É essa a idéia que Marx resume no conhecido Prefácio de 1859, que escreveu para o seu livro Contribuição à crítica da economia política.

O desenvolvimento tecnológico e da capacidade de produção abala as antigas formas de organização social e pode criar o agente da transformação histórica. Foi o que ocorreu com o desenvolvimento da manufatura, do comércio e da urbanização que criou a classe burguesa na Baixa Idade Média européia. Não podemos descartar a hipótese de estarmos adentrando um novo período desse tipo. Os trabalhadores hoje podem ser induzidos, pela posição que ocupam no processo de produção, por seus interesses e valores, a assumir a tarefa de libertar as novas forças de produção do quadro estreito das relações de propriedade capitalista, libertação essa que poderá satisfazer as necessidades das grandes maiorias excluídas pelo capitalismo. As novas tecnologias, como a informática e a micro-eletrônica, são, de resto, ferramentas imprescindíveis para a gestão coletiva e democrática de um processo de produção tão vasto, complexo e interdependente como o da economia atual.

Fernando Gabeira – Não creio que a tecnologia possa substituir utopias, embora se projete nelas um certo sentimento religioso. No caso da degradação ambiental espera-se sempre que, no fim das contas, a tecnologia encontre saída para os problemas que vamos criando. De novo é a reprodução do reino dos céus que virá, independente de nossos erros terrenos. Gramsci abordou esse tema quando perguntou como se poderia chegar à vitória final, por meio de uma sucessão de derrotas táticas. Só a religião pode responder a isto com a clássica promessa: depois de todo o sofrimento, virá o reino dos céus.

Foto: Rogério Cassimiro/Folha Imagem


"O socialismo real e as mutações capitalistas não expressam uma incompletude da obra de Marx, mas uma fragilidade latente "

Fernando Gabeira

Jorge Grespan – O problema da técnica é que ela não é socialmente neutra, ela surge e se desenvolve de modo diferente de acordo com o sistema social em que é elaborada. Isso fica claro se atentarmos para a história, mesmo que num olhar rápido e abrangente: não pode ser casual, ou resultado de um simples desenvolvimento interno da ciência, que a técnica tenha atingido patamares impressionantes nos últimos dois ou três séculos em relação a todos os milênios anteriores. É o sistema capitalista que propiciou e determinou esta situação, a partir das condições sociais em que o trabalho direto está divorciado das técnicas, monopolizadas pelo capital e empregadas como instrumento de acumulação de riquezas e de valor. Afinal, por que só o capitalismo impôs uma “revolução industrial” na escala da que ocorreu no século XVIII e que ainda ocorre diante de nossos olhos, em velocidade vertiginosa?

Neste sentido, não podemos nos iludir quanto ao caráter desta técnica: ela é financiada pelo capital, mais ainda, pelo grande capital, e os capitalistas não podem se dar ao luxo de jogar dinheiro fora; eles precisam obter retorno pelo seu investimento, sendo secundário o conforto e a felicidade que eventualmente a técnica também possa proporcionar. Estes últimos fatores, aliás, só desempenham papel no capitalismo quando resultam em bens que criem mercados consumidores onde o capital possa vender e lucrar. Ou será que o progresso das telecomunicações, por exemplo, hoje com internet e satélites, se deu para que as pessoas pudessem “conversar com o mundo todo”?

Sem dúvida, isso é possível, mas só isso não paga nem de longe os enormes custos da criação, implantação e manutenção de toda esta tecnologia. O que paga é o interesse e a necessidade do capital, especialmente do financeiro, comunicar-se e transferir-se “over night” de uma praça a outra do mundo, conforme a atração dos juros e riscos. Seria muito triste se nosso conceito de felicidade hoje se resumir ao que a técnica proporciona, malgrado o capital que a financia.

Roberto Romano – A utopia técnica enquanto política tem a idade de Platão, basta atentar bem para a forma e o conteúdo da República. O Renascimento, época das utopias (Morus, Campanella, Bacon) definiu o modelo tecnológico e político da modernidade (o famoso knowledge and power meet in one baconiano). As ideologias clássicas, pelo menos as geradas no século XVII francês, inglês, alemão, foram todas ligadas às técnicas. O liberalismo é ininteligível sem a passagem pela tecnologia e pelo ordenamento mecânico do universo e da sociedade. Recolhemos hoje o resultado de uma cultura milenar que se apóia no símile da máquina e do mundo.

Ao contrário do que afirmam Heidegger, Hans Jonas e outros pensadores que devem, no entanto, ser estudados com respeito e cautela, penso que as representações técnicas precisam ser valorizadas ao máximo. O retorno às formas primitivas de cultura sendo uma impossibilidade, resta introduzir, como aliás proclamam alguns românticos mais lúcidos, entre eles Novalis, “alma na máquina”.

JU – As experiências marxistas do século XX (URSS, China, Albânia, Hungria, Tchecoslováquia, Cuba) coincidiram com longos períodos de supressão das liberdades individuais, embora se denominassem democráticas. Pode-se argumentar que os países capitalistas ou sob o capitalismo oprimem ou são oprimidos pela exclusão e pela desigualdade social. Contudo permanece a questão: como conciliar marxismo e democracia? Ou o conceito de democracia, no caso, está condicionado ao princípio da justiça social?

Foto: Antoninho Perri


"Entre a democracia interna, exposta em termos homiléticos, e sua prática, há uma abismo"

Roberto Romano

Armando Boito – Pelo que já disse antes, acho que ficou claro que não considero que a experiência revolucionária do século XX tenha sido uma experiência socialista. Foram revoluções que tinham marxistas e socialistas no seu grupo dirigente originário, que chegaram a experimentar, de modo fugaz, formas socialistas de organização da política e da economia, mas que tomaram, no essencial, o rumo de uma revolução burguesa de novo tipo, cuja função histórica foi desenvolver o capitalismo (também de novo tipo) na periferia até então pré-capitalista do globo. Essas revoluções levaram o sistema de trabalho assalariado, o maquinismo, o Estado nacional, a cidadania e os direitos sociais para a Ásia semi-feudal, autocrática e colonizada.

Os dirigentes mais lúcidos dessas experiências, como Mao Tse-tung e Lênin, nunca ignoraram que as revoluções que dirigiam estavam realizando tarefas burguesas. O que ocorre é que eles concebiam a possibilidade de que após a realização dessas tarefas, essas revoluções poderiam passar para uma fase nova, de caráter socialista, e foi isso justamente que nunca ocorreu. Não debitem, portanto, o burocratismo, a ausência de liberdade de organização para os trabalhadores e a repressão injustificada – falo injustificada de um ponto de vista socialista – que muitas vezes ocorreu nesses países ao marxismo e ao socialismo.

Alerto, de passagem, que tampouco seria correto satanizar essas revoluções burguesas de novo tipo. As revoluções, regra geral, são mesmo episódios violentos e, ademais, a China, a Rússia, Cuba, todos esses países, estão infinitamente melhor hoje em dia. Sob os regimes pré-revolucionários, esses países não tinham democracia, independência nacional, bem-estar social e nenhuma dignidade.

Quanto à questão da democracia, o que eu posso dizer é que o socialismo exige democracia, mas não a democracia parlamentar, comandada pela burocracia do Estado capitalista, e corrompida pelo poder do dinheiro. A democracia da qual o socialismo necessita é uma democracia de novo tipo que integre, de modo efetivo, sistemático e com direito à divergência e discussão, os trabalhadores, seus partidos e suas organizações de massa no processo de definição das grandes decisões políticas, econômicas e culturais.

Fernando Gabeira – Não há caminho para conciliar marxismo com democracia, se você se prender ao esquema de explicação histórica do marxismo, que prevê a chegada ao socialismo (a cada um de acordo com seu trabalho) e ao comunismo (a cada um de acordo com suas necessidades). Nesse processo, o papel messiânico da classe trabalhadora suprime a democracia tal como a conhecemos. Nele a democracia é apenas um objetivo tático e não estratégico e permanente.

Foto: ReproduçãoJorge Grespan – Depende de como se define “democracia”. No sentido marxista, sem dúvida ela está condicionada pela justiça social. Um dos resultados teóricos mais importantes alcançados por Marx foi a demonstração de que os princípios de liberdade e igualdade, tal como afirmados no mundo moderno capitalista, não expressam valores universais ou o progresso do homem em geral, mas surgem em função das novas condições sociais baseadas no trabalho assalariado. A igualdade entre patrão e empregado é jurídica, relacionada às condições do contrato de trabalho, mas evidentemente, não social. E a liberdade, como direito de ir e vir, por exemplo, tem a ver com a necessidade de distribuição da mão-de-obra conforme a distribuição de capital num espaço regional ou até internacional, como se vê hoje no caso das levas de imigrantes que saem do terceiro mundo em busca de empregos no primeiro. Além disso, o fato de que as relações econômicas pautam, em escala crescente, formas de vida que antes nada ou pouco tinham a ver com elas, como arte, lazer, educação etc., evidencia o quanto nosso mundo cultural é “colonizado” pelo capital, o que inclui a política.“Democracia” nesse sentido é cada vez mais uma palavra vazia, um pretexto para invadir países e impor interesses econômicos.

A liberdade de fato, por outro lado, só pode se estabelecer com a supressão dos vínculos econômicos que submetem as pessoas a um modo de vida alienante, o que é por definição impossível ao capitalismo. Mas todos os regimes políticos que reivindicaram o marxismo como referência podem ser julgados também conforme este critério de liberdade. O problema é que nenhum deles declarou ter atingido o tipo de sociedade verdadeiramente definido como o ideal comunista; todos diziam estar a caminho, numa transição longa cujos percalços e embates exigiriam, para eles, desviar-se provisoriamente do ideal. Pessoalmente, não concordo com essa possibilidade. Não creio ser justificado nem por questões táticas ou apenas “transitórias” que se admita uma contradição entre fins e meios, pois isso falsifica completamente o sentido das idéias de Marx.

Roberto Romano – O problema reside no conceito de ditadura, algo que determina o juízo possível sobre os jacobinos franceses e os bolchevismos. Um partido ditatorial, que se rege pelas doutrinas mencionadas na primeira resposta, conduz ao massacre de quem pensa diferente, no interior ou fora da organização política. O autoritarismo dogmático que invade a fala de militantes e dirigentes, prenuncia os campos de concentração.

JU – Os marxistas brasileiros freqüentemente são acusados de pregar a democracia interna (o que incluiria a realização de eleições livres) e de fechar os olhos à eternização de chefes comunistas no poder, como por exemplo Fidel Castro em Cuba. Como conviver com esse tipo de contradição, se é que se contradição se trata?

Armando Boito – Como eu já disse antes, Cuba, para mim, não é um país socialista. Trata-se de um poder popular, antiimperialista, cercado pelo imperialismo estadunidense e que merece a solidariedade ativa dos povos da América Latina. Mas o seu Estado, marcadamente burocrático, e seu regime político, de partido único, são indicadores seguros de que os trabalhadores não controlam a política e a economia do país.

Não há, no nível da economia, a unidade entre o produtor direto e os meios de produção, unidade que só pode haver se houver, no nível político, uma democracia de novo tipo, como indiquei na resposta à pergunta anterior. Para haver gestão coletiva e democrática da economia pelos próprios trabalhadores, isto é, para haver uma organização socialista da economia, é preciso que essa democracia de novo tipo funcione. Uma coisa não vai sem a outra: a socialização da economia exige a socialização do poder político.

Alguns companheiros afirmam que se Cuba abrisse o seu sistema partidário cairia nas mãos da burguesia reacionária exilada em Miami. Esse é de fato um perigo – que, de resto, não deixa de existir com o sistema de partido único. Porém, o mais importante é destacar que você pode criar um sistema partidário plural e, ao mesmo tempo, limitado. O capitalismo faz isso e o socialismo precisa aprender a fazer algo formalmente parecido, embora com natureza diversa, como indicava Ernest Mandel, o conhecido socialista belga. Nunca houve e nem pode existir pluralismo político ilimitado, nem no capitalismo, nem no socialismo.

Fernando Gabeira – Os marxistas brasileiros são cúmplices, por meio do seu silêncio, com a prisão de intelectuais e o fuzilamento de pessoas que queriam apenas sair de Cuba. Têm uma visão autoritária do mundo e ainda praticam o centralismo democrático, um instrumento pensado por Lênin para o principio do século XX, quando trabalhadores fabris enfrentariam o exército do czar.

Jorge Grespan – De certa forma, a resposta a essa questão está contida na resposta anterior. De qualquer modo, é preciso considerar caso a caso, para não se incorrer em generalizações apressadas e perigosas. Quem apoiou quem? E em quais circunstâncias? Em geral, houve um encantamento da esquerda brasileira nos anos 60 com a Revolução Cubana, por exemplo, especialmente por ela ter abalado tão profundamente o poderio do capital norte-americano e por ela ter alcançado uma notável melhora nos indicadores sociais, como saúde e educação, exatamente os mesmos que aqui no Brasil nos envergonham, ou deveriam nos envergonhar. Mas os próprios cubanos sempre se consideraram numa transição rumo ao socialismo e ao comunismo, e não já num mundo perfeito. Nem me consta que nenhum marxista brasileiro tenha tido jamais a ingenuidade de afirmar aquilo que os cubanos mesmos não afirmavam. O que muitos fazem é admitir desvios temporários estratégicos, coisa que está, porém, em contradição (não dialética) com o sentido do marxismo.

Roberto Romano – Entre a democracia interna, exposta em termos homiléticos, e a sua prática, há um abismo. Veja-se o PT: os dirigentes todo poderosos nada viram, nada ouviram, nada cheiraram, nada tocaram, nada perceberam no partido e no governo, do presidente de honra aos líderes menores. Tudo foi efetivado sem consultas às bases, do “recurso não contabilizado” às decisões governamentais sobre o superávit primário atual.

O centralismo “democrático” é apenas um outro nome para “ditadura”, com os frutos previsíveis em todo coletivo que proíbe o debate real, a crítica, o acesso a todos os dados. Quem forneceu os “recursos não contabilizados”? Quando este e demais segredos forem abertos pelo próprio partido aos militantes e ao público, será possível dizer, sem provocar gargalhadas, que ele é democrático.

JU – István Mészáros prega que a obra de Marx é inacabada e, como tal, dois componentes, entre outros, não podem ser ignorados na preservação de seus ideais: as seguidas mutações do capitalismo; e, falando na condição de húngaro oprimido pelas tropas soviéticas, as experiências do socialismo real. O senhor acha que essa releitura é possível nos dias de hoje?

Armando Boito – Essas indicações de Mészáros são um tanto óbvias e também imprecisas.

A obra de Marx não é apenas inacabada. Ela é uma obra que apresenta contradições internas, teses superadas, umas abandonadas pelo próprio Marx, outras não. Basta recordarmos que a obra de juventude, principalmente aquelas escritas na primeira metade da década de 1840, é abandonada e negada pela obra de maturidade.

Depois de Marx, muitas coisas novas foram descobertas e produzidas nas ciências sociais e na história. A função dos marxistas hoje é considerar todo esse volume de produção, trabalhá-lo criteriosamente, para retificar e desenvolver a obra apenas iniciada por Marx. Eu arriscaria dizer que se passa hoje com o marxismo algo semelhante ao que ocorreu com o darwinismo nas primeiras décadas do século XX. Os darwinistas souberam, apropriando-se das descobertas da genética, criar a teoria sintética da transformação das espécies pela seleção natural, o que é conhecido também com o neodarwinismo. Os marxistas precisam, hoje, de um marxismo renovado, de um neomarxismo, que permita construir o programa socialista do século XXI.

Quanto à URSS, Mészáros tem uma análise pouco rigorosa da experiência soviética. Ele entende que aquela experiência era socialista e, ao mesmo tempo, sustenta, paradoxalmente, que a URSS não rompeu com o capital. Nas questões anteriores, acho que já apresentei o essencial de minha posição sobre esse problema.

Fernando Gabeira – Não captei totalmente o raciocínio de Mészáros. O socialismo real e as mutações capitalistas não expressam uma incompletude da obra de Marx, mas uma fragilidade latente. Os problemas do socialismo real já estavam de certa forma contidos em sua teoria e as mutações que apontam para lacunas. Como entender, por exemplo, seu otimismo triunfante sobre o avanço material diante dos graves ambientais que o planeta vive hoje?

Jorge Grespan – Não é que a obra de Marx esteja inacabada. Sabemos, é claro, que ele não a concluiu como planejava devido às vicissitudes de sua vida e à sua morte prematura. Mas ela tem um sentido acabado em si mesma. O que ocorre é que ela permite, como toda obra clássica, diversas interpretações e um ‘aggiornamento’ constante.

O seu ponto central, que localiza a contradição constitutiva do capital e por meio dela explica os problemas fundamentais do mundo moderno, continua de pé, pois o próprio sistema capitalista apresenta esta característica, sem a qual ele nem seria “capitalista”. Mas faz parte desta constituição contraditória do capital justamente a modificação constante das formas pelas quais se realiza e manifesta tal fundamento. Portanto, incumbe aos marxistas preocupados em entender o mundo contemporâneo o estudo das formas novas que surgem e que, precisamente por sua novidade, expressam o caráter histórico do capitalismo. A releitura, nesse sentido, não só é possível, como obrigatória, sob pena de deixar de lado o essencial da teoria de Marx.

Roberto Romano – Não tenho condições de responder a esta pergunta.

JU – Há um curioso ponto de convergência nas trajetórias – e nos discursos – de Fernando Henrique Cardoso (um aplicado leitor de Marx na juventude) e de Lula. O primeiro, cujos livros eram adotados maciçamente na academia nas décadas de 60 e 70, pediu que esquecessem o que havia escrito; o segundo chegou a afirmar que nunca havia sido de esquerda, muito embora tenha se cercado, ao longo se sua trajetória, de intelectuais marxistas. A que o senhor atribui essa postura?

Armando Boito – O PSDB e o PT têm histórias diferentes, assim como Fernando Henrique e Lula. Se há algo em comum no episódio citado eu diria que se trata dos limites da democracia burguesa. Esses limites são bem maiores na periferia do sistema capitalista, como no Brasil, do que na Europa.

Peguemos o caso da eleição de Lula. Ele, em algum período de sua trajetória, e, principalmente, muita gente do seu partido, criticaram ou criticam o modelo atual de capitalismo, conhecido como modelo neoliberal. Acontece que, para chegar ao governo, o capital financeiro internacional e as agências que ele controla (FMI, Banco Mundial) exigem dos candidatos a chefe de governo da periferia que proclamem, antes mesmo da eleição, que irão “cumprir os contratos” – leia-se os “contratos” com os grandes empresários, não os “contratos” que tenham assumido com o povo trabalhador.

Se o candidato se curva, se não se rebela – e Lula optou por curvar-se – a eleição deixa de ter muita importância. A nossa democracia hoje é isto: você pode eleger quem quiser, desde que seja um candidato que aceite as exigências do capital financeiro internacional. Para romper esse jogo, seriam necessários um partido e uma direção política muito diferente daquilo que são Lula e o PT.

Fernando Gabeira – Ambos, Fernando Henrique e Lula tornaram-se presidentes da República e sentiram, no processo, como são limitados os seus passos, comparados com a latitude do discurso. Eles tinham de justificar a distância entre discurso e atos. Ao invés de esquecer os escritos anteriores, o ideal seria superá-los criticamente. Lula tem características de animador de auditório. Ele jamais foi marxista e sequer sabe exatamente o que é em termos políticos.

Jorge Grespan – Em primeiro lugar, existe uma inegável pressão por parte de poderosos grupos de interesse para que seja garantido o cumprimento dos seus interesses. Em segundo lugar, porém, houve uma conversão política por parte de muitos dos líderes mais próximos ao núcleo de poder em ambos os casos. Não concordo com a tese de que “não há alternativa”. Por mais que se estreite o raio de manobra em certos momentos, ele sempre existe; é o que define também a política. É possível negociar com os grupos de interesse, aproveitando até do conflito que existe muitas vezes entre eles mesmos, para conseguir um resultado que não se afaste tanto do programa político. E isso não foi feito, nem tentado, por nenhum dos dois últimos governos.

Roberto Romano – Uso com freqüência, para descrever a atitude de todos as lideranças políticas, a análise de Elias Canetti sobre o poderoso enquanto sobrevivente. Pouco importa o seu discurso anterior, as alianças anteriores, os companheiros do passado: se for preciso para a sua sobrevida, o poderoso alegremente jogará tudo fora.

Fui um crítico duro do governo de FHC. Mas para ser justo, não é possível identificar sua frase “esqueçam o que escrevi” (ele nega a sua autoria) e o “nunca fui de esquerda” do atual presidente. Uma pessoa de esquerda pode errar no passado e corrigir seus pontos de vista. Quando FHC foi eleito, poucos esperavam que ele faria um governo de esquerda, pois as suas teses eram conhecidas desde longa data. A própria “teoria da dependência” não se enquadra nos parâmetros habituais do marxismo e fora criticada por vários intelectuais, mais próximos da esquerda do que FHC, entre os quais Francisco de Oliveira.

Lula foi eleito porque prometeu um governo de esquerda, em todos os sentidos, inclusive no econômico. Se ele e seus amigos viram no programa de seu partido apenas e tão somente “bravatas” e se, a partir da “Carta aos Brasileiros Donos de Banco” negaram todo o seu passado, a coisa é bem mais grave do que no caso de FHC.

Karl Marx ao lado de Friedrich Engels, seu melhor amigo e parceiro, e com Jenny, sua companheira (Foto: Reprodução)

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