| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 307 - 24 de outubro a 5 de novembro de 2005
Leia nesta edição
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.. Vanguarda e mito
.. Febre Aftosa
.. Nas bancas
.. Marx, ontem e hoje.
      E amanhã?
.. Colóquio
.. Lodo de esgoto
.. Painel da Semana
.. Teses
.. Livro da semana
   Unicamp na midia
   Portal Unicamp
.. Ciências de alimentos
.. Ergonomia na indústria
.. Cousas miudas
 

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MARX Ontem e hoje.
E amanhã?

ÁLVARO KASSAB e EUSTÁQUIO GOMES

O filósofo alemão Karl Marx (1818-1883): ideário em debate O papel do marxismo ao longo da história é analisado nesta e nas próximas três páginas pelo cientista político Armando Boito (Unicamp), pelo historiador Jorge Grespan (USP), pelo filósofo Roberto Romano (Unicamp) e pelo deputado federal e escritor Fernando Gabeira (PV-RJ). Este e outros temas serão debatidos no IV Colóquio Internacional Marx e Engels (leia na página 8), que ocorre na Unicamp entre os dias 8 e 11 de novembro. Serão mostrados 120 trabalhos durante o evento, que reunirá quatro conferencistas do exterior.

Jornal da Unicamp – Não faltam os que afirmam que, finda a experiência marxista da antiga URSS, derrubado o muro de Berlim e instalada a economia de mercado na China, o marxismo enquanto utopia se esgotou no século XX. O que o sr. pensa disso?

Armando Boito – A pergunta resume com muita propriedade uma percepção corrente sobre a experiência revolucionária do século XX e aquilo que seria o fracasso do marxismo. Porém, se nos pusermos a refletir sobre os termos da questão, descobriremos inúmeros problemas.

Muito antes da crise e desintegração da economia e do Estado soviéticos, inúmeros autores marxistas já criticavam aquela experiência, apontando que o rumo da antiga URSS não era compatível com o marxismo. Lembraria apenas dois grandes autores que desenvolveram, cada um a seu modo, essa crítica: Paul Sweezy e Charles Bettelheim. De minha parte, considero que a Revolução Russa e Chinesa foram uma extensão, para a Ásia, das revoluções burguesas iniciadas no século XVII na Europa.

Outra idéia problemática presente na pergunta é a de que o marxismo seria uma utopia. Marx e Engels não eram utópicos. Eles foram críticos da utopia. O socialismo era concebido por eles como uma possibilidade proveniente do próprio desenvolvimento do capitalismo, especialmente do desenvolvimento e da socialização das forças produtivas. O capitalismo, ao mesmo tempo em que desenvolve e socializa as forças produtivas, mantém o quadro estreito da propriedade privada dos meios de produção, gerando a anarquia na produção e bloqueando o aproveitamento de todo o potencial científico e tecnológico que ele próprio enseja.

Hoje, com o desenvolvimento da informática e da micro-eletrônica, da produção e consumo em escala planetária, da interdependência estreita entre os diferentes setores da economia e entre as diferentes regiões do globo, o socialismo, concebido como apropriação e gestão socializada dos meios de produção, é uma possibilidade muito mais próxima de nós do que fora daqueles que viveram no século XIX. Aliás, esse tema será objeto de análise e discussão de um grupo de trabalho no IV Colóquio Internacional Marx e Engels.

Fernando Gabeira – Não apenas penso que a utopia marxista se esgotou, como suspeito que tenham se esgotado todas as grandes utopias ou sistemas completos de explicação da história. Em nome das utopias, verteu-se muito sangue.

Jorge Grespan – A força do marxismo, mais do que utópica, sempre foi a crítica do capitalismo, apontando suas contradições e através delas explicando as crises econômicas – coisa que as teorias tradicionais mal conseguem fazer –, e também a alienação profunda do homem moderno, que resulta no chamado ‘mal estar da civilização’. Pois bem, o fim da URSS foi sintoma também da crise capitalista e, de fato, esta longa crise das últimas duas décadas praticamente selou o fim do “estado de bem estar social”, das conquistas possíveis em outros tempos.

Fica difícil dizer que vivemos melhor hoje do que há 20 anos, que estamos mais seguros, mais felizes. O capitalismo vem mostrando, então, sua própria ineficácia como sistema social. Foi esse o tema dos escritos de Marx, e não qualquer ensaio de futurologia. Sabiamente, ele deixou para os homens do futuro estabelecerem as condições de uma vida social que eles considerassem ideal.

Roberto Romano – Permitam-me responder longamente a essa pergunta tão complexa. Marx não se deseja utópico. Desde A Ideologia Alemã, a sua filosofia procura captar o mundo tal como ele se manifesta, recolhendo a essência do trato entre homem e natureza, em desenvolvimento imanente. Em vez de universalidades vazias (como o Homem, a Sociedade, o Estado etc.,) o pensador pretendeu usar a ciência de seu tempo. “O físico, para se dar conta dos procedimentos naturais, ou estuda os fenômenos quando eles se apresentam em sua forma mais saliente e menos obscurecida por influências perturbadoras, ou experimenta em condições que asseguram tanto quanto possível a regularidade de sua marcha.” (O Capital). O símile entre a crítica da economia política e a física, tal como a entende Marx, mostra que o seu alvo não reside em nada exterior ao tempo e ao espaço.

No caso da sociedade capitalista, a grande procura do pensador é a sua lei natural de desenvolvimento. No pósfacio ao Capital há uma resenha da revista russa O mensageiro Europeu, onde se enuncia que o método de Marx “é rigorosamente realista”. Uma só coisa o preocupa: “encontrar a lei dos fenômenos (das Gesetz der Phänomene zu finden); não só a lei que os rege (…) mas sobretudo a lei de sua mudança e desenvolvimento, a lei de sua passagem (Übergang ) de uma forma a outra”. Não se pode falar em utopia em Marx, pelo menos nos textos teóricos. A recusa dos socialistas utópicos como Saint-Simon e outros, é comum no par Marx/Engels.

Comentadores aproximaram o seu pensamento e as concepções de Fichte, no relativo à livre atividade humana. Mas o lado “realista” é essencial nos escritos de Marx. No século XX, suas investigações são trucidadas pela máquina de moer cérebros chamada Partido, suas pesquisas são encolhidas em algumas fórmulas a priori. Toda a sua ciência foi tragada pelas palavras de ordem dos líderes partidários e o realismo científico se transformou em “realismo” da razão estatal soviética.

Nesse clima de esvaziamento conceitual e volitivo surge Ernst Bloch, cuja utopia impulsiona alguns revolucionários e lhes permite esquecer o dogma partidário que “tudo” explica no mundo histórico e natural. E muitos militantes que se negam a dobrar os joelhos às pretensas “leis” de Marx (para os teóricos oficiais da URSS eram certezas que dispensavam a crítica e a pesquisa) assumem uma perspectiva utópica. Mas o utopismo não abarcou o marxismo como um todo. Pelo contrário, foram conduzidos ao máximo tanto o realismo vulgar quanto uma versão oportunista da razão de Estado.

“A obra de Marx, permite diversas interpretações e
um ‘aggiornamento’ constante”
Jorge Grespan

Merleau-Ponty, ao criticar Claude Lefort (A Contradição de Trotsky e o problema revolucionário, Temps Modernes, 1949 ), aponta o naturalismo de Marx como fonte dos equívocos marxistas. Descobertas as leis do seu desenvolvimento, torna-se possível revolucionar uma sociedade. “A dialética havia estabelecido entre o presente e o passado uma dupla relação, de continuidade e descontinuidade. O capitalismo cria seus próprios coveiros, prepara o regime que o derrubará, o futuro emerge do presente e o fim brota dos meios de que ele é apenas a soma total e o sentido.” O marxismo “fala da revolução como uma onda que toma o Partido e o proletariado onde eles estão e os leva para além do obstáculo. Ou então, ao contrário, põe a revolução além de tudo o que existe, num futuro que nega o presente, no final de uma depuração infinita.”

A passagem do capitalismo ao socialismo está garantida: existe a ciência do materialismo histórico e dialético. A passagem do capitalismo ao socialismo não está garantida: a parúsia ocorrerá apenas num futuro sempre adiado, enquanto o Partido e a sua forma estatal garantem as conquistas do pretérito, nos limites de um só país. Daí o pêndulo entre revolução armada e a luta eleitoral.

Regis Debray (Tempo e Política, Temps Modernes, 1968) indica o milenarismo presente nas decisões partidárias. De um modo ou outro, trata-se de jogar as esperanças no futuro, porque “um dia”, com maior número de votos, chegará a hora da sonhada revolução. Os que se insurgem contra semelhante contínuo temporal, como o próprio Debray nos anos 60, assumem a luta armada como quebra da lógica milenarista eleitoral. O dia certo, o kayrós, pensa Debray, deve ser imposto pelos revolucionários hic et nunc. Mas as duas estratégias fundamentam-se numa certeza: existem leis que regem a passagem do capitalismo ao novo modo de produção e sociedade. Trata-se de uma questão de tempo, longo no caso do comunismo oficial, acelerado pelas organizações armadas, no caso dos guerrilheiros.

Um comentário do referido descompasso noético é feito pelo lingüista Roman Jakobson, não suspeito de ter sido preso pela razão de Estado miúda que assolou militantes e dirigentes comunistas: “Em 1930, após a morte de Maiakóvski, anotei o seguinte: lançamo-nos em direção ao futuro com excessivo ímpeto e avidez para poder salvaguardar algum passado. O laço dos tempos rompeu-se. Vivemos demais no futuro, nele pensamos demais, acreditamos nele, não temos mais a sensação de uma atualidade que se baste a si mesma, perdemos o sentimento do presente… tínhamos apenas os encantadores cantos que nos falavam do futuro, e, de repente, esses cantos, saídos da dinâmica do presente, transformaram-se em fato de história literária”.

Muitos marxistas viveram a paixão do futuro, imaginaram que o passado supostamente abolido na URSS traria novos dias, desde que a dialética materialista fosse entendida perfeitamente, pela repetição das suas fórmulas, e aplicada sem questionamentos.

Stalin enuncia “quatro princípios fundamentais do método dialético marxista”: a) a interdependência geral de todos os fenômenos, a lei da totalidade; b) o movimento, pois “segundo o método dialético, só é invencível o que nasce e se desenvolve”; c) a transformação da quantidade em qualidade, num acúmulo quantitativo gradual e rupturas súbitas, fazendo passar de um estado a outro. E d) a lei dos contrários, “conteúdo interno do processo de desenvolvimento”. (Stalin, O materialismo dialético e o materialismo histórico).

E Lenin, antes de Stalin, enuncia as teses inquestionáveis do marxismo em Materialismo e Empiriocriticismo. “A verdade absoluta resulta da soma das verdades relativas em via de desenvolvimento. As verdades relativas são reflexos relativamente exatos de um objeto independente da humanidade. Esses reflexos tornam-se sempre mais exatos. Cada verdade científica contém, apesar de sua relatividade, um elemento da verdade absoluta”.

Além do líder russo, outros teóricos avançaram enunciados com pretensões epistemológicas e políticas. É o caso de Mao: “Para que se complete o movimento que conduz ao conhecimento justo, é preciso freqüentemente muitas repetições do processo que consiste em passar da prática ao conhecimento, depois do conhecimento à prática. Tal é a teoria marxista do conhecimento, a teoria materialista da dialética do conhecimento” (Cinco Ensaios Filosóficos). Seqüência admirável, extraída de um texto não menos admirável publicado na França ainda em 1975 : “Viva o marxismo-leninismo maoísmo! Viva a guerra popular”, da União dos Comunistas da França Marxista Leninista (U.C.F.M.L.). O Materialismo e Empiriocriticismo fornece a grande fórmula da verdade objetiva, inscrita na história. O desenvolvimento desta última é uma aproximação gradativa da verdade, cuja sede é o Partido. E o Partido é o detentor da teoria, da certeza, do ser.

Escutemos Trotski no XIIIº Congresso do PC na URSS : “Ninguém dentre nós (…), nem pretende nem pode ter razão contra seu Partido. Definitivamente, o Partido tem sempre razão (…) Não se pode ter razão a não ser com e para o Partido, porque a história não tem outras vias para realizar sua razão” (citado por Claude Lefort, Un homme en trop). Como analisa Lefort, identificados o real e o Partido, razão e Partido, “da realidade à teoria, como da teoria à realidade, a passagem é sempre evidente”. Se a teoria não o prevê, um fenômeno não existe. “Sem a orientação da doutrina marxista-leninista, doutrina todo poderosa porque verdadeira, nada de bom e duradouro pode ser alcançado” (D. A. Câmara, Forjemos nosso Partido à imagem e semelhança do Partido de Lenin e Stalin, Problemas, 1953). Entre as evidências, a mais solar: “Somente a sabedoria coletiva do Comitê Central, tendo à frente o camarada Prestes, permite dar aos militantes uma educação de elevado teor ideológico”.(M. Alves, “Elevar o nível ideológico do Partido, tarefa essencial na luta pela vitória do Programa [Informe em nome do Presidium do C.C.]” Problemas, 1956). A técnica pedagógica é translúcida: tratando-se do Programa, “seus fundamentos, suas teses, seus objetivos e suas tarefas devem ser profundamente compreendidos e assimilados. Cada comunista necessita ficar saturado das novas idéias” (A. Câmara, Novo Programa, Novas Tarefas, Novos Métodos, Problemas, 1954).

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