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Luz e sombra no
Brasil que sai das telas


Cena de Cidade de Deus, filme de Fernando Meirelles  (Foto: Divulgação)Ninguém sabe ao certo o número de filmes. Alguns falam em algo entre 300 e 400 produções. Tampouco há uma vertente estética que confira à ressurreição do cinema brasileiro um caráter de movimento. A única certeza é a de que a Lei do Audiovisual, promulgada em 1993, tirou a produção cinematográfica do atoleiro em que se encontrava nos anos imediatamente anteriores em razão da omissão e de desastradas intervenções do poder público.

Em 1994, o filme Carlota Joaquina, dirigido por Carla Camaruti, daria início ao que se convencionou chamar de Cinema da Retomada. O ano seguinte, porém, pode ser considerado um marco por trazer à tona uma produção regular, coisa na época inimaginável até para os mais otimistas. Há divergências sobre a ordem cronológica da Retomada. Para alguns, Cidade de Deus (2002) decretou seu fim; para outros, a vitalidade da indústria cinematográfica brasileira é um sintoma de que ela está longe de esgotar-se.

O fato é que, nestes últimos dez anos, os realizadores brasileiros foram responsáveis por uma produção rica e diversificada. Para fazer um balanço crítico deste período, o Jornal da Unicamp convidou três professores do Departamento de Cinema (Decine) do Instituto de Artes (IA): Fernão Pessoa Ramos, Fernando Passos e Nuno Cesar de Abreu, os dois últimos também cineastas. O diagnóstico: o cinema nacional não só está muito vivo, como também retrata as contradições do país.

Jornal da Unicamp – O advento da Lei do Audiovisual (1993), com seus mecanismos de renúncia fiscal, é considerado um marco do Cinema da Retomada. Em que medida houve ingerência/influência do mercado – e, conseqüentemente, dos departamentos de marketing – em produções dessa nova fase do cinema?

Fernando Passos é professor do Departamento de Cinema (Decine) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes, onde pesquisa processos criativos na realização de filmes e vídeos. Como realizador obteve prêmios nos festivais de Gramado, Rio Cine e Oberhausen. (Foto: Antoninho Perri/Antonio Scarpinetti)Fernando Passos – Na minha experiência, o que vi foi uma preocupação com o tema por parte do pessoal de marketing das empresas no sentido de garantir que o roteiro não iria prejudicar a imagem da empresa, mas não de influenciar argumentos ou roteiros. As agências de captação de recursos lutavam e lutam para demonstrar a visibilidade a ser alcançada pela empresa e essa visibilidade sempre foi a tônica, o argumento para se conseguir a captação de recursos. Não tive notícias de pessoal de marketing sugerindo temas a serem filmados ou forçando merchandising além do que é normal em uma produção. Se você tem automóveis na ação e a empresa automobilística está colocando dinheiro na produção, o fato de a direção de arte escolher o veículo de sua marca faz parte das negociações para se obter recursos.

Fernão Pessoa Ramos – A Lei do Audiovisual é um marco. Efetivamente, ela inaugura uma nova forma de produção no cinema brasileiro. O cinema é uma arte muito cara. Essa questão da produção, portanto, passa a ser central, mais do que para outras artes. Os valores são muito altos. Um longa-metragem hoje custa, no mínimo, US$ 500 mil. Uma produção média está entre R$ 2 milhões e 3 milhões. Trata-se de uma escala muito particular. Conseguir o equacionamento da produção é fundamental. E a Lei do Audiovisual inaugura uma nova forma de se produzir cinema no Brasil por meio da renúncia fiscal.

Por outro lado, houve sim ingerência dos departamentos de marketing. Este é um dos problemas da Lei do Audiovisual. Ela teve o mérito de equacionar o problema da produção, mas tem defeitos que estão demorando para serem reparados. Um dos problemas centrais é que se trata de dinheiro público, renúncia fiscal, aplicado por empresas. São as empresas - estatais na maioria dos casos – ou privadas, que acabam decidindo sobre a aplicação do dinheiro.

Fernão Pessoa Ramos é professor Departamento de Cinema do Instituto de Artes. Foi presidente fundador da Socine (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Multimeios (1996/2000). Publicou Cinema Marginal: a representação em seu limite (1968/1973) (Ed. Brasiliense, 1986); História do Cinema Brasileiro (Art Editora, 1987); Enciclopédia do Cinema Brasileiro (Ed. Senac, 2000) e Teoria Contemporânea do Cinema (Ed. Senac, 2005) (Foto: Antoninho Perri/Antonio Scarpinetti)Como o cinema envolve muitos recursos, o diretor, na sua expressão autoral, em qualquer país do mundo, precisa fazer algumas concessões. Mas, na medida que este é dinheiro público, pelo menos uma parcela dele deveria ser gerido pelo Estado. Já foi proposto um fundo a ser gerenciado por um órgão do Estado que disciplinasse a aplicação desses recursos, mas a medida não saiu do papel. Especificamente quanto à ingerência de departamento de marketing: não há interferência quanto ao produto em si – como fazia o produtor representando o estúdio no cinema clássico norte-americano. Mas na medida em que os responsáveis pelos recursos não são da área, fica uma coisa meio viciada em termos de se conceder ou não o dinheiro. Tanto faz, para o gerente de marketing ou para o dono da empresa, dar o dinheiro para o diretor ou para o governo. Não há risco na operação. Não há a preocupação que o recurso retorne para quem investiu. A partir do momento em que o diretor ou o diretor de produção do filme conquista a simpatia do gerente de marketing ou do diretor da empresa, o dinheiro é liberado. Eles não estão muito preocupados com a forma, estilo ou conteúdo do filme, ou o retorno financeiro. Predomina aquela velha estrutura de apadrinhamento da sociedade brasileira, já descrito por nossa melhor literatura e sociologia.

Nuno Cesar de Abreu – Acho melhor qualificar como influência, na medida em que uma série de fatores contribuíram para formatar, digamos assim, os projetos no chamado Cinema da Retomada. O cinema brasileiro depois da seca pós-Collor passou por uma renovação de conceitos estéticos, econômicos e de procedimentos tecnológicos. O processo de globalização atinge o cinema em sua base e no Brasil, onde a questão da identidade nacional sempre foi tema de fundo, coloca questões que a produção nacional vai procurar responder.

Deste modo, os próprios projetos tendem a se adaptar aos novos mecanismos de captação de recursos, não necessariamente para cortejar investidores, mas para enfatizar a qualidade do acabamento de forma geral – da dramaturgia, do elenco, da finalização, muitas vezes realizada no exterior etc. Enfim, chegar a uma formatação internacional que o cinema brasileiro pretende atingir. Cabe lembrar que os maiores investidores da Lei do Audiovisual ainda são as empresas estatais.

Nuno Cesar de Abreu é professor do Departamento de Cinema do Insituto de Artes. Realizou vários curta-metragens, entre os quais Mad-Moré, O incrível Sr. Blois, A respeito do Movimento Constitucionalista de 1932, e o longa metragem de ficção Corpo em delito. Publicou O Olhar pornô - a representação do obsceno no cinema e no vídeo, e tem no prelo Boca do Lixo - cinema e classes populares.  (Foto: Antoninho Perri/Antonio Scarpinetti)JU – Por outro lado, mesmo com a extinção da Embrafilme (1990), muitos realizadores captaram recursos em estatais. O senhor poderia fazer uma análise do papel do Estado no cinema nacional?

Fernando Passos – Em muitos países, França por exemplo, o Estado apóia direta ou indiretamente a produção nacional de cinema, com investimentos de risco e mesmo a fundo perdido. Isso porque o cinema é uma arte que faz parte da construção da identidade de uma nação, para sua própria população e para o mundo todo. Com a globalização, isso torna-se ainda mais crucial. Os filmes do Abas Kiarostami nos diz de um Irã, nos traz a imagem de um Irã, bem distante das imagens veiculadas pela política externa dos EUA. Acho que é dever do Estado apoiar não só o cinema mas todas as expressões artísticas , teatro, dança etc. Querer inserir a arte na chamada “cadeia produtiva” é não dar voz aos artistas mas aos marchandes e marqueteiros.

Fernão Pessoa Ramos – Com exceção dos Estados Unidos, cinema só existe quando fortemente subsidiado pelo Estado. Trata-se de uma arte de muito risco, que pode ou não dar retorno. Isto é ponto passivo; o Brasil não é exceção. Houve momentos em que o cinema brasileiro ficou ao Deus dará, como, por exemplo, no início do período sonoro, nos anos 30, época em que produções brasileiras praticamente deixaram de existir durante quase uma década. Nosso cinema é repleto de altos e baixos. A chanchada (Rio de Janeiro, nos anos 40 e 50) e a pornochanchada (São Paulo, na Boca do Lixo, anos 70/80) são exceções. Foram as únicas produções mais amplas do cinema brasileiro que conseguiram subsistir sem o auxílio do Estado – aqui não vai nenhuma avaliação da qualidade estética; ambos, inclusive, foram muito criticados em sua época. Mas foi, sem dúvida, uma produção extensa que floresceu sem o apoio do Estado.

A Vera Cruz, no início dos anos 50, foi uma tentativa breve de cinema fora do Estado, que não deu certo. Com o apoio da alta burguesia paulista, tentou-se replicar um esquema de produção de estúdio, já decadente, que exigia um investimento muito alto. Esqueceram um detalhe: a distribuição. O único filme que fez sucesso, O Cangaceiro, ficou na mão da Columbia Pictures, que abocanhou todos os lucros. Quando tentaram aprofundar a via da comédia popular, aberta a primeiras produções de Mazzaropi, já era tarde demais.

Já a Embrafilme foi responsável pelo auge do cinema nacional em termos de produção. Trata-se de um período em que nosso cinema dominou a América Latina. Obteve, por exemplo, uma porcentagem de ocupação do nosso mercado interno que nunca mais seria alcançada. A distribuidora da Embrafilme realmente funcionava – entramos de maneira forte em todo o mercado latino-americano. De meados dos anos 70 até meados dos anos 80, auge da Embrafilme, houve um forte incremento em termos de captação de recursos, investimento e público. Isso em plena ditadura. Em termos de cinema produzido diretamente pelo Estado brasileiro, tivemos também o INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), que produziu documentários de 1936 a 1966, cuja principal figura foi Humberto Mauro.

Depois que Fernando Collor fechou a Embrafilme de uma maneira selvagem, o cinema brasileiro parou. É importante lembrar que, mesmo capengando, a Embrafilme já era alvo de crítica por parte de todo mundo, e em particular pela classe cinematográfica, o que deu ensejo para que Collor a fechasse numa penada. Outro grande responsável pelo fechamento da Embrafilme foi Celso Furtado, ministro da Cultura de Sarney. Nas exegeses de sua carreira, feitas em sua recente morte, esse ponto passou em branco. No cargo de ministro, ele iniciou o processo de afundamento da Embrafilme, separando a distribuidora e criando a Fundação do Cinema Brasileiro.

No final do governo Itamar Franco e depois no governo Fernando Henrique, já de forma mais aprofundada, criou-se essa nova forma de produção que foi a Lei do Audiovisual, recolocando o Estado na produção, mesmo que de uma maneira viciada. Em meu ponto de vista, até hoje, ainda não se chegou a um bom termo. Não tem sentido o Estado eximir-se completamente da responsabilidade pela qualidade da produção que ele mesmo financia. É importante registrar que, quando se fala de empresa, na realidade, a maior parcela recursos da lei do Audiovisual vem de renúncia fiscal de empresas estatais: Banco do Brasil, Petrobrás, Embratel, na época do Sergio Motta, e agora BNDES.

A iniciativa privada teve uma dimensão restrita no financiamento do Cinema da Retomada. Em termos concretos, e generalizando excessivamente, o que a Lei do Audiovisual fez foi permitir que o Estado voltasse a aplicar recursos no cinema, só que de uma maneira selvagem e fragmentada. Não se tem mais uma política coordenada, centralizada, muito embora seja indispensável frisar que sem esses recursos não haveria o Cinema da Retomada. Esse é um ponto que não devemos esquecer.

Nuno Cesar de Abreu – É melhor não recuarmos muito no tempo. Vamos pensar a partir da criação da Embrafilme. Uma empresa do Estado como a Petrobrás, Eletrobrás etc., voltada para a produção e distribuição de filmes nacionais. No meu entender, a Embrafilme não precisava ser extinta, mas ter seu modelo sendo adaptado às novas questões colocadas pela dinâmica do setor e pela própria sociedade. Além da Embrafilme havia o Concine, que cumpria grande parte das funções de uma agência regulatória. Esta estrutura poderia ir se modificando, conjugadas às leis de incentivo: criando fundos de investimento, formas híbridas de financiamento etc. Mas o que se têm hoje são leis de incentivo ancoradas em renúncia fiscal e uma discussão atormentada sobre a agência estatal que regulará o setor.

Uma coisa é certa, a presença do Estado como uma das interfaces, se não a principal, da produção cinematográfica é necessária. Como aliás ocorre em todos os países da Europa, da América Latina e mesmo nos EUA, onde existe o papel do Estado. Qual a dimensão deste papel é que o Brasil precisa definir.

Esse tema é desgastante. Certamente, uma nação que pretende ter expressão cultural não pode abrir mão de uma cultura audiovisual forte. Até porque o Brasil possui todos os predicados para isso.


"O cinema brasileiro reflete o
mal-estar contemporâneo"

JU – A Retomada é invariavelmente mais vinculada a injunções mercadológicas (número de produções, de espectadores etc) do que propriamente a afinidades estéticas. Os movimentos coletivos perderam força no cinema brasileiro? Se sim, por quê?

Fernando Passos – Perderam e graças a Deus! Os movimentos artísticos que apregoavam uma estética nova, sempre de ruptura com aquilo que estava na ordem do dia, como o expressionismo na Alemanha, o neo-realismo na Itália, o Cinema Novo no Brasil etc. perderam força porque hoje, com a presença do audiovisual na vida de todos, a expressão humana em som e imagem vem fundamentalmente do indivíduo, mesmo no cinema que é por razões técnicas uma arte de produção em equipe. O Dogma é escandinavo, mas e Tsai Min Liang, em Taipé, o que é? Está no Dogma também? E o próprio Kiarostami no Irã? O Beto Brant em O Invasor, o Sérgio Bianchi , O homem que virou suco do João Batista de Andrade? As sintonias de autores distantes no tempo e no espaço nos diz que a criação é fundamentalmente singular, individual, e alcança a universalidade como resposta subjetiva de um autor, um roteirista, um diretor, ao mundo em que ele vive. E só deixa de ser assim quando o cinema vira um puro negócio e passa a anular as individualidades criadoras como provam os inúmeros casos de grandes diretores que foram engolidos por Holywood ou pela televisão.

Fernão Pessoa Ramos – De um lado, o chamado Cinema da Retomada não tem nenhum tipo de manifesto ou proposta estética. Trata-se de um trabalho individualizado. São criações pessoais, com várias tendências. É bom deixar claro que não se trata de um movimento, é mais autoral, no sentido individual, com cada um batalhando o que é necessário para fazer seu filme. O que há de comum é a forma de produção, que partiu do zero, para uma média bastante razoável em torno de 3 dezenas de longa-metragens por ano e ocupação em torno de 10% de nosso mercado (cifras para referência). Se as características são diversas, podemos achar apenas algumas tendências. Mas, além dessas tendências, em termos do conjunto das obras, não houve um movimento coletivo, ao contrário do que ocorria nos anos 60.

Por outro lado, devemos lembrar que esses movimentos coletivos de vanguarda são próprios de um momento histórico específico. No caso do cinema são momentos bem pontuais mas isto se aplica também a outras artes. Podemos citar as vanguardas dos anos 10/20 – surrealismo, cubismo, construtivismo, futurismo e outras – que marcam todo século XX e que retornam nos anos 60 com força, servindo como modelo. No cinema, há o movimento dos “cinemas novos”– o neo-realismo italiano, a Novelle Vague francesa, o novo cinema alemão, japonês, e, no caso brasileiro, o Cinema Novo, que é um movimento marcante no mundo, um dos momentos altos da cultura brasileira no século XX.

Esses “novos” cinemas apontam para a maturidade do cinema no universo das artes. A Nouvelle Vague, por exemplo, foi um movimento de vanguarda muito crítico aos surrealistas franceses e suas experiências cinematográficas. Um movimento que queria ser cinematográfico propriamente, inspirado pela própria história do cinema, por um diálogo com o classicismo cinematográfico, e não com as vanguardas plásticas. No caso do cinema brasileiro, o momento dessas manifestações conjuntas, em torno de uma proposta, ocorreu basicamente nos anos 60 e não se repetiu.

Acho que é um pouco forte afirmar que o novo modo de produção, oriundo da Lei do Audiovisual, obriga o diretor a fazer concessões mercadológicas. Não passa por aí. O que me impressiona mais, conforme já mencionamos, é essa relação de compadrio. Não existe, por exemplo, a pressão do produtor sobre o autor/diretor, como existe nos Estados Unidos hoje e no antigo sistema de estúdio. Como não há preocupação em realizar o valor do que foi aplicado por meio da exibição, os filmes simplesmente não vão às telas e os produtores não se preocupam efetivamente com a utilização do “seu” dinheiro (na realidade do Estado, na forma de imposto). Isso gera deformações graves, como a falta de uma articulação mais orgânica dos grandes financiadores do Cinema Brasileiro com o circuito exibidor. Simplesmente não há vínculo algum. Boa parcela da produção brasileira não chega aos cinemas. Gastamos milhões e o filme sequer é exibido.

Nuno Cesar de Abreu – Desde algum tempo, não temos no ambiente cultural brasileiro movimentos que galvanizem, incorporem tendências, apontem caminhos ou coisa assim. Movimentos desta natureza encontraram condições para serem fertilizados nos anos de 1960 e 70, pois o período continha – por muitos motivos – elementos que provocavam uma efervescência no ambiente cultural. Neste período tivemos o Cinema Novo, o Cinema Marginal, o Tropicalismo, movimentos ideológicos também no campo da poesia e da literatura, da música popular e erudita etc.

Talvez seja uma característica contemporânea, dos anos de 1980 para cá, coincidente com o processo de globalização, a consolidação de uma visão empresarial, mercadológica, uma espécie de olhar de planilha, no qual não há espaço para experimentação e, por conseqüência, para movimentos. Este me parece um processo internacional, não só de país periférico – como o nosso.

Penso que uma das características mais interessantes do chamado cinema da Retomada é exatamente a diversidade. Mas nem sempre essa diversidade chega ao público, pois a distribuição e a exibição privilegiam produções de alto orçamento, de apelo comercial mais evidente etc. - problemas que sempre existiram, é verdade. Mas já se pode perceber, também, que o mercado consumidor brasileiro também já possui diversidade. Há público - demanda, na linguagem mercadológica - para toda espécie de filmes, em alguma escala.

JU – Dos gêneros e subgêneros da Retomada, o senhor destacaria algum?

Fernando Passos – A questão dos gêneros em si é um pouco complexa porque temos muitos filmes que atravessam vários gêneros, mas eu acho que o grande destaque do chamado Cinema da Retomada é aquilo que falei antes da identidade de uma população. Veja agora Os 2 filhos de Francisco, um filme que recupera um Brasil autêntico, que vem lá do interior, da roça para as grandes cidades, reacende esse Brasil em um momento de profunda decepção política, mostra que as raízes da nação brasileira, nossa hospitalidade, generosidade , alegria e fé na vida ainda estão aí pulsando.

O cinema recente trabalha muito isso, não como um movimento organizado, mas como a expressão artística de diferentes cineastas. Central do Brasil, Eu Tu Eles, Lavoura Arcaica e outros trazem as raízes de volta enquanto O que é isso Companheiro, Ação entre Amigos, Lamarca, Cazuza, Madame Satã , A Dona da História, Olga, Carandiru e também outros que agora não me vêm à memória, interpretam um passado recente desconhecido para as novas gerações. Para um passado mais distante me vêm Desmundo, Caramuru, Carlota Joaquina. Todos esses filmes produzem um sentido crítico para os jovens do que quer dizer isso a que chamamos Brasil, a sociedade brasileira.

Fernão Pessoa Ramos – Um traço forte do cinema brasileiro contemporâneo é o que eu chamo de “naturalismo cruel”. Existe uma preocupação, uma obsessão mesmo, que atravessa todo o cinema brasileiro na segunda metade do século XX (e que tem a ver com a constelação social singular do Brasil), que é a representação do popular. É um traço central do Cinema Novo, que permanece nos anos 70 e volta com intensidade no final do século. Nesse movimento de representação do popular vem embutida uma certa “má-consciência” em relação à própria situação do povo e à própria estruturação da sociedade brasileira.

A presença recorrente do povo, surge em boa parte da produção nacional na forma de um realismo muito cru, às vezes escatológico, com cenas abundantes de gritos, exasperação, sangramento, longas agonias, miserabilismo, cercando a representação desse povo. Quando digo escatológico refiro-me a representação detalhada e alongada de aspectos sórdidos das condições de habitação, saúde e vida cotidiana daquela parcela do povo brasileiro excluída da cidadania. É o caso, por exemplo, de Cidade de Deus, Central do Brasil, Como Nascem os Anjos, Contra Todos, Madame Satã, Orfeu, O Invasor, Carandiru, Dois Perdidos numa Noite Suja, 16060, Amarelo Manga, Cronicamente Inviável etc. Existe um acentuado dilaceramento dramático, uma exasperação constante, na representação das emoções dos personagens.

Digo então que esse popular aparece representado pelo motor da má-consciência, que lhe dá a forma cruel ao construir a imagem do povo. É o popular “outro”, não é certamente a imagem que o povo tem de si mesmo. Má-consciência que cerca a posição daquele que enuncia, o autor do filme, diretor/produtor invariavelmente de classe média que se debruça sobre esse outro distante que é o popular. A má-consciência é a medida dessa distância.

Não acho que seja uma representação propriamente negativa, mas ela mostra as entranhas dessa miséria, vista por olhos espantados e culpados, através dessa lente da classe média. Nesse sentido, não existe cinema popular no Brasil. Podemos falar em uma música feita pelo povo, em uma poesia, uma literatura, uma pintura, feitas pelo povo, mas cinema é uma arte que envolve grandes recursos, uma arte dominada por artistas de classe média que conseguem circular nos altos canais de financiamento. Nesse sentido, não há, nem nunca houve, um cinema popular no Brasil. Talvez o choque com o modo de produção cinematográfico seja o responsável pela reiteração da questão do popular no cinema brasileiro, de um modo tão insistente e particular.

Nuno Cesar de Abreu – O documentário. Embora a renovação e o interesse pelo documentário sejam um fenômeno internacional, o filme documentário brasileiro ampliou seu espaço, ganhou expressão, cooptou público. Renovou-se esteticamente, tanto na forma quanto em conteúdos, ampliando seu leque de interesses. Aqui podemos retomar o tema da experimentação de linguagem, arriscar no terreno da criatividade. Com a pasteurização, com exceções é claro, do cinema ficcional, a criatividade, uma busca de experimentação na linguagem e de temas, parecem ter deslizado para a produção do cinema documentário.

Além dos festivais e mostras específicos do gênero, hoje é possível perceber até nos festivais em que a ficção predomina a presença densa de documentários, povocando polêmicas que as ficções não têm mais provocado.

Parece ter restado ao documentário algo muito caro ao patrimônio cinematográfico que são os valores humanistas. E isto é um fertilizante poderoso.

O desenvolvimento da linguagem do documentário sempre foi sensível aos avanços tecnológicos. Câmeras mais leves e som direto nos anos de 1960, por exemplo, foram responsáveis pelo surgimento de novas linhagens de documentários, como o cinema verdade, por exemplo. Importante ressaltar aqui, que a renovação atual passa pela introdução de tecnologia digital, desde a captação à finalização. O vídeo, mais econômico e mais ágil, com seu olhar insinuante, até panóptico, está produzindo cinema da melhor qualidade.

JU – Em que medida a linguagem televisa e da publicidade influenciaram a nova safra? Essa influência é boa ou nociva?

Fernando Passos – Indiretamente, a televisão modificou o cinema mundial e obrigou o cinema a abandonar alguns gêneros, como as chanchadas no Brasil, e se afirmar mais como arte de contar histórias do que como espetáculo audiovisual. Diretamente, a TV gera formatos e produtos cinematográficos, como entre nós os quatro últimos filmes com a Xuxa, que tinham vendido mais de sete milhões de ingressos até o final de 2004. Mas eu acho que a grande influência recente da TV em nosso cinema, e também no cinema mundial, se deu pela revalorização do gênero documentário. A grande procura pelos documentários, principalmente pelo público jovem, é um fenômeno mundial e, na minha opinião, ela responde à necessidade de buscar informação numa forma assumidamente interpretativa e em um timming livre da pressão comercial televisiva.

Esse jornalismo interpretativo que marcou o início da TV, na época fortemente influenciada pelo rádio-jornalismo, desapareceu e é o cinema que o traz de volta, aqui no Brasil, com João Salles, Eduardo Coutinho, Renato Tapajós, Ricardo Dias etc. Quero dizer ainda que a TV no Brasil atua através da experiência dramatúrgica gerada pela produção de telenovelas que funciona como um grande laboratório de narração audiovisual, que fatalmente influencia o cinema, e de forma boa. Não só o cinema brasileiro, mas o cinema latino-americano está respondendo a essa influência de forma muito criativa, nova.

Fernão Pessoa Ramos – A influência da televisão no cinema brasileiro é evidente. A Globo Filmes, por exemplo, entrou com tudo no mercado. Descobriram um jeito de trazer os sucessos televisivos para os sets. Estão aí os exemplos: O auto da compadecida, Os Normais, Casseta e Planeta, além dos filmes protagonizados pelos Trapalhões e pela Xuxa, que vêm desde o anos 80. Mas talvez o veio predominante do cinema brasileiro não tenha muito a ver com Hollywood. O nosso cinema é muito exasperado, tem muito grito, os roteiros não são tradicionais. Existe uma preocupação recorrente, desde o Cinema Novo e que se mantém em largos setores até hoje, que é a de se afastar das normas narrativas tradicionais.

Veja o caso de Cidade de Deus, um filme que estourou dentro desse recorte mais clássico e que provocou fortes reações na mídia por essa vinculação. E é uma obra que acerta na mosca dentro de uma narrativa clássica renovada, com flash backs estranhos, câmeras em movimentos exóticos, roteiro muito bem amarrado etc. Acho significativo que um filme que tenha optado pelo classicismo provoque por isso tamanha polêmica. Por outro lado, existe toda uma produção que passa ao largo da narrativa clássica mais tradicional. Há uma tendência muito forte de bater de frente com essas expectativas.

Nuno Cesar de Abreu – A televisão é um meio pelo qual passam os mais diversos formatos da produção audiovisual: filmes, novelas, jornalismo, talk shows, programas de auditório – estes uma herança do rádio – etc., sendo o cinema o pai de todos. Eu não sei definir com clareza o que se quer dizer quando se qualifica um filme como tendo influência de uma linguagem televisiva. O que me parece estar aí embutido é que o filme se utiliza bastante de planos fechados à maneira das novelas, tem um andamento mais acelerado, planos curtos derivados de uma certa dramaturgia que a televisão desenvolveu, até um elenco televisivo... De todo modo, sugere uma forma crítica, com algum preconceito, de classificar tais filmes como estando aquém do tratamento cinematográfico. Entretanto, acho importante ressaltar que se pode reconhecer um estilo em alguns bons filmes de realizadores formados pela televisão.

Neste sentido, penso que se pode dizer, também, que no Brasil a TV proporcionou a formação de profissionais que podem transitar da TV ao cinema e daí para a publicidade, como, aliás, profissionais de cinema também o fazem. A TV proporcionou o desenvolvimento de roteiristas, da qualidade de atores e atrizes etc.

Mais do que influência estética, o que precisa ser resolvido são as relações empresariais entre o cinema e a televisão. A entrada da Globo Filmes – e de produtoras de outras redes de televisão - no mercado cinematográfico coloca esta questão com muita clareza.

JU – Não são poucos os críticos que apontam nas produções recentes uma glamourização da violência e de cenários recorrentes do cinema brasileiro, entre os quais a favela e o sertão. O senhor concorda?

Fernando Passos – Se, com referência ao cinema brasileiro, essa expressão “glamourização da violência” está associada ao filme Cidade de Deus, do Fernando Meirelles, eu acho isso uma enorme injustiça, porque o que aconteceu de fato é que ele conseguiu uma sintaxe narrativa veloz, moderna no sentido de sua fluência imagética e sonora. Cidade de Deus é um filme de denúncia contra o ineficiente poder público que esquece as populações pobres e se associa, pela corrupção, ao narcotráfico. Mas é um filme bem feito, bonito, bem dirigido, bem interpretado, com excelente pós-produção e há pessoas que acham que a beleza só pode estar presente em filmes que falam das classes sociais com alto poder de consumo.

A favela é recorrente porque ela é a realidade das grandes cidades brasileiras, realidade que não dá para ignorar porque está presente nas imagens que nossos olhos captam diariamente. Mas temos também alguns bons filmes de shopping centers luxuosos. A violência é realmente glamourizada em boa parte dos hits holywoodianos calcados em séries de filmes “nascidos para matar” sempre presentes na tevê.

Fernão Pessoa Ramos – Não sei se glamourização é o termo exato. O termo que acabou consagrado foi “cosmética da fome”, uma boa “trouvaille”, para uso da mídia, derivada do manifesto do Glauber Rocha chamado “Estética da fome”. Traz em si essa reação, essa visão negativa do classicismo cinematográfico, acima mencionada. Na realidade, hoje você tem uma estruturação estética e narrativa do Cinema Brasileiro que não é a mesma dos anos 60. A “Estética da fome” pregava a violência e a crueldade, mas distinta desta que menciono. É uma crueldade que devia estar presente na forma, na narrativa propriamente, o que está distante do cinema contemporâneo. Há também a questão nacional, de uma narrativa nacional (Glauber, por exemplo, vai buscar inspiração na poesia de cordel nordestina para estourar o classicismo) que não se coloca mais hoje.

Na verdade, esse termo glamourização reivindica, por trás, uma narrativa mais radical, que traga a miséria para o próprio narrar, que era a proposta do Cinema Novo. Mas eu não vejo glamourização propriamente. Como já disse anteriormente, o que vejo é uma crueldade, uma dificuldade em se lidar com esse “outro”, que é o povo. Por outro lado, filmes como Estorvo, Lavoura Arcaica, Latitude Zero, Benjamin, Céu de Estrelas, Bicho de 7 Cabeças, Por Trás do Pano, Um Copo de Cólera possuem a exasperação existencial que percorre o cinema da retomada, mas não são atraídos especificamente pela questão do popular. São cruéis, dilacerados, mas consigo mesmo, não com o “outro”.

Nuno Cesar de Abreu – Quanto à violência, não há nada que se compare à barbárie dos filmes americanos. A violência é estrutural no cinema americano atual. E isso forma público para este tipo de espetáculo.

No cinema brasileiro glamour pode se confundir com acabamento, refinamento da técnica, busca de uma misancene de gosto globalizado, elementos que compõem uma tentativa de se produzir um produto esteticamente sedutor.

Glamour em sertão e favela? Curioso que para o Cinema Novo estes cenários funcionavam como metáforas de nosso subdesenvolvimento. Lugares onde, tragicamente, deveríamos superar nossas misérias sociais, políticas, econômicas... A rigor, no cinema atual isto não mudou. Até porque favela e sertão continuam cenários de pobreza e violência, mas atualizados, integrados na contemporaneidade das parabólicas, do hip hop e da internet. Talvez aí esteja o “glamour” – como aspecto negativo - para o crítico ou para a classe média: a inclusão. Despojados, povoado por excluídos, estes cenários ficam mais fáceis de lidar.

O que é preciso observar, também, é que se entranhou na produção cinematográfica brasileira a necessidade de um acabamento segundo padrões internacionais. Este é um dos componentes da tal “cosmética da fome”. Nossos filmes estão ficando de tal modo globalizados, e isto também implica o olhar que se tem sobre a realidade, que é possível ouvir coisas como “é tão bom que nem parece filme brasileiro”.

JU – O Cinema Novo e também o Cinema Marginal pensavam o Brasil e apostavam no arrojo estético e no experimentalismo, muito embora seus filmes fossem poucos vistos – e entendidos. Hoje, em contrapartida, muitas das produções têm bilheterias expressivas mas pecam pela falta de ousadia. Que análise o senhor faz desse cenário?


Fernando Passos – O Cinema Novo e o cinema experimental são de uma época em que a televisão ainda se afirmava como meio de massa e paradigma de comunicação audiovisual. É só lembrar que a TV começou a transmissão colorida no final da década de 60. Com a explosão da TV, o experimentalismo no cinema passou a ser um gênero bastante delimitado, isto é, claramente não comercial. Há festivais de cinema experimental mas com a digitalização do som e imagem hoje ele se misturou com a TV, através do computador. Seu circuito deixou de ser as salas comerciais. O Cinema Novo, como já falei, também foi uma afirmação estética contra um cinema puramente comercial que em boa parte de sua produção não refletia a efervescência que iria acontecer nos anos 60. Hoje, a realidade é outra mas continuamos a ter experimentos audaciosos. Sérgio Bianchi é um artista que não tem medo de ousar; Beto Brant em O Invasor inovou tanto na técnica como na narrativa e muitos outros cineastas se aproveitam do baixo custo da imagem digital para realizar produções experimentais.

Fernão Pessoa Ramos – O cinema brasileiro gosta da ousadia. Nossas produções não só são ousadas como também incomodam, mesmo na forma mais tradicional, como por exemplo em Lavoura Arcaica, uma mistura do esteticismo da Rede Globo com a demanda do carimbo de vanguarda.

O Invasor, Cronicamente Inviável, Quanto Vale ou é Por Quilo, por exemplo, são filmes feitos para explicitamente para chocar. Criticam fortemente a nossa sociedade, o comportamento da burguesia brasileira. Se essa ousadia tem resultados estéticos convincentes temos que avaliar, mas eu sinto que a demanda da radicalidade não só existe como norteia boa parte da produção contemporânea.

Já com relação ao Cinema Novo e ao Cinema Marginal, a época e as propostas eram outras. Conforme já disse, acho que o Cinema Novo tem uma influência forte sobre o cinema brasileiro contemporâneo. Isso vai desde declarações explícitas do Walter Salles até essa questão mal-resolvida da representação do popular. E continua mal-resolvida porque o país continua extremamente desigual.

Nuno Cesar de Abreu – Esta questão é antiga. Em outros tempos dizia-se arte x comércio, experimental x tradicional e vai por aí. No atual mercado globalizado não há espaço para ousadias nem experimentalismos. Um aspecto pouco apontado quando se aborda esta questão é que o público e a crítica também mudaram. Questões de linguagem, que antes fincavam suas raízes no humanismo, hoje estão ancoradas na técnica. Só para dar um exemplo, uma merda de filme como Sin City, que é pura barbárie, é paparicado pela imprensa cultural, fascinada pela tecnologia utilizada, como algo importante.

Está difícil “pensar” o Brasil nos dias de hoje. Mas temos uma parcela da produção que procura equilibrar, muitas vezes em doses desiguais, um cinema autoral com entretenimento (que o mercado requer).

JU – As produções recentes retratam as contradições do Brasil contemporâneo?

Fernando Passos – Creio que sim, como disse antes. Central do Brasil é um filme que reabriu essa temática que foi forte no Cinema Novo e desapareceu no final dos anos 80 quando houve, no meio cinematográfico, uma valorização equivocada de que o cinema deveria ser comercial, entendendo por comercial o que o cinema norte americano produzia com sucesso na época. Filmes de presenças extra-terrestres ou extra-sensoriais, remakes de filmes tipo B etc. Mas a temática Brasil voltou com toda força, não como opção política, mas como energia de expressão estética que tem que se realizar objetivamente.

Fernão Pessoa Ramos – Eu acho que refletem, mesmo involuntariamente. Existe uma parte do cinema brasileiro preocupada com outras coisas – com comédias leves, por exemplo. Esse tipo de filme precisa ser feito, é um espaço que, caso não seja ocupado, vai ficar nas mãos dos estúdios americanos. E existe uma produção que se debate nitidamente com essas contradições do Brasil, que já analisamos atrás. Isso de uma forma recorrente, com um peso que você nem sempre acha nas artes plásticas ou na literatura.

Há uma preocupação, sim, em se pensar a realidade e a história brasileiras. Ao mesmo tempo, existe uma certa interiorização psicologizante que traz à tona a exasperação. O cinema brasileiro reflete diretamente o mal-estar contemporâneo, o mal-estar da sociedade brasileira consigo mesma. A questão da violência, por exemplo, está muito presente. O nosso cinema não esconde o Brasil; ao contrário, ele parece ter um prazer oculto em escancarar as nossas mazelas. Talvez esse prazer, ou falta de timidez, em escancarar a miséria, seja uma forma de espectadores e cineastas purgarem a má-consciência.

Nuno Cesar de Abreu – Algumas sim, outras não. Somente para conduzir um raciocínio, eu gostaria de apontar o filme O Invasor como uma possível metáfora do momento atual do cinema brasileiro. Tal como o personagem que dá título ao filme, um matador de aluguel – uma representação do marginal de hoje -, a produção atual quer ser incluída. Até outro dia, o marginal, bandido, outsider, era um ser anti-social. Ele rejeitava – e isto o definia – a sociedade e seus modos. O marginal de hoje quer fazer parte, incluir-se. E para isso, se precisar, ele invade.

O cinema brasileiro quer se incluir na ciranda internacional do mercado audiovisual e participar de seu próprio mercado, de acordo com o capital internacional. Na massa crítica da produção atual, penso que o Brasil contemporâneo aparece. Neste momento, em que as vísceras da nação começam a ficar expostas, a complexidade da sociedade brasileira e a desigualdade como sua marca profunda têm aparecido num conjunto de filmes.

De todo modo, o cinema brasileiro também possui suas tensões, inclusive institucionais, vide as dificuldades para discutir a agência regulatória - Ancine, Ancinav etc. O cinema brasileiro não escapa às contradições do Brasil contemporâneo. Ele faz parte destas contradições.

JU – O cinema brasileiro, das chanchadas ao Cinema Novo, andava em busca de identidade própria. Parecia haver então uma alternância, se não uma hesitação, entre o modelo europeu e o modelo de entretenimento, mais próximo do cinema americano. Nesse sentido, para onde aponta hoje o cinema brasileiro?

Fernando Passos – A diferença histórica entre o cinema norte-americano e o cinema europeu estava relacionada a alguns aspectos narrativos que um pouco apressadamente poderia ser resumida assim: o americano privilegiando a ação objetiva dos personagens e trabalhando a trilha sonora para facilitar e induzir o espectador na emoção desejada pelo diretor e o europeu (e também incluo o japonês) privilegiando a reflexão, ou seja, a ação subjetiva e trabalhando a trilha sonora no sentido de espalhar uma certa transcendência sobre as imagens reforçando esse clima da “ação subjetiva”. Então, o tratamento do tempo no cinema americano era veloz, com um grande número de planos, ou cortes, e o cinema europeu e japonês com um tempo mais lento e menor número de planos.

Evidentemente, o primeiro tem características de um cinema de massa e o segundo de um cinema mais sutil, mais exigente em relação ao espectador. Hoje, no Brasil, acho que há um equilíbrio em termos do uso que se faz do tempo como elemento narrativo. Nós estamos mais próximos do cinema europeu, que está mais próximo do cinema iraniano, do cinema oriental etc, mas essas diferenças se universalizaram e, em todos os continentes, encontramos realizadores dos dois tipos, o que vale para nós também.

Fernão Pessoa Ramos – Há uma parcela do cinema brasileiro que está bem fincada no entretenimento. A tradição de comédias leves, por exemplo, que vem das chanchadas, se mantém na produção contemporânea. Por outro lado, o cinema brasileiro é carregado desse modelo europeu, mais autoral, mencionado na pergunta. O que nós temos no Brasil é um cinema de autor – é o diretor que faz tudo. Um grande problema do cinema brasileiro é que não há produtores. De uns três anos para cá têm aparecido alguns, mas eles ainda não possuem massa crítica.

O modelo tradicional no Brasil é o do cinema autoral, até mais forte do que o de entretenimento, não em termos de bilheteria, mas em termos de prestígio. Se pegarmos as dez maiores bilheterias da Retomada, com exceção de Carandiru e Cidade de Deus, há uma presença forte desse cinema de entretenimento – que vai de Xuxa a Os Trapalhões, passando pela comédia leve carioca, do tipo Pequeno Dicionário Amoroso. Outro gênero que não cheguei a citar é o da reconstituição histórica, o docudrama, muito forte na Retomada. Podemos lembrar de: Carlota Joquina Princesa do Brazil, Canudos, Lamarca, O Judeu, Quem Matou Pixote, O que Isso é companheiro, For All: Trampolim da Vitória, Baile Perfumado, Corisco e Dadá e outros.

Nuno Cesar de Abreu – A influência do cinema americano é enorme mesmo no próprio cinema europeu. Uma dominação econômica. Mas acredito naquela parcela que mencionei: buscar o equilíbrio entre o autoral e o entretenimento. Mas a diversidade – que também é uma marca brasileira - ainda é o melhor remédio para a vitalidade do processo cultural.

JU – Qual a importância da produção de documentários nesse contexto? Como explicar sua forte presença no cinema brasileiro contemporâneo?

Fernando Passos – Mesmo já tendo falado sobre isso, eu gostaria de acrescentar a valorização que está ocorrendo atualmente em nosso cinema e também no cinema mundial, para aquilo que chamamos de elementos indiciais, ou seja, referências da realidade que atuam como afiançadores da parte ficcional. São personagens, sons e imagens extraídos da realidade que endossam a relação com a realidade de um argumento ficcional nela baseado. Isso aproxima o filme de ficção do documentário e inversamente agrega aspectos imaginativos ao documentário.

Fernão Pessoa Ramos – O documentário está muito forte. Houve um up-grade nos últimos três anos, e na Retomada como um todo, que talvez possa pode ser atribuído à popularização da tevê a cabo, que abriu novos espaços. As pessoas se acostumaram a assistir documentários, descobriram que eles podem ser interessantes. E, dentro do cinema autoral, é um gênero que está ocupando um espaço cada vez mais significativo no circuito exibidor. Temos, por exemplo, Eduardo Coutinho e João Salles, dois documentaristas de padrão internacional em plena atividade. Suas duas últimas obras, Entreatos e Peões, mostram diretores com maturidade estilística, com um domínio pleno do gênero, o que não é fácil de ser conseguido.

Outro documentarista que vem dos anos 60, Wladimir Carvalho, encontra na Retomada condições para manter uma produção contínua. Silvio Back é outro documentarista que vem mantendo atividade constante. Há vários diretores jovens como Paulo Sacramento (O Prisioneiro da Grade de Ferro), Kiko Goifman ('33'), Sandra Kogut (Passaporte Húngaro), Evaldo Mocarzel (À Margem da Imagem), Marcelo Masagão (Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos), Maria Augusta Ramos (Justiça) Roberto Berliner (A Pessoa é Para o que Nasce) e outros que têm apresentado filmes premiados por festivais através do mundo. Podemos dizer que essa forte presença do documentário é uma das características marcantes do cinema brasileiro recente. Aumentou muito o interesse por esse tipo de produção, sobretudo entre os jovens. Os Festivais de Documentário, antes voltados para um público específico, agora estão com salas lotadas. No Departamento de Cinema do IA/Unicamp, sentimos isso através do grande o número de alunos interessados em desenvolver projetos de dissertação e de tese acerca da produção documentária.

Uma das razões para esse novo sucesso de um gênero cinematográfico antigo, talvez seja sua renovação através do contato com uma forma narrativa, influenciada pela sensibilidade das vanguardas. O documentário em primeira pessoa, a autobiografia, está muito na moda hoje, abrindo campo para um experimentalismo mais acentuado. As novas câmeras digitais e os programas para montagem fornecem o pano de fundo para o renascimento do documentário.

Nuno Cesar de Abreu – É a melhor contribuição para o cinema brasileiro nos últimos anos.

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