Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 269 - de 11 a 17 de outubro de 2004
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A reforma modernizadora da universidade espanhola


Reginaldo Carmello Correa de Moraes

A Reginaldo Carmello Correa de Moraes é doutor em Filosofia, professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH) e  do curso de pós-graduação em Relações Internacionais (Unicamp-Unesp-PUC/SP). Assumiu uma cátedra junto ao Centro de Estudios Brasileños  da Universidad de Salamanca, onde ficará até dezembro, para um ciclo  de seminários sobre problemas brasileiros, além de atividades de pesquisa sobre a transição política na Espanha e sobre os experimentos de  expansão do ensino superior naquele país. A iniciativa ocorre no âmbito  do Programa Cátedras Unicamp & Universidades Espanholas.universidade de Salamanca tem vários séculos de existência e sua historia é um retrato das transformações do sistema de ensino superior espanhol. Nascida no século XIII, a USAL foi Importante centro gerador e difusor de cultura na Idade Média, na Renascença e na Ilustração. Inteiramente reformada pela vaga liberal do século XIX, foi também um exemplo da implantação, na Espanha, do modelo francês de universidade.

Até a metade dos anos 1970, eram poucas e pequenas as universidades espanholas. Não mais do que 11, em geral sediadas em instalações que o poder público tomara, por diversos modos, de propriedades da Igreja. Com isso, não eram apenas os espaços que as universidades herdavam: era parte do ritual, do caráter elitista, dos modos de organizar a vida acadêmica, dos gestos e práticas de ensino.

Na metade dos anos 1960, movimentos inconformistas de estudantes e professores começam a empurrar as universidades para mudanças profundas, com a massificação do ingresso, a incorporação significativa da população feminina, a saída de professores para estágios no exterior, a criação de centros de pesquisa e a substituição das cátedras pelos departamentos. Perto de 1968, surgem as novas universidades autônomas de Madrid, Barcelona e Bilbao. As reformas legais mais profundas aparecem na Lei Geral da Educação, LGE, de 1970, cinco anos antes da morte de Franco, como destaca o vice-reitor de planejamento da USAL, J. M. Hernández Dias, a quem devo muitos dos dados que utilizo aqui.

São reformas modernizadoras nas estruturas e normas gerais, mas conviviam comPlaza Maior, em Salamanca, cujo espaço livre é ponto de encontro de estudante e da população aquilo que o regime permitia, no restante: uma política tradicionalista, do ponto de vista dos conteúdos e das formas de pensamento toleradas. A reforma demorou para “pegar”. E o sistema demorou para ampliar-se rumo à massificação, que se daria no final dos anos 70 e, sobretudo, durante os governos socialistas.

Assim, cresce o número de estudantes de nível superior: em 1970 – 352 mil; 1975, 538 mil; 1980, 698 mil; 1985, 935 mil. Entre 1968 e 1973, foram criadas onze novas universidades públicas. E, entre 1977 e 1982, mais sete. Nascem, também, as Universidades Politécnicas, reorganizando e agrupando instituições de ensino antes separadas. Criam-se novos campus e colégios universitários nas instituições já existentes. Em praticamente toda a Espanha, são colocados sob a égide das Universidades os estudos universitários de curta duração e de caráter técnico-profissional, as “Diplomaturas”, as Escolas de Magistério, as Escolas técnicas.

A LGE de 1970 estrutura o ensino superior, no nível de graduação, em dois ciclos (como ainda é hoje, em essência), sendo que as instituições podem oferecer cursos da seguinte maneira:

-primeiro ciclo exclusivamente, de 3 anos, conferindo o título oficial de diplomado universitário, professor, engenheiro-técnico ou arquiteto-técnico;

-primeiro e segundo ciclo: nestas, a obtenção do primeiro não dá direito a nenhum titulo, só a completar o segundo, quando se obtém, então, o grau de licenciado, engenheiro ou arquiteto. Duração de 4 ou 5 anos, exceto Medicina (6 anos)

-instituições que se dedicam apenas a ensino de segundo ciclo (mais dois anos): podem ingressar os estudantes que concluíram o primeiro, diretamente, ou mediante a realização de disciplinas complementares, de adaptação. É o sistema de “pasarelas”, similares aos “transfers” do sistema norte-americano de junior/senior colegges.

Com as “pasarelas” , pretende-se que um estudante que faça um primeiro ciclo tenha acesso a um segundo de outra carreira. Mas a regra não se aplica a todos os cursos e carreiras. Existem aquelas que devem ser selecionadas desde o começo, como Direito,

Medicina, Farmácia, Veterinária, Psicologia, etc.

E as universidades privadas? Sim, existem, e há bom tempo. Em Salamanca mesmo, há a Universidade Pontifícia, criada em 1941 e atualmente com uns 5 mil alunos. Nasceu como resultado dos bons relacionamentos entre Franco e o Papa Pio XII, que abençoara o regime. Esta origem, contudo, não garantiu a Franco nenhum alinhamento ideológico automático. Pelo contrário, houve momentos, como no mandato de João XXIII, que a UP acolheu duros críticos do regime. Várias outras instituições privadas católicas surgiram, em Madrid, Navarra, Bilbao. Apenas em 1992, contudo, surgem as universidades privadas empresariais, com fins lucrativos. E cresceram muito no governo conservador do Partido Popular.

Ah, atenção, ensino superior público não quer dizer gratuito. As taxas – em média, dependendo do curso e carreira, de uns mil euros anuais – cobrem, no caso de Salamanca, por exemplo, pouco menos de 1/3 dos custos da instituição. Há perto de 50% dos estudantes com bolsas, que lhes garantem o pagamento dessas taxas e, em outros casos, também a alimentação e o transporte, por exemplo. Isto faz com que, nas universidades públicas espanholas, haja uma representação estatística das classes de renda baixa e média-baixa bastante mais significativa do que no Brasil. A decisão sobre taxas e bolsas depende da declaração de imposto de renda, que aqui, contudo, diferentemente do Brasil, é um instrumento sério.

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Na manhã do último domingo de setembro, rumou para Salamanca um pedaço da “Espanha profunda”. Caravanas de ônibus turísticos despejavam señoras y señores muy elegantemente trajados. Carregavam grandes pálios, cajados e bastões prateados, faixas cruzando o peito, medalhas pendendo de pescoços, bolsos e lapelas. Dirigiam-se a uma capela, em que se celebraria a Peregrinação Nacional de Irmandades e Confrarias. Circunspetos fiéis levavam seus filhotes, certamente para educá-los na sadia crença. Mas estes não pareciam tão preocupados com a transcendência e os rituais. Aqui e ali comentavam sobre o momento de abrir las botellas e cantar la malaguena, la salerosa.

“Una España que muere y otra España que bosteza”, dizia Antonio Machado. Talvez, para jovens como estes, dubiamente participantes de peregrinação que visivelmente não é a sua, o poeta tivesse escrito: “Españolito que vienes al mundo te guarde Diós; uma de las dos Españas ha de helarte el corazón”.

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Foi com a Espanha profunda que os socialistas trombaram no seu primeiro governo, nos anos 80. O ministro da educação de Felipe Gonzalez, o cientista político Jose Maria Maravall, resolveu levar a sério seu republicanismo. Contestou a existência de aulas de religião (católica, por supuesto) nas escolas públicas (católicas, por supuesto), com professores pagos pelo estado. E condicionou subvenções a algumas regrinhas básicas de cidadania: que não houvesse discriminação aos estudantes com outras crenças ou sem crenças religiosas, que houvesse representação de professores, funcionários e usuários na administração das instituições receptoras de fundos. Coisinhas como essas... Grita geral da hierarquia (não, necessariamente dos católicos, das hierarquias, sim)

Agora, Zapatero bate nas mesmas duas teclas. E tem igual recepção dos bispos. A isso se somam três outras polêmicas decisões, promessas de campanha: aperfeiçoamento da lei do aborto, o divórcio e o casamento de homossexuais. Quanto ao divórcio, já se brinca que os curas agora terminam cerimônias matrimoniais recitando: até que Zapatero vos divorcie... E quanto aos gays e lésbicas, os bispos dizem que o governo está cunhando moeda falsa, reconhecendo direitos que não existem e, acreditem, “espalhando um vírus mortal para a sociedade espanhola”. Não, não é brincadeira: é citação literal.

Zapatero foi pessoalmente à TV, para dizer que era preciso acabar com uma discriminação de séculos. A polëmica vai render.

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As relações dos católicos com socialistas, comunistas e republicanos sempre foram algo tensas, nem sempre, porém, nem em todos os níveis, tão conflitiva. Em alguns momentos, todo o contrário se passou. Acaba de sair um livro, de um professor de Cadiz, sobre os cristãos e marxistas na luta anti-franquista. Vasto estudo, detalhando e dando muito mais substância a algo que eu já tinha visto, há perto de 30 anos, quando começara a me interessar pela reconstrução do movimento operário e popular espanhol, sob a ditadura.

Creio que jamais será possível exagerar a importância, para o crescimento da “esquerda social” espanhola, de duas grandes igrejas: a comunista e a católica. Graças a suas amplas redes de contatos, legais ou clandestinos, elas colocaram à disposição do movimento operário e popular canais por onde se difundiam informações e experiências e por onde, de quando em quando, encontravam apoio e refúgio militantes cujos nomes tivessem caído nas fichas da polícia ou nas listas negras dos patrões.

Muitos heróis anônimos – e outros depois famosos – começaram suas caminhadas redentoras em reuniões que se realizavam em paróquias suburbanas, sob a proteção das batinas – la blindage de las sotanas, rangiam os tiras de Franco.

A HOAC (Hermanedad Obrera de Acción Católica, ACO, no Brasil) e a JOC (Juventud Obrera católica) forneceram um grande número de lideranças para o movimento popular e para o sindicalismo clandestino de Comisiones Obreras. Nessas frentes de massa, eles trabalhavam ombro a ombro com comunistas, republicanos, socialistas, anarquistas. Só não trabalhavam com o diabo, porque este parecia mais ocupado nos jantares e brindes que os cardeais ofereciam ao caudillo de España por la gracia de Diós y de la Virgen Maria. Cada um com seu Deus. Os cristãos da periferia recitavam outras orações: “no puedo cantar, ni quiero a este Jesús del madero sino al que anduvo en la mar”

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Entre 1950 e 1975, a Espanha passou por uma transformação econômica em alguma medida similar à do Brasil (1950-80): aceleram-se a industrialização, a urbanização e as migrações internas. Há diferenças, porém. Entre elas, uma notável emigração, para países da Europa Ocidental, principalmente: diariamente, mais de 200 espanhóis deixavam o país, totalizando 1, 12 milhões entre 1961 e 1975.

A migração interna foi intensa, concentrando gente nas regiões de grande crescimento da indústria e da construção civil: Barcelona, Madrid, províncias bascas. Madrid-região, por exemplo, concentrava 6,9% do total do país em 1950. Passou para os 11,2% em 1970.

A capital cresceu, mas seu entorno também. Ao longo do eixo sul, com a indústria metal-mecânica, principalmente, vicejaram os pueblos de Getafe, Móstoles, Leganés, Alarcón. No eixo leste, ao longo da estrada que vai para Barcelona, Alcalá de Henares. Você leu com atenção a terrível notícia sobre as bombas em Atocha, em março de 2004? Então, deve lembrar desses nomes: é por aí que passam os trens suburbanos, a extensão recente do metro madrileno, construída exatamente para atingir essa periferia proletária. Quem conhece São Paulo pensaria, claro, no ABCD, em Guarulhos, em Osasco. Não estaria de todo errado…

Mais de um milhão e meio de migrantes chegaram à província de Madrid entre 1940 e 1975. Esse movimento foi responsável por 65% do crescimento de sua população nos anos 1950, 58% nos anos 60, 37%, nos 70. Atingiu níveis altos a população que residia em Madrid e suas ¨cidades-satélites¨, mas que havia nascido fora: sempre algo em torno de 50%, em 1970.

A maioria desses ¨desplazados¨ possuíam unicamente estudos primários. Dirigiam-se para a construção civil e para os serviços domésticos, depois para a indústria. Não, não estou falando de Diadema nem de Osasco.

Esse movimento concentrou o proletariado para que pudesse ser utilizado e controlado pelo capital, claro. Mas, também, estimulou a criação de novas redes de solidariedade e novos hábitos coletivos. Foi nesses bairros e pueblos obreros que se formou a esquerda social do antifranquismo. Aí construíram não apenas suas casas, mas também seus instrumentos de luta, os grupos católicos, maoístas, trotskistas, socialistas, o velho Partido Comunista, as Comisiones Obreras, . Cultivaram, nesses bairros, nas suas associações de vizinhos, paróquias, bares e esquinas, o viveiro de uma cultura da resistência. Sim, novos personagens entraram em cena, para lembrar a frase de nosso saudoso Eder Sader, a respeito de fenômeno tão parecido, na Grande São Paulo. Esse quadro, por si só, já constituiria fascinante motivo para escrever a história da Espanha recente, com um olho no Brasil - e vice-versa. São semelhanças, não são coincidências, são filhas de um mesmo movimento, aquele que avassala o mundo, não mais sob o signo da cruz, mas do cifrão.

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Anotem essa data: 2 de novembro de 2004. Os americanos votam, talvez, por um segundo mandato para Bush. Inicia-se o congresso do PP, o partido da direita espanhola. Dois de novembro, dia dos mortos: premonição?

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Reginaldo Carmello Correa de Moraes é doutor em Filosofia, professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH) e do curso de pós-graduação em Relações Internacionais (Unicamp-Unesp-PUC/SP). Assumiu uma cátedra junto ao Centro de Estudios Brasileños da Universidad de Salamanca, onde ficará até dezembro, para um ciclo de seminários sobre problemas brasileiros, além de atividades de pesquisa sobre a transição política na Espanha e sobre os experimentos de expansão do ensino superior naquele país. A iniciativa ocorre no âmbito do Programa Cátedras Unicamp & Universidades Espanholas.

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