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Muito além da clínica e do consultório
Pesquisa revela que a abordagem da Doença de Alzheimer
não deve se restringir à área das ciências médicas

CARMO GALLO NETTO

Fernanda Miranda da Cruz, autora da tese: fatores isolados dificilmente poderiam explicar a Doença de Alzheimer  (Foto: Antoninho Perri)Doença de Alzheimer (DA) do ponto de vista clínico é uma patologia cerebral do ti­po degenerativa, com aspectos neuropatológicos e neuroquímicos característi­cos. Afeta os processos cognitivos, dentre os quais a memória, a linguagem e a atenção, comprometendo o funcionamento mental e social. Devido ao seu caráter progressivo, pode se desenvolver lenta e continuamente durante vários anos.

Dada a complexidade de aspectos envolvidos no entendimento da perda da cognição humana, além dos temas predominantes nas pesquisas biomédicas, várias formas de abordar a doença assumem cada vez mais relevância na agenda das pesquisas, partindo de perspectivas como as da antropologia, da psicologia e da lingüística, que são algumas das áreas do conhecimento envolvidas na abordagem da DA.

Foi na área de Lingüística que a doutoranda Fernanda Miranda da Cruz desenvolveu uma tese sobre a linguagem na DA, num convênio de co-tutela entre a Unicamp e a École Normale Superiéure em Lettres e Sciences Humaines, de Lyon, na França. Na Unicamp, a pesquisa foi desenvolvida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), orientada pela professora Edwiges Maria Morato, que atua no laboratório de Fonética, Psicolingüística e Neurolingüística (Lafape-Labone). Em Lyon, a co-orientação foi da professora Lorenza Mondada (ENS-LSH).

A linguagem, diz Fernanda, é um dos aspectos alterados na DA, observável através da perda das habilidades comunicativas, de palavras e através de repetições que se tornam mais recorrentes com o avanço da doença. Nesses casos, normalmente, a linguagem é investigada através de testes que utilizam métodos quantitativos e da criação de contextos artificiais para a produção verbal. Ela explica que estava interessada em investigar o que acontece com a linguagem nos quadros de DA quando considerados fora de ambientes experimentais e artificiais de produção, mas em situações reais de seu uso na vida cotidiana.

Para isso, a pesquisadora registrou em vídeo conversações de pessoas diagnosticadas com distintos interlocutores, tais como médicos e familiares em situações cotidianas, tanto em ambientes institucionais – casas de repouso, hospitais, consultas clínicas etc – como em ambientes familiares.

A metodologia utilizada consistiu, com anuência dos doentes e circunstantes, no registro em vídeo e áudio de suas interações, sem a intervenção mais direta da pesquisadora ou aplicação de formulários de perguntas e testes. A filmadora normalmente era fixada em lugar combinado e o início e o fim dos registros foram controlados pelos participantes não-doentes – no caso, familiares ou médicos.

Da pesquisa participaram 22 doentes em estágios leve e moderado, junto com seus interlocutores. Os sujeitos selecionados são pacientes regulares do Ambulatório de Neurologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e de outros serviços de saúde no Brasil e na França. Do material coletado resultou um corpus de 40 horas de linguagem natural de sujeitos com DA, chamado corpus DALI (Doença de Alzheimer, Linguagem e Interação). Desse corpus, constam conversas que se deram durante refeições familiares, programas de TV, jogos de cartas, visitas familiares a doentes que vivem em instituições, consultas clínicas, etc.

Ela esclarece que a linguagem nos três estágios básicos da doença – inicial, moderado e avançado – se modifica e a descrição encontrada na literatura existente consegue reconhecer essas modificações. No entanto, explica a pesquisadora, ainda ficam algumas lacunas com relação à linguagem em uso e uma descrição mais próxima do que acontece nas práticas lingüísticas dos sujeitos. “Nesse contexto é que entra a lingüística de forma mais efetiva. Podemos nos perguntar se os aspectos que seriam considerados “externos” ao indivíduo e seu cérebro estão relacionados aos contextos vividos e atuais como, por exemplo, se a pessoa vive em instituição ou com a família e se encontra bem inserida nela; se vive num ambiente rico de interações; se depois do anúncio do diagnóstico houve mudança nessas interações vivenciadas antes da manifestação da doença; e como interpretar as influências do grau de escolaridade nas avaliações, entre outros. Essas são perguntas importantes para que se possa dizer se e como essas variáveis revelam-se pertinentes para o entendimento do declínio da linguagem e como explicam o processo de declínio cognitivo”.

Segundo Fernanda, se essas variáveis ditas externas têm influência na degeneração do quadro, não se pode falar em declínio cognitivo apenas no sentido mental, mas é preciso ampliar a sua noção e pensá-lo como sócio-cognitivo. Fernanda ressalta que é preciso levar em consideração que influenciam o declínio tanto as estruturas cerebrais afetadas como a organização social em que a pessoa se insere, além do seu histórico de vida.

Análise e resultados
Com base em distintas situações interativas envolvendo rotinas diárias dos portadores da DA, Fernanda verificou os efeitos dessas situações sobre a linguagem dos doentes, descrevendo-as. As investigações mostraram que há contextos mais – ou menos – favoráveis à comunicação desses sujeitos. Ela diz que, com relação às características lingüísticas, o estudo mostrou de forma mais especifica que as limitações – lingüísticas, mnêmicas e cognitivas – manifestadas na interação social não exibem uma forma única cuja descrição possa ser feita com base apenas na produção lingüística do portador da DA, provocada em situações experimentais.

A pesquisa procurou mostrar como a patologia cerebral altera a linguagem. Mas revelou ainda que o anúncio do diagnóstico da DA também altera as rotinas lingüísticas dos seus portadores e de seu entorno social. Nos casos analisados, Fernanda encontrou um número significativo de interações em que os familiares evocam episódios passados relacionados à vida dos pacientes, com o objetivo de verificar-lhes a acuidade da memória. Esses episódios confrontam o doente com seus déficits de memória e parecem indicar, segundo ela, que há modificações nas rotinas sociolingüísticas deles e de seus familiares. A respeito, ela afirma que “mudanças desse tipo revelam que entender a DA não significa entender apenas o que acontece no nível cerebral, mas também compreender toda uma estrutura social na qual o doente se insere”.

As pessoas acometidas pela patologia experimentam mudanças significativas na vida pública e privada, relacionadas à administração de bens, às decisões de internação e de escolha de tutela, ao estabelecimento de novas rotinas sociolingüísticas e de lugares institucionais. Ademais, os familiares mais próximos se vêem ainda muitas vezes às voltas com o diagnóstico de uma patologia que desconhecem e com o medo de virem a desenvolvê-la mais tarde.

As análises feitas pela pesquisadora mostraram as inter-relações entre os níveis lingüísticos – fonéticos, fonológicos, sintáticos, semântico, as corriqueiras e diversas práticas cotidianas de linguagem; o papel dos interlocutores; as instâncias interativas e as rotinas sociais – ou a ausência delas –, cujos aspectos influenciam na descrição da linguagem nos quadros de DA. Para ela “o reconhecimento dessas variáveis é fundamental para um entendimento do que acontece na linguagem na DA. A investigação da linguagem não deve, dessa forma, se restringir às produções individuais daquele que é acometido pela DA, mas também é preciso olhar para as práticas lingüísticas dos portadores e daqueles que interagem com o doente”.

Outras ‘desorganizações’, da rotina à vida social

A DA e a linguagem na DA têm sido explicadas e descritas a partir de um modelo biomédico comprometido com um paradigma cognitivista que privilegia sobretudo as relações entre estruturas neurológicas afetadas e declínio cognitivo, com ênfase nos processos neurodegenerativos. Como o empreendimento de refletir sobre a perda da cognição não se desvincula de uma reflexão sobre sua constituição, Fernanda propõe em sua tese que a noção de “declínio” deveria ser estendida a um nível de desorganização global que só poderia ser compreendida levando-se em consideração ao mesmo tempo a desorganização das estruturas internas do cérebro e a desorganização, em distintos níveis, da vida social e das práticas e rotinas interativas humanas.

Para ela, a compreensão da natureza sócio-cognitiva do declínio está relacionada com as limitações do doente, mas também com as formas pelas quais a linguagem se reorganiza diante dessas limitações, com o papel que a linguagem e as ações do interlocutor desempenham na possibilidade ou não da realização de atividades sócio-cognitivas.

Ela enfatiza que a qualidade da vida social e das práticas interativas podem influenciar na progressão ou no retardamento da DA. Ela lembra que as interações sociais, as práticas intersubjetivas de linguagem e a memória constituem condições para a nossa existência humana e para a manutenção da participação ativa dos sujeitos com Alzheimer na vida social. Para ela, considerar apenas os fatores neurocognitivos na DA pode levar a uma redução do sujeito a suas estruturas neurológicas e mentais comprometidas.

Em suma, a pesquisadora conclui que, sendo a DA uma patologia que afeta a cognição humana, os fatores cognitivos, genéticos, neurológicos, sociais isolados dificilmente poderiam explicá-la. É preciso pensar a mente humana para além do que é cerebral. E diz que se a afirmação não é nova, vale a pena insistir em sua reafirmação, porque não se pode esquecer que existe um paradigma predominante. “Tradicionalmente, a DA tem sido um objeto de investigação do campo das pesquisas biomédicas, mais particularmente, do campo das pesquisas neurológicas e neuropsicológicas. Nesses campos, as pesquisas sobre a cognição, sobre o processamento lingüístico-cognitivo e sobre as alterações lingüístico-cognitivas inserem-se, majoritariamente, numa tradição quantitativa e experimental e partem, muitas vezes, de uma concepção representacional e localizacionista da mente humana”.

Aplicações
Com os resultados obtidos na pesquisa, Fernanda Miranda da Cruz espera contribuir, em relação aos portadores da DA, para o diagnóstico, o prognóstico e os métodos de avaliação da linguagem e das capacidades sócio-cognitivas relacionadas à vida pratica e social; para uma descrição original das suas características lingüísticas; para a compreensão das suas capacidades e das limitações cognitivas, psíquicas e comunicativas. A pesquisa visa contribuir ainda para as práticas terapêuticas e as interações entre eles e os profissionais de saúde – porque subsídios teóricos e práticos com relação às implicações que as formas interativas têm sobre as atividades sócio-cognitivas do doente podem fornecer indicativos importantes sobre a forma de como proceder nas condutas terapêuticas. Além disso, ela espera contribuir para a definição das formas de acompanhamento dos familiares e do entorno social através da consideração de que a interação desempenha um papel importante na possibilidade de participação dos doentes. Do ponto de vista mais teórico, suas expectativas estão voltadas para a compreensão das relações existentes entre linguagem e cognição humana.

 

 
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