| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 381 - 26 de novembro a 2 de dezembro de 2007
Leia nesta edição
Capa
Opinião: retorno de Marx
Educação e Sociedade 100
2020: Frota movida a hidrogênio
Aços microligados
Assinatura molecular
Células-tronco
Arte e brinquedo
Submedição de água
Mulher no mercado de trabalho
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Livro da semana
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Contos Unicamp Ano 40
 


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Fernando Pessoa, meu caro Watson...

MARISA LAJOLO

Ilustração: Prof. Francisco Borges FilhoO texto que segue constitui anexo da tese apresentada por Alexander Search à University of Cape Town com o título The construction of autorship in 20th century Portugal. Uma nota de rodapé informa que o texto foi encontrado no espólio do Barão de Teive, arquivado na Fundação Gulbenkian (proc. 10.646: 2v), e que portava o selo Reservado.

... pois, meu rico senhor, sou, sim, Fátima Soares Caeiro, sua criada para o servir. Meu marido era o finado Alberto, de que me ficou o sobrenome Caeiro, que tomei quando o senhor vigário nos casou num meio-dia de fim de primavera. Meu Alberto morreu em 1915. Morreu quebrando pedras nas terras do Barão de Teive para calçar a estrada do Solar. Sei, meu senhor, hoje me dizem que a estrada não é mais a mesma, nem mais bela, nem mais feia. Mas creio que por debaixo dela há ainda de haver as pedras que meu Alberto quebrava com marreta. Quebrava pedras e, de tanto quebrá-las, quebrou-se-lhe algo por dentro. Toldou-se-lhe o juízo para sempre. Ficava a repetir que era guardador de rebanhos sem rebanhos. Que a trovoada caía pelas encostas do céu como um pedregulho enorme e que não acreditava em Deus porque nunca O tinha visto. Este ofício de quebrar pedras foi a sua desgraça, meu senhor. Vivíamos na herdade do senhor Barão, meu Alberto lidando nas cocheiras e arando a terra e eu, quando calhava, cuidando das videiras e da vindima. Era de ver-se a beleza da festa depois da colheita, antes de pisarem as uvas. Vinham elas num carro de bois a chiar, manhãzinha cedo pela estrada. Mas o menino do Senhor Barão veio com a idéia de calçar a estrada. Ele veio do estrangeiro, não sei bem de onde, sei apenas que não foi nem das colônias nem do Brasil. Desde miúdo vivia agarrado aos livros e noites havia — Cremilda, sua antiga ama o contava — que lia tanto, que pela manhã ainda lhe ardiam os olhos e tinham de fazer-lhe compressas de camomila. Veio cheio de novidades, e ficávamos todos aparvalhados ouvindo-o contar que havia casas empilhadas e car­roças que se moviam a si mesmas. Automóveis, chamava-as ele. E dizia que comprara um lá no estrangeiro, que havia de trazê-lo para a terra do pai e que não havia o automóvel de transitar pela lama e pela poeira da estrada, que a velha estrada prestava apenas para passagem de animal que fica lembrada no chão. Como eu lhe dizia, meu senhor, meu Alberto não foi cavouqueiro a vida inteira, não senhor, que não foi pra isso que o trouxeram lá da terra dele. Como já lhe disse, eu cuidava das vinhas do Senhor Barão, e muito boas eram elas. E pela fama delas vinham amigos do filho do Senhor Barão. Lembro-me de dois deles: o Senhor Álvaro e outro rapaz, o Senhor Fernando. Moços distintos que ficavam a dar trela a meu Alberto. Mas isso foi depois... misturo os tempos nesta cabeça minha, meu senhor... parece que um vento muito leve passa e me desmancha as idéias. Meu Alberto vivia dizendo que nunca tinha guardado rebanhos, pois claro que não, pois que trabalhava era nas cocheiras e pisava o estrume que estercava as vinhas. Os moços vieram a ver as festas. Moços da cidade, diziam coisas que se não entendiam. E queriam nos fazer crer a nós que eram um de nós. E que éramos como eles. Como se o fôssemos, como se o pudéssemos ser... Pois os rapazes tomaram-se de graça com o meu Alberto, que no entardecer dos dias de verão púnhamos sentadito debaixo da figueira, aquela mesma que — dizem-me os netos — até hoje lá está ao pé do outeiro. À noite, o luar através de seus altos ramos punha sombras na relva. O meu Alberto gostava, e os rapazes pediam-lhe que contasse do tal rebanho que ele dizia ter guardado, das estrelas e das árvores. Umas vezes traziam papéis e tomavam notas enquanto meu Alberto desfiava suas histórias. Não, meu senhor, repare bem em mim, não tenho leitura nem escrita, que meu finado pai achava que estas coisas não eram para mulheres, então não sei o que os tais senhores escreviam nos papéis, só digo o que hoje me contam os filhos de minha Catarina, que me fazem a graça de pagar este convento onde vivo minha velhice, à espera de reunir-me com meu Alberto e com os filhos que a guerra nas colônias levou. Bons filhos eram eles e eles se foram. Bom homem era o Alberto e ele se foi. Mas meus netos, filhos de minha Catarina, hoje aqui me trouxeram perante o senhor, senhor notário, para que eu lhe conte a história de meu Alberto que comigo viveu e morreu e de quem ouvi as sandices que hoje meus netos me contam — estão escritas em livro, onde também está escrito que elas vieram da cabeça dos amigos do filho do Senhor Barão, aqueles rapazes, creio que um deles era um senhor engenheiro, que ficavam de graça com meu Alberto. Os meus netos me dizem, senhor notário, desculpe, senhor, no meu tempo era notário que se dizia, não me parece justo que se diga que meu Alberto — que os inventou de sua própria cabeça — não existiu e passem, ele e seus dizeres, por invenção desse senhor Fernando, que ao lado do outro amigo do filho do Senhor Barão, tiravam graça a meu Alberto, enquanto comiam figos e bebiam vinho. Sim, senhor notário, ouvi tantas vezes meu Alberto a delirar, que decorei muito do que dizia. Dizia e repetia que o Sol era um grande borrão de fogo sujo, que as coisas não tinham nome e outras sandices que — meus netos me contam — estão em letra impressa nos livros do senhor Fernando. Posso jurar pelas chagas de Cristo que tudo o que neles me disseram lá estar escrito eu ouvi sair da boca de meu finado Alberto, que Deus o tenha em sua santa Glória, e se esses moços puseram em escrito o que meu Alberto dizia não é justo que digam que eles o inventaram, pois que isto não é verdade. Já é ruim roubarem-lhe as palavras, meu senhor, mas muito pior é roubarem-lhe a existência. Meu Alberto existiu, sim, mas nada tinha do que me dizem dizer o livro do senhor Fernando a respeito dele. Não, senhor notário, não se trata de dinheiro. Nada me falta aqui entre as bondosas irmãs redentoristas que agasalham meus anos avançados, sabe Deus que quase todos já cumpridos. É que não me parece justo saírem moços por aí a desfazer dos velhos. Menos ainda dos velhos enfermos como ficou meu Alberto depois que, ao levantar uma pedra de certo superior a sua força, quebrou alguma coisa dentro de si e deu-lhe de dizer coisas como ser sua aldeia tão grande como uma terra qualquer ou que seu olhar era azul como o céu. Olhar azul o dele, senhor notário... A mim me parecia que era por caridade que o senhor engenheiro, amigo do filho do Senhor Barão, trouxe o senhor Fernando, e que também por caridade ambos davam trela a meu Alberto, mas hoje meus netos me dizem que não era caridade. Que escreveram em livro tudo que meu Alberto engrolava em sua meia-língua de cabeça lesada. E que inventaram a história de que eles é que tinham inventado tudo aquilo e também inventado o meu Alberto. Diz o senhor notário que eu deveria sentir-me honrada? Mas repare o senhor no­tário que a história só desfaz de meu pobre Alberto, como se fosse ele criatura criada no juízo alheio e não homem de carne e osso, como — com o perdão da palavra — Vossa mesma Excelência. ­Quero apenas justiça, senhor notário. Que se saiba que meu Alberto foi homem verdadeiro. Que não era nem loiro nem pálido nem tinha os olhos azuis. Era negro. E sua cor, ainda que desbotada pelo sangue de seu pai, aparece na pele deste meu neto Bernardo que aqui me acompanha hoje para desenhar as letras de meu nome no papel em que aquele outro senhor está escrevendo tudo o que aqui digo em nome da verdade.

Marisa Lajolo é paulistana, mas foi criada em Santos. Estudou letras na USP, onde defendeu seu mestrado e doutorado. É professora titular aposentada da Unicamp e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É autora de vários livros e ensaios sobre literatura e de um romance: Destino em aberto.

Conto integra livro

O conto Fernando Pessoa, meu caro Watson..., de Marisa Lajolo, integra o livro Contos – Unicamp Ano 40, recém-publicado pela Editora da Unicamp, como parte das comemorações do quadragésimo aniversário da Universidade. A obra reúne 38 contos inéditos, escritos por autores de várias partes do Brasil.

A escolha do material que compõe a publicação foi feita a partir de um concurso nacional, realizado em 2006. Participaram 670 autores. Na ocasião, a Unicamp premiou os três melhores contos, selecionando outros 35 para a publicação do livro. O texto de Marisa Lajolo alcançou a primeira colocação.

Uma noite de autógrafos reunirá nos próximo dia 27 de novembro (terça-feira) alguns dos autores que participam da coletânea. O evento ocorre a partir das 18 horas, na Estação Santa Fé Pizza Bar – Av. Albino J.B. Oliveira, 1.265, no distrito de Barão Geraldo, Campinas.

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