| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU |Edição 344 - 20 a 26 de novembro de 2006
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Renda do brasileiro
Morfologia do trabalho
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4-5

A nova morfologia do trabalho e
os (des)caminhos do sindicalismo

Foto de Sebastião Salgado que ilustra a capa do livro “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil”: obra organizada por Ricardo Antunes tem mais de 500 páginas e contempla linha de pesquisa que reuniu 18 alunos do IFCH (Foto: Sebastião Salgado)Este livro não é apenas a melhor referência de hoje sobre o tema, mas um documento que deveria ser paradigmático para todo trabalho coletivo na pesquisa científica”. O comentário, feito pelo sociólogo Francisco de Oliveira para a “orelha” do livro Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil (Boitempo Editorial), sintetiza a contribuição e a importância da obra para a compreensão dos fatores que transformaram o mercado de trabalho, a partir da década de 1990, com o advento da reestruturação produtiva.

O livro é fruto da pesquisa coletiva “Para onde vai o mundo do trabalho? As formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil”, cuja coordenação ficou a cargo do sociólogo Ricardo Antunes, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Financiados pelo CNPq, os estudos, que tiveram início no começo de 2000, vão ser aprofundados. Integram o grupo 12 doutorandos, cinco mestrandos e três graduandos com bolsas de iniciação científica, todos do IFCH, além de dez docentes de outras universidades.

“Trata-se de pesquisa orientada por uma dada forma de conceber a sociologia do trabalho, que recusa a neutralidade ao tratar da realidade fabril e de serviços. Assim fazendo, esperamos contribuir para uma melhor intelecção da particularidade do capitalismo recente no Brasil e da configuração assumida pelo mundo do trabalho, em que a riqueza e a miséria estão presentes de modo relacional, dando forma e conteúdo à nossa formação social”, escreve Antunes na introdução, acrescentando em seguida que “o receituário definido no Consenso de Washington desencadeou uma enorme onda de desregulamentação nas mais distintas esferas do mundo do trabalho”. O sindicalismo é contemplado no escopo dos trabalhos.

Esse esforço de pesquisa está sintetizado no livro, que conta ainda com artigos de autoria do filósofo húngaro István Mészáros e do economista Marcio Pochmann, docente do Instituto de Economia da Unicamp. A obra reúne ao todo 23 artigos e está dividida em três grandes temas: 1) a explosão do desemprego e as distintas modalidades de precarização do trabalho; 2) as formas diferenciadas da reestruturação produtiva do capital e a nova morfologia do trabalho; e 3) dimensões da crise do sindicalismo: caminhos e descaminhos. Antunes revela nuances e as principais conclusões da pesquisa na entrevista que segue.

JU – O que aponta o conjunto de pesquisas do livro?
Antunes – Nós conseguimos desenhar, nessa pesquisa, alguns traços da nova morfologia do trabalho no Brasil. Constatamos que não se trata mais de uma precarização circunstancial, oscilante, mas estamos presenciando uma precarização estrutural do trabalho. Este é o dado mais forte e presente nas diversas categorias e ramos de trabalho estudadas. Para crescer e competir hoje, é preciso aumentar a produtividade; para aumentá-la, é preciso reduzir custos, fazer a “liofilização organizacional”. Isso significa entrar numa guerra na qual o padrão chinês de remuneração da força de trabalho joga o salário dos trabalhadores no nível mais baixo possível. O desemprego decorre desse estado de coisas.
É interessante constatar que, nesse novo desenho, temos também muitas diferenças. No setor metalúrgico, por exemplo, você tem uma mesma empresa como a Volkswagen, que está desestruturando sua fábrica no ABC e, ao mesmo tempo, conta em Rezende, no Rio, com uma planta flexibilizada, cujos trabalhadores são inteiramente terceirizados.

Na região de Campinas, por exemplo, a Toyota só contrata trabalhadores jovens, de 20 anos de idade ou pouco mais, sem experiência sindical e política, sem passado taylorista e fordista. E, de preferência, solteiros, para que possam engajar-se no projeto de “envolvimento” da empresa.

JU – Quais são as atividades que enfrentam retração e as que mais se expandem?
Antunes – Constatamos que, paralelamente ao definhamento de setores como calçadista e têxtil, há uma explosão do trabalho do telemarketing. São cerca de 600 mil, sendo que mais de 70% dessa força de trabalho é composta por mulheres. As condições de trabalho são muito duras. O ritmo e a intensidade das atividades, as doenças como LER [lesões por esforço repetitivo] nos bancos e telemarketing, são típicas da era da informatização do trabalho. O que nos levou a outra constatação: em plena época do maquinário informacional, estamos presenciando a fase da informalização do trabalho.

Há também um processo muito significativo de “feminização” do trabalho, presente em vários ramos e setores, o que acompanha uma tendência também presente nos países de capitalismo avançado. Mostramos também que atividades pouco estudadas anteriormente, como o canto lírico e as orquestras – que são trabalhos mais requintados –, sofreram as conseqüências dessa reestruturação produtiva. O trabalho do cantor lírico, por exemplo, já é por natureza marcado pela forte individualização e pela alta competição entre o número restrito e qualificado de artistas. Num contexto que desregulamentou também esse setor, a quase virtualidade do trabalho também se acentua.

A pesquisa conseguiu desenhar setores “tradicionais” e “modernos”, mostrando as formas diferenciadas da informalidade mais aguda – o camelô, o perueiro, o motoboy etc. São aqueles que trabalham quase que na franja do sistema. Ocorre que esse mesmo sistema depende deles para poder funcionar. Isso ofereceu um desenho multifacetado do trabalho. Não houve, porém, um setor que não tivesse marcado por esse traço de precarização.

Por fim, paralelamente a isso, todos os setores exercem algum tipo de resistência. Diziam, por exemplo, que os bancários não podiam mais fazer greve – a categoria foi reduzida, setores desapareceram ou foram reorganizados, como o de compensação – mas ainda assim os sindicatos exercitam formas de ação e resistência. Nas fábricas, há uma revolta muito surda contra esse estado de coisas. Do boicote mais individualizado à produção (e à produtividade que se amplia reduzindo as condições de trabalho) às ações mais coletivas. Tudo isso aparece longa e detalhadamente no livro.

Ricardo Antunes, coordenador da pesquisa coletiva: “A precarização do trabalho não é circunstancial, mas estrutural”JU – Em que medida os trabalhadores são afetados por esse processo?
Antunes – A chamada polivalência ou multifuncionalidade é, no fundo, a intensificação dos ritmos, dos tempos e dos movimentos do trabalho no mundo produtivo. Ser polivalente é trabalhar muito mais. Aquela aparência de empresa “moderna e humanizada” tem na sua essência uma empresa que utiliza modalidades muito pretéritas de trabalho. São formas antigas que vão sendo recuperadas, além do prolongamento da jornada em vários ramos. Tudo isso está marcado por um intenso processo de precarização, que denomino estrutural. Essas constatações estão presentes até mesmo nos setores mais qualificados e avançados. Trata-se de um mundo que cria riqueza e agrega valor, mas que tem um traço marcante dessa inserção na globalidade do capital dada pelas distintas formas de precarização e perda do trabalho.

JU - Onde está a riqueza e onde está a miséria?
Antunes – O Brasil já foi a sétima, oitava do mundo – hoje está próximo da 15ª posição. Se imaginarmos ainda que o país, junto com o México, é a maior economia da América Latina, fica demonstrado que há um potencial de produção de riqueza muito grande, que vai da indústria aos bancos, do comércio à agricultura. Entretanto, o mesmo contingente de 80 milhões de trabalhadores que compreende a nossa população economicamente ativa, que produz essa riqueza, tem como resultante uma classe trabalhadora empobrecida, freqüentemente marcada por níveis de pauperização e mesmo de miséria, seja material, seja imaterial ou espiritual.

Essa miséria, portanto, não afeta apenas o contingente de desempregados. Esse empobrecimento atinge também uma parcela significativa de trabalhadores empregados, como, por exemplo, no setor informal, amplamente analisado no livro. Essas mesmas condições são vivenciadas também por trabalhadores assalariados no ramo têxtil e de calçados, por exemplo, dado o fechamento de milhares de postos de trabalho. A idéia do título do livro foi explorar essa dialética da riqueza e da miséria.

JU – O que os estudos mostram sobre a informalidade? Quando foi acionado o gatilho que jogou nas ruas milhões de trabalhadores?

Antunes – O Brasil tinha, no passado recente, até meados dos anos 70, um nível de informalidade que era muito inferior. A nossa inserção nessa explosão da informalidade deu-se fundamentalmente ao longo da década de 90, quando o país viveu movimentos que foram intensos.

JU – Quais foram?
Antunes – O primeiro foi o fato de a nossa reestruturação produtiva ter chegado relativamente de uma forma tardia. Nos países do centro, ela teve início em meados dos anos 70 e se intensificou na década seguinte. No Brasil houve um ensaio tímido em meados dos 80, mas ela veio de maneira explosiva na década de 90. Foi um movimento avassalador.

O segundo movimento deu-se por essa reestruturação ter coincidido com a implantação no país da pragmática neoliberal, que culminou com a desregulamentação da economia, a liberação das importações e o início da flexibilização do trabalho. No governo Collor isso se iniciou, mas no de Fernando Henrique Cardoso, como não foi possível alterar a CLT na sua espinha dorsal, porque havia muita resistência dos sindicatos, ocorreu um duplo movimento. De um lado, as empresas começaram a implantar, na concretude do seu dia-a-dia, uma “flexibilização forçada”. E, para isso, o governo Fernando Henrique tomou algumas medidas que foram flexibilizando e desorganizando (da margem ao centro) o mercado de trabalho no Brasil.

Uma delas foi dar respaldo jurídico para que o empresariado impusesse essa flexibilização. Em meados dos anos 90, nós começamos a ver a informalidade saltar de 15%, 20% para 40%. Se a gente pensar a informalidade no sentido lato, hoje ela já se aproxima da casa dos 60%, o que significa algo em torno de 48 milhões de pessoas, abrangendo uma gama muito variada de setores.

JU – O que mais chama atenção nessa reestruturação no conjunto dos trabalhos?
Antunes – Algumas conclusões são importantes. A primeira, que tem a ver com o fato de ela ter se dado tardia, mas intensa e concentradamente na década de 90. Quando veio, foi para valer. A combinação desse caráter tardio com a intensidade fez com que, em uma década, o Brasil se transformasse.

A segunda constatação importante é que o taylorismo e o fordismo no Brasil, muitos fortes na gênese da industrialização brasileira, na primeira metade do século XX, têm sofrido forte alteração. Mas, nos vários ramos estudados por nós, ainda há muitos elementos de continuidade, combinando com claros traços de descontinuidade. Vivemos, então, uma espécie de industrialização oriunda do taylorismo e fordismo que se reestrutura, frente à chamada era da empresa flexibilizada, preservando elementos tanto de continuidade quanto de descontinuidade.

JU – O que isso quer dizer?
Antunes – Se o taylorismo e o fordismo ainda não morreram no Brasil, a indústria que seguiu o seu desenho foi fortemente afetada. Por outro lado, todos os ramos pesquisados no livro sofreram fortemente influxos dessa era da acumulação flexível, da chamada reengenharia, da empresa enxuta. De tal modo que compreender a particularidade da industrialização e do setor de serviços no Brasil, implica numa análise cuidadosa de cada ramo ou setor. O Brasil é ainda um pouco taylorista em algumas áreas, muito em outras, mas todos os setores analisados sofreram o impacto dessa reestruturação. De tal modo que, enquanto movimento tendencial, já não somos mais um país exclusivamente taylorista ou fordista, mas presenciamos uma clara hibridez entre formas remanescentes do fordismo/taylorismo com elementos oriundos do chamado toyotismo e, em especial, da chamada acumulação flexível. Isso porque todos os setores estudados foram bastante afetados por esse ideário e essa pragmática que marcam a reengenharia da chamada empresa moderna.

JU – O Brasil estava preparado para essa reestruturação? De quem é responsabilidade por termos chegado a esse estado de coisas?
Antunes – Nós vamos aqui caminhar em direção a outra leitura e concepção, na contramaré. Ela foi tardia porque houve resistência dos trabalhadores. Foi um movimento positivo porque aos trabalhadores cabe a defesa de seus interesses e de seus direitos. Se ela estivesse vindo anteriormente, a precarização seria ainda anterior. O fato de ela ter vindo tardiamente não é um defeito, mas sim um mérito, quando o olhar foca o universo do trabalho.

JU – Por quê?
Antunes – Por que o sindicalismo brasileiro, nos anos 80, caminhou na contracorrente do sindicalismo internacional. Enquanto no sindicalismo dos países avançados já havia uma crise ampliada, nós tivemos aqui uma década dourada. Bastaria dizer que em 83 nasceu a CUT e, depois, outras centrais vieram na esteira. Tivemos ainda a Constituinte de 86 a 88, com os sindicatos pressionando muito para que ela garantisse direitos aos trabalhadores, para que fosse socialmente positiva. Podemos dizer, hoje, depois da onda neoliberal (e social-liberal) que ela é bastante razoável no plano dos direitos do trabalho.

Tivemos também uma vaga grevista imensa nos anos 80 que impediu que esse processo destrutivo viesse anteriormente. Foi a época da explosão do novo sindicalismo, ajudando a tirar o Brasil da ditadura militar. As forças sociais do trabalho exercitaram muita potencialidade, o que travava essa reestruturação produtiva, que era obra dos capitais. E é preciso dizer: assim como ela é considerada positiva para os capitais, ela é destrutiva para o trabalho. Houve um embate. Por outro lado, nos anos 80, tivemos a primeira metade sob a ditadura militar e a segunda sob o projeto do PMDB. Mas não foi o governo Sarney que alavancou o neoliberalismo no Brasil.

A imposição da chamada globalização encontrou no projeto de Collor e, depois, no de Fernando Henrique, o seu deslanche. Vejo esse retardo, portanto, como um fato positivo. O país que sai agora não é a 7ª, 8ª economia do mundo, mas sim um país muito mais empobrecido e subordinado. Basta comparar a trajetória dos últimos 20 anos da China e da Índia com a do Brasil. Nós estamos em rota de descenso, enquanto eles tiveram uma rota ascensional. E é bom lembrar que aumentam intensamente as explosões e revoltas sociais na China de hoje.

JU – Em que medida esse sindicalismo combativo dos anos 80 foi se enfraquecendo ao longo da década de 90? A que o senhor atribui isso?
Antunes – Pela combinação desses pontos. A reestruturação produtiva mexeu fundo nas empresas. Só para se ter uma idéia, o ABC paulista chegou a ter 240 mil trabalhadores em seu apogeu, na época do milagre; hoje tem menos de 100 mil. Os bancários chegaram à casa do um milhão e são pouco mais de 400 mil. Campinas chegou a ter 70 mil metalúrgicos e hoje tem 48 mil. Houve então uma retração quantitativa em vários setores que compõem a classe trabalhadora de perfil mais tradicional.

O segundo elemento é que, com a desregulamentação da economia e com a mundialização dos capitais, registrou-se um aumento da concorrência entre as empresas – as indústrias de calçados, têxtil e automobilística foram afetadas. A de calçados, por exemplo, está agonizando. A pesquisa mostra que a indústria têxtil perdeu, em algumas de suas grandes empresas, de 50% a 70% dos trabalhadores. Paralelamente e dentro dessas medidas de flexibilização/ precarização, a terceirização se expandiu.

JU – Quais foram os efeitos?
Antunes – Com a terceirização da produção, várias empresas eliminaram seus trabalhadores estáveis – contratam quando tem produção, e demitem quando há retração da economia.

O terceiro elemento, que é um componente ideopolítico importante, foi o fim da União Soviética, na virada dos anos 80 e começo dos 90. Houve uma avalanche ideopolítica que se celebrizou na fala de Margareth Thatcher (“Não há alternativa”) ou ainda na fala apologética de Fukuyama (“O fim da História”). Havia a idéia de que o capitalismo finalmente era vitorioso e de que o socialismo tinha morrido. Isso empalideceu muitos organismos de esquerda, sindicais e partidários, que estavam aprisionados ao modelo soviético. Com o fim da União Soviética, então, muitos abandonaram a perspectiva de avanço da esquerda (sindical e partidária) e migraram, mais ou menos lentamente, para o lado conservador.

JU – Como se deu esse processo no Brasil?
Antunes – Vários dos antigos militantes sindicais do Partido Comunista Brasileiro (PCB), por exemplo, foram para a CGT e depois migraram para a Força Sindical. Paralelamente a esse empalidecimento da esquerda (especialmente, mas não só) ligada ao projeto soviético, houve também um quarto movimento: a social-democracia, que tinha um claro sentido reformista e social dos anos 20 aos 50, foi empurrada nos 70 e 80 para a agenda neoliberal, gerando o social-liberalismo. E esta migração da esquerda socialista ou comunista para posições mais à direita, e da social-democracia para a agenda neoliberal, enfraqueceu muito o mundo do trabalho. É um conjunto de mudanças que tocaram na materialidade e na subjetividade. Isto fez com que, no caso brasileiro, o mundo do trabalho e sua a representação sindical fossem profundamente alterados.

Bastaria dar dois exemplos. Um deles é a migração que a CUT faz para o sindicalismo negocial, de parceria, mais moderado. O outro é a migração que o PT faz, que se consolidou agora com a vitória de Lula. Deixou de ser um partido de esquerda para virar um partido tradicional, que faz política como os demais fazem. Tornou-se o que venho, há um bom tempo, chamando de Partido da Ordem.

JU – O senhor mencionou as eleições. Elas foram marcadas pela polêmica a respeito das privatizações. Que análise o senhor faz delas nesse quadro mais geral do mundo do trabalho?
Antunes – O efeito foi intenso. O Brasil tinha um tripé que estruturava nosso padrão de acumulação, que era formado pelos setores produtivos nacional e internacional e pelo capital produtivo estatal. Este último, que ia das telecomunicações, siderurgia, petróleo à energia elétrica, foi intensamente desestruturado com a privatização dos anos 90. Para o mundo do trabalho, essa privatização teve uma conseqüência imediata. A adoção desse caminho, da privatização do mundo público, enfraqueceu e desorganizou um pilar importante do sindicalismo dos trabalhadores no setor público.

Empresas que tinham 15 mil trabalhadores registraram uma redução para menos de um terço. O Banco do Brasil, estudado no livro, passou por uma reestruturação profunda, mesmo sem privatizar, que desempregou parcela significativa dos bancários que tinham estabilidade. Os PDVs [plano de demissão voluntária], conforme constatou nossa pesquisa, foi um elemento muito desestruturante no mundo do trabalho bancário. De repente, depois de muitos anos de trabalho, eles recebiam a informação que teriam de demitir-se voluntariamente; do contrário, seriam demitidos involuntariamente.

A terceirização, a precarização e o desemprego foram os principais resultantes desse processo de privatização. Por isso que foram crescendo os bolsões de informalidade. De um lado, o mundo privado enxugava, precarizava e desempregava. De outro, o mundo público enxugava, terceirizava e também desempregava. Expandiram-se os camelôs, os perueiros, os donos de pequenos empreendimentos, os chamados “empreendedores”, o terceiro setor, enfim, todas as aquelas atividades que estão mais à margem do mundo industrial e de serviços, que, acrescente-se, encontram-se cada vez mais imbricados.

JU – Voltando ao sindicalismo. Que avaliação o senhor faz da chegada de quadros inteiros ao poder central?
Antunes – Esse sindicalismo que foi pujante nos anos 70 e 80, com uma vontade clara de construir uma autonomia dos trabalhadores em relação ao Estado e ao capital, entrou nesse turbilhão nos anos 90. Ao sair desse turbilhão, na segunda metade dos anos 90 e no início dos anos 2000, estava muito diferente. O primeiro elemento é que esse sindicalismo envelheceu precocemente ao ficar prisioneiro dessa reestruturação produtiva, dessa onda neoliberal, além de manter vigentes, como herdeiros da CLT, elementos da velha estrutura sindical da primeira metade do século XX.

Acabou abraçando um ideário, quer pela via dos sindicatos negociais, quer dos sindicatos de parceria, preconizado pelo sindicalismo europeu. Foram muito intensas as parcerias com as centrais da Europa. É como se fôssemos copiar as atividades do velho sindicalismo da França, Alemanha e Itália, típicas da social-democracia dos anos 80 e 90. Tudo isso acoplado a um sindicalismo que era juvenil e forte nos anos 70 e 80. A adesão a esses elementos e as mudanças intensas no mundo do trabalho levaram à adequação do “novo sindicalismo” à ordem.

Quando o governo Lula chega ao poder em 2002, há um outro movimento paralelo. Essas lideranças sindicais, parte delas oriunda da esquerda – seja da esquerda tradicional, da esquerda católica ou daquela que estava fora da órbita dos PCs – se junta àqueles que vieram do chamado sindicalismo autêntico, como é o caso de Lula, por exemplo. Foram sindicalistas que entraram no sindicalismo sem experiência política anterior. O que nos 70 era um “sindicalismo apolítico” acabou fazendo, nos anos 80 e 90, com que a atividade sindical fosse uma escada para chegar à política. E, chegar à política, não mais provido dos elementos que marcaram a origem da CUT e do PT, mas sim de um mundo onde predominava o desmonte das ideologias.

Muitos dos setores do sindicalismo viram nessa ascensão aos órgãos do Estado, essa subida – primeiro do sindicalismo para o Parlamento, depois do Parlamento para as os ministérios, a direção das empresas estatais etc –, como forma de ascensão social e a adesão aos valores dominantes.

JU – Dá para generalizar?
Antunes – Isso se deu principalmente na tendência dominante dentro da CUT – a Articulação Sindical , que viveu intensamente esse processo. Não diria que esse processo é de despolitização, mas de troca de uma ação sindical combativa e com contornos políticos nos anos 80, para uma política subordinada à ordem e cada vez mais negocial e parceira do capital.

Essa ascensão sócio-política fez com que parte deles, hoje no poder, se sinta muito confortável, seja como políticos ou como parceiros de uma política destrutiva que negavam no passado e hoje navegam com desenvoltura. Desde a gestão de fundos políticos, a ascensão pelos fundos de pensão, para não falar na participação de tantos deles nos casos de corrupção. Um traço muito impressionante é que todos esses escândalos que atingiram o governo Lula – do mensalão até o dossiê – têm a significativa presença de ex-sindicalistas que foram parte desse novo sindicalismo. Isso é sintomático do nível de deterioração desse processo. De sindicalistas a “analistas simbólicos”, chegaram à “grande política” para reproduzirem a “velha política”, o contrário do que propugnavam há 20 anos atrás.

JU – Mas nem todos eram egressos desse novo sindicalismo.
Antunes – As origens são de fato diferentes. Enquanto Lula entrou na ação sindical sem nenhuma experiência política anterior, Gushiken e muitos outros tiveram uma grande militância na esquerda. Digamos que esse movimento é heterogêneo na sua gênese. Mas as mutações dos anos 90 e o pertencimento de todos à tendência Articulação Sindical, que domina a CUT, foram conformando as subjetividades sindicais distintas, que por sua vez foram se moldando a esse projeto de ascensão social, de despolitização no sentido do sindicalismo de esquerda e crítico, assumindo uma outra politização no sentido de adequação à ordem.

Se no passado, eles tinham grande diferenciação na origem, no presente eles formam um bolo muito assemelhado. O que diferencia hoje Gushiken, Berzoini, Lorezentti, Bargas? Todos são servidores do rei...Todos fizeram tudo o que foi necessário para que o PT permanecesse no poder. Não houve, nessa processualidade, nem limite político, nem ideológico e nem ético.
Vamos aos exemplos: desde a atuação nos fundos de pensão, jogar pesadamente no sentido de privatizar a Previdência pública, fazer as “reformas” que o Fernando Henrique quis fazer e que na época a CUT e o PT foram contra, e depois acabaram por implementar. Até fazer as privatizações. O PT diz, com razão, que o governo FHC foi privatista, o que é verdade; só não diz que ele também o foi. O que são as PPPs [Parceria Público Privada]? Elas nasceram com neoliberalismo inglês, no governo Margareth Thatcher. O que é o PróUni, se não o incentivo privatista do ensino superior em detrimento de um salto que poderia ser maior no ensino público.

Enquanto Fernando Henrique privatizava no cenário nacional, Palocci privatizava no cenário de Ribeirão Preto. A Prefeitura de Santo André privatizava na cidade. Ou seja, o PT também foi privatista nos anos 90, só que em microescala. O PSDB foi em macroescala. O governo Lula só não foi mais privatista porque quase tudo já havia sido privatizado anteriormente. Como acabamos de presenciar, a crítica das privatizações na campanha de Lula, foi decisão de marketing político, para obstar o avanço do tucanato no primeiro turno.

A campanha ideológica contra a privatização foi importante para Lula encontrar um antídoto à proposta anticorrupção, que era a bandeira do Alckmin. Quem vê o PT em campanha, pensa que o partido é contra as privatizações. O governo não fez revisão de nenhuma privatização, nem das mais escandalosas, e privatizou o que pode. Chegou ao limite, impensável no PT dos anos 80, de taxar os aposentados brasileiros e iniciar o desmonte da previdência pública.

JU – O que o senhor espera do segundo mandato?
Antunes – É muito difícil fazer um prognóstico. Posso ter uma intuição. Fernando Henrique se reelegeu com muita tranqüilidade. No segundo mandato, a população cansou.

O primeiro mandato de Lula, boa parte foi exercido na corda bamba, desde que explodiu a crise do “mensalão”. No último ano, o governo Lula fez o que todo político tradicional faz: abriu o Tesouro e jogou pesado. Ampliou a ação assistencialista, de modo a diferenciá-la daquela praticada por FHC. No mais, manteve a mesma ortodoxia da política fiscal, a mesma política financeira de juros altos, a mesma política econômica do superávit. Mas não tocou em nenhum tema candente, como a reforma agrária e quando o fez, como no caso dos transgênicos, foi cedendo acintosamente aos ditames dos grandes conglomerados, com os quais o governo Lula conviveu de modo muito confortável.

Acho que o segundo mandato deve ser mais difícil para Lula. Ele começa sem a resolução do escândalo do dossiê contra Serra, que teve participação direta de pessoas do comando e da intimidade de Lula. Isso sempre será usado pela oposição em momentos de crise. O governo já nasce, então, com essa mácula.

O segundo ponto é que não se pode imaginar, com tranqüilidade, que a economia vai caminhar, nos próximos quatro anos, em céu de brigadeiro como foi no primeiro período. Acho que nós entraremos num período de muito mais turbulência. E também os movimentos populares, como o MST, vão cobrar muito mais de Lula do que no primeiro mandato.


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