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DIÁRIO DE LISBOA

Portugal do presente
embarca na nau do futuro

EDGAR DE DECCA
Especial para o Jornal da Unicamp

O recém-inaugurado estádio do Sporting, em Lisboa: a velha capital cantada em verso e prosa está ficando para trásAviso aos amantes do futebol: Portugal já faz parte da Europa. Na semana passada, por curiosidade, fui conhecer o novo estádio do Sporting de Lisboa. Vocês não acreditam a que nível de sofisticação chegaram os europeus. O estádio é maravilhoso. Em toda a sua volta há um shopping center imenso, com 16 salas de cinema e dezenas de butiques. Um novo templo do lazer e do consumo da nova Lisboa, contrastando de modo agressivo com a velha capital. Os sinais são mais do que evidentes. Ao lado deste estádio moderníssimo, ainda é possível avistar as ruínas do velho campo de futebol do Sporting.

Nos finais de semana, a família toda vai se divertir neste novo templo. Os pais levam seus filhos homens para o futebol e as mães, com as amigas, levam suas filhas para o shopping center e aos cinemas. Tudo em família, com muitas diversões interativas. A acústica deste monumento é maravilhosa – não se ouve nenhum barulho da torcida de dentro do centro de compras. No último andar, estão as salas de cinema e uma megalanchonete, de onde pode-se ver detalhes deste novo estádio. Esta lanchonete gigante fica no andar superior do shopping center, onde também funcionam as cabines de televisão e rádio do estádio.

É tudo muito espetacular. O estádio é todo coberto, e as pessoas estão protegidas do sol e da chuva. Mas o que mais impressiona são as suas poltronas todas coloridas. O efeito é bárbaro – mesmo com o estádio vazio, tem-se a impressão de que ele está completamente lotado. O Pacaembu, em São Paulo, se não me engano, também coloriu as poltronas, mas o efeito é diferente, porque as cores não estão misturadas. Nas transmissões de jogos pela televisão, mesmo que o estádio do Sporting não esteja muito cheio, as cadeiras coloridas dão a impressão de que há muita gente na arquibancada.

Este estádio foi inaugurado em agosto último e, recentemente, no último 24 de outubro, também foi inaugurado o megaestádio do Benfica. Este último, eu não tive ainda a oportunidade de visitar, mas todos dizem que é também maravilhoso. São os sinais de que Portugal, finalmente, já faz parte da Europa, mesmo que a cidade de Lisboa carregue tantas ruínas do passado, em suas dezenas de casas e prédios envelhecidos.

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Por sinal, o contraste entre o novo e o antigo é ainda maior hoje do que tempos atrás. Aquela antiga Lisboa imersa na saudade, que guardava todo o passado dentro de si, recusando-se ao presente e ao futuro, está em vias de desaparecimento. Cantada em verso e prosa, a velha Lisboa está ficando para trás.

Hoje, o imperativo é outro. Trata-se de construir um Portugal do presente, imaginá-lo projetado como uma nau para o futuro, deixando nas lembranças do passado aquela Lisboa que foi já a capital da nostalgia e da saudade. Ah! Ia me esquecendo. Do Brasil, os portugueses importaram, além das novelas, o Felipão Scolari, que continua com aquele ar lamurioso e cheio de suspeitas, a maioria delas infundadas.

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Tratar das relações Brasil-Portugal é sempre prazeroso. Há reciprocidade nas trocas, que são menos desiguais do que com outras culturas. Por exemplo, se o fado é brasileiro e foi levado ainda cedo a Portugal com o retorno das cortes, por volta de 1840, Carmem Miranda, esse ícone nacional, transferiu-se com a família de Portugal para o Brasil ainda criança. Nenhum dos dois é o que parece ser. Ambos foram ressignificados em suas novas moradias. Com o fado, eu nunca tive muita familiaridade. Quando criança ouvia-o na vitrola, cantado por Amália Rodrigues, cantora apreciada por meu pai.

Associava essas melodias melancólicas e nostálgicas àquelas outras brasileiras carregadas de negatividade, como Negue (Adelino Moreira), Risque (Ary Barroso) e Nunca (Lupicínio Rodrigues). Ouvia também os discos da Maísa, com Meu mundo caiu Tudo no negativo. Minha geração cresceu aprendendo a dizer não.

Por isso, a bossa nova pareceu-me tão transgressora. Menos por seu conteúdo contestador, mais pela sua coragem de dizer sim. Lembro-me da positividade das primeiras canções do Tom Jobim, entre elas Chega de Saudade, Eu sei que vou te amar, Brigas, nunca mais e os inesquecíveis versos de Discussão, "Pra que trocar o sim por não, se o resultado é solidão". O Chega de Saudade parece que está atingindo, agora, os portugueses. Pelo menos, é isto que alguns pensadores e literatos daqui esperam do novo Portugal. Não deixa dúvida As naus, romance de Lobo Antunes, carregado de metáforas.

Antunes passou a ser mais conhecido no Brasil depois que a Unicamp colocou o seu livro Os cus de judas, indicado na lista da prova de redação de vestibular. Em seu livro As naus, a metáfora da viagem é poderosa e a volta dos portugueses para casa, depois da aventura da colonização, acontece de modo insólito e desconcertante. Devolvidos ao país de origem, os colonos portugueses estão a representar o oposto do rei Dom Sebastião, este sim, embarcado em uma viagem sem regresso. Uma revolução do tipo daquela da bossa nova está chegando tarde a Portugal e de modo muito angustiante, com uma imensa dificuldade de se dizer sim ao presente e ao futuro.

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Em cartaz nos cinemas de Lisboa, um filme magnífico sobre os novos tempos de Portugal. Trata-se de Um filme falado, a mais nova criação do prestigiado cineasta português Manuel de Oliveira. A crítica européia recebeu o filme com entusiasmo. Para o italiano La Repubblica, o filme é “simplesmente genial”; para o inglês The Guardian, “sublime”; para o francês Libération, o filme “deixa o espectador arrebatado”. A obra presta homenagem a três grandes atrizes do cinema europeu: a grega Irene Papas, a italiana Stefania Sandrelli e a francesa Catherine Deneuve.

As três juntas representam momentos grandiosos da nossa civilização. Irene Papas, a Grécia Clássica da democracia, berço da cultura ocidental; Sandrelli, a Itália do Renascimento, e Catherine Deneuve, a França da Revolução, do Iluminismo e dos Direitos Humanos. Elas estão a bordo de um navio que cruza o Mediterrâneo em direção à Índia, sob o comando de um experiente capitão americano. Na verdade, o filme é narrado do ponto de vista de uma professora de história que aproveita a viagem do cruzeiro marítimo à Índia (onde irá se encontrar com o marido) para ensinar lições do passado para a sua filha de 7 anos.

O filme é falado em várias línguas, como que a representar esta comunidade européia de muitas culturas e identidades. As atrizes que representam os três momentos da cultura do Ocidente se comunicam em suas próprias línguas e se entendem mutuamente (a comunidade européia como uma Torre de Babel revisitada, onde todos, finalmente, se entenderiam). Apenas a professora de história é obrigada a falar uma língua que não é a sua, isto é, precisa se comunicar em inglês, porque o português não é entendido pela comunidade destas outras europas.

Nesta mesma viagem, feita no passado por Vasco da Gama no caminho à Índia, encontra-se a professora de história. Entretanto, agora, não é um português que comanda o navio e nem tampouco ele cruza o Cabo da Boa Esperança. Faz a viagem pelo canal de Suez. Não vou lhes antecipar o final do filme, porque é desconcertante e de uma imensa força metafórica. Ele remete à reflexão dos destinos de Portugal, este país banhado pelo sentimento de saudade e de nostalgia pelo passado.

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Historiador e professor do IFCH, Edgar Salvadori de Decca assumiu a cátedra Brasil-Portugal em Ciências Sociais no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, em convênio firmado entre essa instituição e a Unicamp. A convite do Jornal da Unicamp, De Decca aceitou o desafio de escrever semanalmente um relato de sua permanência na capital portuguesa.

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