| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 390 - 31 de março a 6 de abril de 2008
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Diretor italiano funde elementos cênicos em
workshop dirigido a alunos do Instituto de Artes


Arquétipos do teatro antropológico
põem em cena linguagem universal

ÁLVARO KASSAB

O diretor Vania Castelfranchi durante workshop no Departamento de Artes Cênicas (Foto: Antoninho Perri)Pesquisa move o teatro do diretor, ator e dramaturgo Vania Castelfranchi. A concepção de suas encenações coletivas está ligada diretamente ao teatro antropológico, mas – e até por isso – não deixa de absorver influências das mais diversas fontes – da Commedia dell’Arte a Beckett; de Grotowski a Artaud; de Brecht a Peter Brook. O envolvimento de Castelfranchi com a história do teatro é tão visceral que seu pré-nome é emprestado do personagem homônimo de Tchecov. A unir essa miríade de correntes, a maioria de forte apelo experimental, o encenador recorre a arquétipos cujas raízes são universais, fazendo a máscara milenar italiana migrar para tribos indígenas brasileiras. Castelfranchi esteve na Universidade, onde coordenou entre 12 e 14 de março workshop dirigido a alunos do Instituto de Artes (IA). Na entrevista que segue, o diretor fala dos fundamentos dos espetáculos encenados por seu grupo, sediado em Roma, e analisa a cena teatral européia.

Jornal da Unicamp – Quais são, basicamente, as diferenças entre o teatro brasileiro e o italiano?

Vania Castelfranchi – O teatro brasileiro tem muito mais vitalidade, é mais colorido. Na Itália, há muita cultura, mas ela está alicerçada na estrutura, em dois mil anos de teatro. Trata-se de um ótimo instrumento, mas falta energia, que é um elemento essencial. No Brasil, país muito jovem, vejo que não existe esse bloqueio, até porque há uma mistura de culturas – africanas, indígenas, européia etc. Entendo que essas condições são muito peculiares, constituindo-se numa espécie de força revolucionária do teatro. Elas são ótimas para a pesquisa.

JU – E os pontos, digamos, mais problemáticos?

Castelfranchi – Acho que falta raiz. Em alguns trabalhos que desenvolvi aqui, sentia dificuldade às vezes em explicar alguns conceitos, sobretudo aqueles referentes ao teatro antigo, mais clássico, muito embora, paradoxalmente, é justamente esse tipo de teatro que cause ruídos no processo criativo. No Brasil é tudo muito bonito, mas falta ainda um certo embasamento histórico. Para um diretor, isto causa estranhamento, uma sensação diferente.


JU – Como isso pode ser trabalhado?

Castelfranchi – Quando estivemos ano passado no Mato Grosso do Sul, por exemplo, para trabalhar com o povo bororo, mostramos a eles a aos estudantes de uma universidade de Dourados que o povo indígena sempre contou com uma cultura teatral milenar – tem canto, dança e outras manifestações.

JU – Qual o papel das referências clássicas no teatro contemporâneo?

Castelfranchi – Se a pesquisa é voltada para o teatro moderno, mas se são poucos os referenciais históricos, o grupo vai somente refazer o mesmo percurso de dois mil anos atrás. Para que se chegue a algo novo, por mais paradoxal que pareça, é preciso ter bagagem. Na Itália, por exemplo, ocorre um fenômeno interessante. Existem muitos grupos modernos de pesquisa que, em razão dessa deficiência, não estão criando nada de novo. O que eles fazem é tão somente mudar a forma de uma coisa muito antiga, que já foi feita. Não há novidade nisso, mesmo que o público goste da encenação. Tanto para o diretor como para o ator, as mudanças são vitais. É importante criar como [Samuel] Beckett, [Antonin] Aurtaud, [Jean] Genet, entre outras referências revolucionárias. A vanguarda olha a história que está por vir, mas invariavelmente calçada nos movimentos que a antecederam. Não é possível fazê-la sem estar ligado ao passado.

JU – Quais são os conceitos que norteiam o teatro antropológico desenvolvido por sua equipe?

Castelfranchi – O teatro antropológico mistura diferentes culturas. De uma certa forma, ele reflete a sociedade. Trata-se da capacidade de olhar, sintetizar e estudar uma determinada cultura, para que seja construída uma nova idéia de história. A verdadeira vanguarda tem somente a possibilidade de ser uma ponte com a história.

Na Itália, por exemplo, é muito importante, neste momento, pesquisar a história do fascismo. Se a gente não lembrar a ditadura fascista, o risco do seu retorno é grande, jamais pode ser desprezado. Não podemos nos acomodar. É importante dialogar com diferentes públicos, com pessoas que nunca foram ao teatro ou de diferentes níveis sociais, para ficar em dois exemplos.

JU – Em que medida essa proposta absorve elementos estéticos de vanguarda?

Castelfranchi – A estética é importante, mas é o menor dos problemas. Ela deve ser construída ao longo do trabalho. Para fazer uma comparação, ela é como a arquitetura. Há, por exemplo, muita estética nas favelas brasileiras. Todas aquelas vidas que lá habitam passam por transformações. A arquitetura dos barracos é única no mundo. Acho que a estética não dá conta de explicar um ideário na sua totalidade. O mundo hoje é muito complicado, as referências são muitas. Acho, por exemplo, que Mozart é hoje mais contemporâneo esteticamente do que Tom Waits, embora, obviamente, os dois sejam ótimos.

JU – O que pode surgir dessa profusão de referências?

Castelfranchi – Entendo que cada grupo está trabalhando a sua estética. Meu grupo, por exemplo, é reconhecido por apresentar coisas novas. Entretanto, se olharmos para o passado, salta aos olhos a recorrência das mudanças nas artes em geral, seja nas artes plásticas, na música ou no teatro.

JU – O trabalho de seu grupo funde influências e linguagens de várias épocas e origens. De que maneira ocorre essa elaboração?

Castelfranchi – A concepção é coletiva. Trabalhamos o arquétipo da lenda, cujas formas bebem em diferentes origens, mas a raiz é a mesma em todo o mundo. Na Itália, por exemplo, a gente trabalhou o arquétipo da figura do pai, porque há uma obra muito importante de [Pier Paolo] Pasolini que fala do poder do pai. Quando desenvolvemos um trabalho na Indonésia, em Bali, trabalhamos muito com a criança, já que a pesquisa estava voltada para o turismo sexual e a prostituição infantil. Queríamos mostrar às crianças esse mesmo arquétipo do poder masculino usando uma máscara que representava o demônio. Foi a forma que encontramos para narrar ao grupo uma lenda italiana. Nosso trabalho usa o canto de todo o mundo.

Já para falar com os indígenas brasileiros, usamos uma máscara chamada Zanni, da Commedia dell’Art, que representa a fome. Isso é muito interessante. A população olhava a máscara e identificava nela elementos indígenas. O arquétipo fala de uma idéia para encarná-la. E esta idéia não é única, é universal.

JU – Qual o perfil do seu público na Itália?

Castelfranchi – Não são poucos aqueles que consideram estranha a pesquisa desenvolvida pelo grupo. Trabalhamos na rua, hospitais, presídios, escolas. Atingimos vários segmentos. Justamente por ser heterogêneo, não temos um público específico. Depois de dez anos de pesquisa e na volta de um trabalho relacionado à Aids desenvolvido na África Central, chegamos à conclusão que precisávamos de uma sede própria.

Decidimos então organizar uma cooperativa para dar conta dessa produção multifacetada. Dessa maneira, com um teatro próprio, estamos formando nosso público, que pode ser também comercial, embora a pesquisa seja sempre nossa prioridade. O teatro fica na periferia de Roma. Eugenio Barba, nosso mestre e criador do teatro antropológico, disse certa vez que sua pesquisa é destinada ao público que tem interesse em seu trabalho. O sucesso e o dinheiro são secundários.

JU – Que avaliação você faz do teatro europeu contemporâneo?

Castelfranchi – São muitos os problemas, a começar da falta dinheiro. Não há verbas para pesquisa, seja artística ou científica. A impressão que temos é a de que a pesquisa está morrendo em todo o continente. Isto é muito perigoso. Se a pesquisa não produz novidade, para ficar na minha área, o teatro tende a se transformar em museu. Não há renovação do público, já que as montagens são cada vez mais convencionais. Sem pesquisa, o teatro autoral, de qualidade, não sobrevive, acaba apelando ao estabelecido, sem apostar na inovação.

JU – Não existem tentativas para mudar esse estado de coisas?

Castelfranchi – Existem iniciativas isoladas na França, na Alemanha e na Itália. Assim como nosso grupo, algumas pequenas companhias se auto-organizam para promover festivais e redes de colaboração. Mas, confesso, é muito difícil. Sem dinheiro para a pesquisa, tudo fica mais complicado. Com verba, a investigação é aprofundada, não há prazo para a apresentação e/ou produção, ou seja, o espetáculo só é montado depois de concluídos os estudos.

Os festivais – como o de Avignon – são praticamente o único espaço de que dispõem os grupos mais comprometidos com mudanças. Por outro lado, por serem off, os profissionais não ganham nada. Participamos por amor à arte, para mostrar que a cultura teatral continua muito viva.

Quem é
Vania Castelfranchi é formado em direção na Academia de Arte Dramática “Silvio d´Amico” de Roma, a mais importante da Itália. Em 1996 fundou o Grupo de Pesquisa Ygramul de Teatro Patafísico e Antropologia. Sua experiência como ator e diretor concentra-se no teatro antropológico, por meio de viagens e pesquisas. No Brasil, esteve com os índios guarani-kaiowá (Mato Grosso do Sul), e sateré-maué (Amazonas). Na África, com os povos africanos chewa e yaho (no Malawi). Esteve também na Indonésia, na ilha de Bali. Na Itália, suas pesquisas são desenvolvidas a partir da escritura de um método de ‘Esoteatro’, e contínuos laboratórios e seminários de seu grupo promovidos no Teatro Ygramul, em Roma, inaugurado pela companhia em 2006.

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