| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 353 - 26 de março a 8 de abril de 2007
Leia nesta edição
Capa
Cartas
Trajetória da FCM
Qualidade do combustível
Violência
Entulho reciclado
Desinfecção de hortaliças
Reúso de água
xampus
Painel da semana
Teses
Unicamp na mídia
Livro da semana
Portal Unicamp
Cultura evangélica
Acidentes de trabalho
 

11

Historiadora mostra como publicações serviram
para aproximar diferentes convicções doutrinárias

Tese revela como mídia infantil
forjou cultura evangélica no país

A historiadora Karina Kosicki  Bellotti: "O campo protestante apropriou-se da cultura de massas para defender sua relevância na cultura popular"  (Fotos: Antonio Scarpinetti/Reprodução)O uso da mídia evangélica infantil foi um fator importante para a constituição de uma cultura evangélica pós-moderna no Brasil. A constatação é da historiadora Karina Kosicki Bellotti, que investigou o assunto em sua tese de doutoramento, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. A pesquisadora tomou para análise o período compreendido entre 1950 e 2000, e considerou principalmente as produções impressas. De acordo com a autora do estudo, a abordagem de temas como infância e família permitiu a construção de uma religiosidade que ela classifica como “transdenominacional”. Esta, embora não tenha estabelecido um ecumenismo propriamente dito, serviu para aproximar diferentes igrejas, de variadas convicções doutrinárias.

Modelo americano inspirou negócios

A mídia evangélica comercial teve início no Brasil nos anos 50, fortemente inspirada no modelo norte-americano. Não por acaso, essa origem coincide com a chegada de missionários estrangeiros ao país, vindos dos Estados Unidos. Até então, conforme Karina, o setor estava mais voltado à educação. Os produtores adotaram as regras do mercado capitalista. Constituíram empresas e valeram-se das estratégias proporcionadas pelo marketing. Entretanto, eles não pretendiam vender um produto qualquer. Tratava-se, desde logo, de difundir discursos e símbolos religiosos, com o objetivo de cristianizar a sociedade. Entre os vários públicos a serem atingidos estavam as crianças, consideradas a um só tempo o presente e o futuro das denominações evangélicas e do país.

Uma das publicações tomadas para análise pela historiadora foi a revista “Nosso Amiguinho”, editada desde 1953 pela Casa Publicadora Brasileira, ligada à Igreja Adventista do Sétimo Dia. Um dado interessante, conforme Karina, é que a publicação, autodenominada como a “revista das crianças do Brasil”, jamais explicitou esse vínculo. Adotando já nas primeiras edições recursos visuais encontrados em outras revistas infantis, como a “Tico-Tico”, a primeira do gênero no país, a “Nosso Amiguinho” optou pela veiculação de um discurso mais geral, que poderia ser absorvido por fiéis de qualquer denominação religiosa. Eram mensagens do tipo “Jesus te ama”, “Jesus tem um plano para a sua vida” ou “Leia a Bíblia”, que agradavam tanto católicos quanto evangélicos.

A revista, de acordo com Karina, sempre trabalhou com a representação de uma criança submissa, muito obediente aos pais, aos professores, à pátria e à igreja, por meio de um discurso altamente conservador, bem ao estilo da pedagogia tradicional. As histórias sempre tinham um fundo moral e a disciplina estava freqüentemente associada a algum sentido religioso. Em defesa desses preceitos, a publicação chegou a fazer campanha contra as histórias em quadrinhos, por considerá-las nocivas à formação de meninos e meninas. Paradoxalmente, alguns anos mais tarde a mídia evangélica lançou mão de recursos das HQs para falar ao público adolescente. Atualmente, a própria “Nosso Amiguinho” adota alguns desses elementos. “Em outras palavras, o campo protestante apropriou-se da cultura de massas para defender sua relevância na cultura popular”, explica a historiadora.

Trabalho parecido foi realizado pela Aliança Pró Evangelização das Crianças (APEC), entidade para-eclesiástica fundada em 1937 pelo reverendo Jessé Irwin Overholtzer, nos Estados Unidos. Sua missão era evangelizar as crianças. O Brasil foi o primeiro país a instalar uma filial da APEC, em 1941. Vinte e quatro anos depois, a Aliança firmou convênio com a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo para fornecer material para o ensino religioso nas escolas públicas. O contrato durou duas décadas. Na época, conta Karina, a disciplina foi incorporada à grade curricular sem ônus ao Estado. Assim, as aulas poderiam ser ministradas por entidades religiosas, de acordo com a confissão dos alunos. A APEC, por exemplo, ficou responsável pelo atendimento dos evangélicos – protestantes e pentecostais.

A exemplo da revista “Nosso Amiguinho”, o discurso da APEC era fortemente moralista. A criança, segundo essa visão, precisava urgentemente de salvação. Para transmitir suas mensagens, a entidade empregou recursos audiovisuais coloridos e dinâmicos. Ocorre, porém, que esses materiais eram produzidos pelos norte-americanos, sem qualquer adaptação à realidade brasileira. Desse modo, as imagens faziam menção a casas com lareira, trenós, renas, neve etc, partindo de uma metodologia baseada na memorização de versículos e lições bíblicas, para ocupar a mente da criança com temas “saudáveis”.

Formiguinha – Ao longo das décadas de 60 e 70, segundo a pesquisadora, os grupos evangélicos começaram a investir mais fortemente em telecomunicação. Programas de rádio e TV passaram a ser produzidos para dar continuidade ao movimento de conversão da sociedade brasileira. Os movimentos religiosos (protestantismo, Renovação Carismática, Nova Era etc) ofereceram um espaço de manifestação para a juventude em um período de intensa transformação do país nas áreas econômica e cultural. Nesse contexto de novas experimentações, surge um personagem que viria redimensionar o mercado de consumo de produtos evangélicos no Brasil: a formiguinha Smilingüido (abaixo, na ilustração).

No final da década de 70, relata a autora da tese, havia uma grande insatisfação nos meios evangélicos em relação ao conteúdo veiculado pela televisão. Em 1980, um grupo de jovens ligados à Igreja Evangélica do Cristianismo Decidido (IECD), do qual fazia parte o engenheiro Hialmar D’Haese, decidiu criar a empresa Artes Visuais Cristãs (Arvicris), com o objetivo de conceber produtos infantis que transmitissem mensagens cristãs. Um dos folhetos promocionais da empresa dizia que seus fundadores eram como “formiguinhas, pequenas e frágeis, mas muito entusiasmados e decididos em não apenas criticar, mas apresentar uma mensagem sadia para o povo brasileiro” (sic).

A imagem da formiga, batizada inicialmente de Zecão, foi adotada como emblema pelo grupo por causa dos desenhos da artista plástica Márcia D’Haese, mulher de Hialmar. Ela vivia reproduzindo o inseto em seus cadernos e em papéis de anotações. Em pouco tempo, o nome do personagem foi alterado, em razão de uma afirmação de Hialmar, que defendia a idéia de que a empresa não poderia usar material de má qualidade, todo “esmilingüido”. “Os integrantes da Arvicris acharam a expressão engraçada e decidiram, a partir daquele momento, mudar o nome da formiguinha”, diz Karina. Os criadores registrados do personagem são Márcia D’Haese e o roteirista Carlos Tadeu Gryzbowski.

Inicialmente, o personagem virou slide e foi utilizado para contar histórias para crianças. A divulgação, até aquele momento, estava restrita aos círculos evangélicos. Ocorre, porém, que a formiga Smilingüido participou posteriormente do processo de expansão e profissionalização da mídia para crianças em geral. Ao mesmo tempo em que Smilingüido crescia nos meios evangélicos, houve um grande investimento da mídia infantil brasileira, que proporcionou, por exemplo, o surgimento da apresentadora Xuxa e o fortalecimento de uma indústria de brinquedos. O restante da mídia evangélica acompanhou essa tendência. “A meu ver, a formiga Smilingüido abriu um novo mercado para os produtos evangélicos. Tanto é assim, que na década de 80 o personagem concorria com a ‘rainha dos baixinhos’ e com toda mídia infantil secular. Na década seguinte, ele passou a concorrer com outros personagens evangélicos”, explica Karina.

Em poucos anos, continua a autora da tese, Smilingüido foi licenciado pela editora Luz e Vida. Em razão do crescimento comercial em torno da imagem da formiguinha, Márcia D’Haese demonstrou um certo descontentamento, conforme revela Karina. Ela temia que a representação religiosa do personagem fosse colocada em segundo plano. “Como não tinha experiência em assegurar a autoria sobre Smilingüido, em 1997 Márcia perdeu os direitos sobre o personagem. Para dar prosseguimento ao seu desejo de transmitir mensagens religiosas ao público infantil, ela concebeu outras criações, como a turma Mig&Meg, por meio da sua editora, a Arte e Comunicação (Arco)”.

Outro ponto importante da tese foi o trabalho sobre a recepção do personagem Smilingüido, por meio da análise de cartas enviadas a Márcia D’Haese nos anos 1990. “Se Smilingüido ajudou a abrir um novo mercado, desde o fim dos anos 90 esse mesmo mercado se profissionalizou à semelhança do modelo americano evangélico. Nele, produtos tradicionais voltados para esse público, como livros, dividem a atenção e o bolso dos consumidores com produtos alternativos [materiais escolares, vestuário, decoração, presentes] que se originaram da mídia infantil dos anos 1980”, analisa a historiadora.

Uma observação curiosa feita por Karina no seu trabalho, que foi orientado pela professora Eliane Moura da Silva, diz respeito a uma contradição por parte das igrejas evangélicas que utilizam a mídia para transmitir seus conceitos e doutrinas. Ao mesmo tempo em que condenam explicitamente o uso ou adoração de imagens, elas se valem cada vez mais de recursos audiovisuais para ampliar sua mensagem. Um bom indicativo de como anda esse segmento é a Expocristã, feira que divulga produtos, serviços e eventos para o público cristão. Em 2006, cerca de 100 mil pessoas visitaram a exposição, que durou seis dias e contou com a participação de 300 empresas. O volume de negócios, de acordo com os organizadores, superou os R$ 50 milhões. O próprio Smilingüido, considerado o “garoto-propaganda de Deus”, tem hoje cerca de 800 produtos licenciados. Dados do censo demográfico de 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que 26 milhões de brasileiros são evangélicos, contingente que constitui um mercado significativo para a progressão das vendas de “bens cristãos”.

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2007 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP