| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 352 - 19 a 25 de março de 2007
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Encruzilhadas da Liberdade
 

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O livro Encruzilhadas da Liberdade conta a
história de escravos e libertos no Recôncavo Baiano

Do cativeiro às ruas

O historiador Walter Fraga Filho: "Havia o sentimento de que o Brasil pudesse dar  um salto em termos de transformações sociais"  (Fotos: Reprodução/Dovulgação)Nos dias que se seguiram ao 13 de maio de 1888, ex-escravos do Recôncavo Baiano, “resplandecentes da luz da liberdade”, entregaram-se a ruidosas noites de samba, saíram em desfile ao som de bandas, queimaram fogos de artifício e se confraternizaram com a multidão que os recebia de braços abertos. Teria sido aquele o primeiro carnaval feito pelos negros no Brasil? A indagação diverte o historiador Walter Fraga Filho, autor do livro Encruzilhadas da Liberdade: “Não tive a pretensão de sugerir isto, seria muita viagem. O carnaval já existia antes e com participação popular intensa, inclusive dos negros”.

Recôncavo detinha poder econômico

Em sua viagem, Fraga Filho aborda dos 20 anos anteriores à publicação da Lei Áurea até 20 anos depois, combinando vários tipos de documentos, como registros de nascimento e de óbito, ocorrências policiais, inventários, prontuários de hospitais, correspondências e depoimentos orais. Assim, ele reconstruiu histórias de vida de escravos e libertos, contando suas experiências na escravidão e na luta pela libertação, e depois refez a trajetória de muitos deles fora do cativeiro.

“Há um grande livro na praça”, anunciou o jornalista Elio Gaspari em sua coluna na Folha de S. Paulo de 4 de março, dedicando à obra uma resenha intitulada “Uma linda visita à abolição baiana”. O livro lançado pela Editora da Unicamp é fruto da tese de doutorado em história social da cultura defendida por Walter Fraga Filho no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), com orientação do professor Robert Slenes.

“O 13 de maio foi bastante festejado na Bahia e em vários pontos do Império. Tentei entender a lógica desta alegria. O final da escravidão resultou de uma luta que envolveu escravos, livres, libertos, diversas camadas da população. Foi uma vitória, e não apenas isso: havia o sentimento de que o Brasil pudesse dar um salto em termos de transformações sociais, a sensação de que se vivia o momento fundador de uma nova era. Daí, o entusiasmo”, complementa Fraga, que é professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em entrevista por telefone.

Vista do Engenho Vitória, na zona rural de Cachoeira (Fotos: Reprodução/Dovulgação)No livro, o autor, antes de tudo, pinta o cenário. O Recôncavo Baiano, uma faixa de terras úmidas que contorna a Baía de Todos os Santos, concentrava as atividades econômicas mais importantes da Bahia no século 19. Ali estavam os maiores engenhos, mas também havia áreas de plantio de fumo e de gêneros de subsistência (mandioca, feijão, milho) que abasteciam as vilas e cidades da região e as feiras de Salvador.

Naturalmente, o Recôncavo também concentrava a maior população da província e a maior quantidade de escravos. Segundo Fraga Filho, a Bahia possuía 165 mil escravos (12,8% da população geral) em 1872, e mesmo quando este número caiu para menos da metade (76 mil) em 1887, ainda representava a quarta população cativa no Império. “Às vésperas da abolição, havia senhores de engenho que tinham 300 escravos em cativeiro. Os senhores da região resistiram à libertação até os últimos dias”.

Roceiras e marisqueiras em feira na cidade de Cachoeira (Fotos: Reprodução/Divulgação)Todavia, um número significativo de pessoas livres e libertas já circulava pelo Recôncavo, vivendo de pequenas lavouras ou do pequeno comércio nas cidades. Segundo Fraga Filho, esta gente, que havia passado pela experiência da escravidão ou que tinha parentes ainda presos ao antigo sistema –, exerceu um papel importante no processo que culminou na Abolição.

“Além disso, na década de 1870, possuir escravos já era um privilégio de ricos. A população mais pobre, por não ter mais acesso à propriedade escrava, não tinha mais motivos para defender o sistema escravista. Ademais, as camadas mais pobres da população perceberam que a escravidão era uma ameaça permanente à condição de cidadãos livres. Não por acaso incorporaram o discurso antiescravista”.

Uma família negra de Cachoeira em imagem de 1930 (Fotos: Reprodução/Divulgação)O antes – O historiador decidiu retroceder até 20 anos antes da abolição porque este foi um período de impacto da Lei do Ventre Livre, assinada em setembro de 1871, que, entre outras medidas, considerou livres os chamados “ingênuos”, filhos nascidos de escravas após aquela data. “Esta lei criou expectativas de liberdade, aspirações em relação a uma vida sem escravidão. Tais expectativas interferiram na forma como os escravos se comportavam diante dos senhores, gerando tensões e conflitos”, afirma o autor.

Para captar as tensões sociais da época, Fraga analisa em detalhes a história do assassinato de um frade carmelita, João Lucas do Monte Carmelo, administrador de engenho, assassinado por o11 escravos, em setembro de 1882. Conta a tradição oral que o frade “trazia a escravaria à rédea curta: a qualquer falha dos negros, não hesitava em vibrar o inseparável vergalho”.

Segundo esta mesma tradição: “Certo dia, os escravos reuniram-se e decidiram pôr fim àqueles suplícios dando cabo do impiedoso frade. Picaram-lhe o corpo a foice e a facão, deixando a cabeça espetada numa cerca de tal modo que houve de ser dado à sepultura num saco”.

De acordo com o autor, a crueldade do frade e o revide dos cativos, presentes em várias histórias que os mais velhos ainda contam, trazem ainda vestígios das tensões e embates que marcaram os últimos anos de escravidão no Recôncavo Baiano. Numa época de intenso debate sobre o fim do cativeiro, realçar a brabeza do senhor frade e o revide escravo trazia uma mensagem bastante contundente para quem ainda acreditava na sobrevida do velho escravismo.

“Percebemos neste processo como pensavam os senhores e como eram fortes as expectativas dos escravos de que a escravidão teria um fim breve. Nem tudo terminou em morte dos senhores ou feitores, mas vivia-se uma época de crescente tensão social no Recôncavo, como de resto em todo o Império”, diz o historiador.

Fraga lembra que escravos do Recôncavo de diversas formas estavam forçando os limites do sistema escravista. Uma delas era forçar os senhores a reconhecerem o direito de trabalhar fora dos engenhos. A outra era produzir a própria subsistência em pequenas parcelas de terra, as roças.

“Além disso, muitas famílias cativas estavam inseridas em redes extensas de parentesco consangüíneo e de rituais que formavam a base de sólidas comunidades. Essas comunidades acumularam grande experiência em criar estratégias para gerar recursos que garantiram a sobrevivência material e cultural dos grupos”, acrescenta.

Fraga ressalta ainda que na década de 1880 houve uma aproximação entre as lutas dos escravos do campo com o movimento abolicionista nas cidades, do qual também participavam livres e libertos. “Abolicionistas de Cachoeira e São Félix chegaram a distribuir panfletos conclamando escravos dos engenhos a abandonarem a lavoura. A primeira parte do livro traz todas essas teias e lutas que, naquela década, foram fundamentais para radicalizar o movimento antiescravista na Bahia”.

O depois – Walter Fraga Filho observa que, para os libertos, o que daria densidade à liberdade seria o acesso à terra, a possibilidade de escolher onde trabalhar, onde morar e como criar os filhos. “Na segunda parte do livro analiso vários conflitos em que os libertos tentam viabilizar a sobrevivência fora dos engenhos, ocupando terras devolutas ou exigindo o direito de possuir roças. Eles também exigiam tratamento de cidadãos livres, não mais admitindo castigos e o controle sobre suas vidas”.

Alguns trechos do livro refletem as percepções que ex-senhores e ex-escravos tinham daquele momento. “Muitos dos ex-senhores de escravos se surpreenderam ao perceber que o comportamento, as atitudes e a linguagem dos homens e mulheres que até então lhes serviam como cativos se haviam modificado sensivelmente após a abolição. (...) Ao afirmarem o status de livres, muitos passaram a expressar-se numa linguagem que os ex-senhores consideraram ‘atrevida’ e ‘insolente’”.

Em outro: “Ao alegarem que já ‘estavam forros’, os libertos queriam dizer que já não se sentiam obrigados às rotinas de trabalho, possivelmente entendiam que o trabalho nos canaviais era ‘a continuação do cativeiro’. Por isso, no amanhecer de 14 de maio, recusaram-se a atender ao chamado dos feitores, ou ao toque dos sinos que anunciavam o início da lida canavial”.

Finda a escravidão, muitos ex-escravos, inclusive jovens, permaneceram nos engenhos. Há quem veja nisto a sobrevivência de tradições escravistas ou o surgimento de relações fundamentadas no clientelismo, mas o autor do livro argumenta em outra direção. Ele julga que os ex-escravos tinham suas próprias razões para permanecerem nos locais onde nasceram ou serviram como cativos.

“Os vínculos comunitários e familiares forjados durante a escravidão foram importantes fatores de fixação nas localidades em que residiam. Por meio desses laços, os ex-escravos buscaram assegurar a sobrevivência e, quem sabe, alimentar esperanças de abrir outras alternativas dentro e fora das localidades em que viviam”, afirma.

Por outro lado, acompanhando histórias de vida de quem saiu dos engenhos, Fraga identificou ex-escravos que buscaram viabilizar a sobrevivência em outros lugares, buscando outro estilo de vida, longe da interferência dos senhores. Em geral, eles foram para cidades de maior atividade econômica, como São Félix, Cachoeira, Santo Amaro e Salvador.

Apagamento – O historiador constatou ainda que os migrantes buscaram reconstituir nas cidades laços de solidariedade vivenciados no campo. Rastreando histórias de vida de trabalhadores urbanos, ele localizou muitos que haviam vivido a experiência da escravidão nos engenhos. Essa experiência da escravidão compartilhada por gente do campo e da cidade teve impacto importante nos movimentos sociais e operários da Primeira República.

Daí, o interesse dos primeiros governos republicanos de suprimir as comemorações do 13 de maio. Na opinião de Walter Fraga, havia motivações políticas para relegar ao esquecimento aquela data e os acontecimentos que culminaram na abolição. “Uma delas tinha óbvia intenção de censurar algo que era identificado como o grande feito da monarquia. A outra, mais velada, tinha como intenção silenciar conflitos e abafar esperanças de mudanças sociais nascidas no âmbito das lutas contra a escravidão e pela cidadania”.

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