| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 351 - 12 a 18 de março de 2007
Leia nesta edição
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Saúde do cérebro
Materiais porosos
Chico Buarque
 

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Dissertação de mestrado analisa a relação
de Chico Buarque com a arte, os brasileiros e o país

A voz do dono e o dono da voz

O professor de literatura Fernando Marcílio Lopes Couto, autor da pesquisa: "Chico trocou a exclamação pela interrogação" (Foto: Antoninho Perri)Muito se sabe sobre Chico Buarque. Tem 62 anos, torce pelo Fluminense, dizem que é tímido, tem cadeira cativa no panteão dedicado aos grandes autores da Música Popular Brasileira (MPB), já mereceu o rótulo de compositor engajado, é considerado um belo espécime pelas mulheres e tido como profundo conhecedor da alma feminina. Esses e tantos outros aspectos foram dissecados em um incontável número de reportagens, livros, documentários e teses acadêmicas. Ou seja, quase tudo já foi dito sobre o artista e sua obra. Quase. Recentemente, o professor de Literatura Fernando Marcílio Lopes Couto trouxe novas e interessantes interpretações acerca da obra desse destacado personagem da vida nacional. Em sua dissertação de mestrado, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, o pesquisador faz uma minuciosa análise da relação que Chico estabeleceu, por meio das suas letras e peças teatrais, com a arte, o povo e o país. O resultado do estudo é o desvelamento de um criador ainda mais intenso e diferenciado.

A pesquisa foi desenvolvida entre 2003 e final de 2006, mas começou a ser concebida há cerca de 20 anos, segundo Marcílio, como prefere ser chamado. Após concluir o curso de História na Unicamp, em 1984, ele ingressou no programa de mestrado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) com um projeto que pretendia investigar de forma ampla e profunda a obra de Chico. Passados dois anos, o estudo foi transferido para o IEL. “Em seguida, eu tive que interromper a empreitada, pois resolvi cursar Letras e, na seqüência, comecei a dar aula em cursos pré-vestibulares de Campinas e São Paulo. Só recentemente é que tive a oportunidade de retomar o trabalho. Decorrido todo esse tempo, a proposta inicial naturalmente sofreu uma grande transformação. Antes, eu tinha muitas idéias e pouca idade. Com a maturidade, percebi que seria menos pretensioso e mais interessante me concentrar em alguns temas do que na obra toda do Chico”, explica.

Chico Buarque durante apresentação de "Carioca" em São Paulo: olhar heterogêneo (Foto: Apu Gomes / Folha Imagem)Assim, Marcílio limitou sua análise às letras e peças teatrais concebidas pelo artista. Por meio delas, o pesquisador impôs-se o desafio de entender como tem sido ao longo do tempo a relação de Chico com a arte, os brasileiros e o país. Antes de entrar no campo da apreciação propriamente dita, o professor de literatura assinala que a obra buarquiana teve início em 1964, período em que ocorreu o golpe militar no país. Os tempos eram de exceção, mas também de grande efervescência cultural. Entre outros temas, as classes artística e intelectual debatiam qual era o projeto de nação para o Brasil e qual a função da arte naquele contexto político e social. “Chico, evidentemente, deu uma importante contribuição para essas reflexões, mas de uma maneira bastante diferenciada. Ele tinha um olhar heterogêneo para esses assuntos”, afirma Marcílio.

Conforme o pesquisador, havia uma forte tendência nos anos 60 para a formação de uma visão unívoca sobre o país, tanto por parte dos militares e seus apoiadores quanto dos integrantes do movimento de resistência, embora as posições ideológicas fossem, evidentemente, conflitantes. “Tanto um lado quanto outro enxergava o Brasil como uma coisa só. Chico, ao contrário, usava suas letras para construir imagens fragmentadas do país. O Brasil como um todo não aparece em sua obra. Nela, Chico afirma para desconstruir em seguida. Essa característica pode ser constatada em vários momentos. As letras de ‘A Violeira’, ‘Rebichada’ e ‘Bye bye, Brasil’, concebidas entre o final dos anos 70 e durante os anos 80, mostram isso claramente”, analisa Marcílio.

Tal comportamento persiste, de acordo com o pesquisador, nas abordagens que o artista faz do Rio de Janeiro, sua terra natal. A cidade, nesse caso, é retratada como se fosse uma figuração do Brasil. “Ao se referir ao subúrbio, por exemplo, Chico fala dos bairros que estão às costas da estátua do Cristo Redentor, um recurso sutil para denunciar o abandono a que está relegada grande parte da população carioca e brasileira. Ou seja, ao focalizar o Rio, ele fala também do país. É a visão do outro, a visão do avesso”, explica o autor da dissertação. A letra da música “Meu Guri” (veja quadro), composta em 1981, é outro exemplo dessa preocupação do artista, nas palavras de Marcílio. Nela, Chico fala da relação mãe e filho, mas também de aspectos da realidade nacional, ao narrar a trajetória da mulher simples que vive no morro ao lado do rebento que cai na marginalidade. “Em outras palavras, a relação de Chico com o Brasil é diferenciada, visto que diferenciada é sua análise do país”.

Do outro lado da linha, a ‘tese’ fala

A orientadora da dissertação de mestrado de Fernando Marcílio Lopes Couto é a professora Adélia Bezerra de Menezes, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Não por acaso, ela foi a autora, em 1982, de um dos primeiros trabalhos acadêmicos sobre Chico Buarque, apresentado na USP. Na ocasião, um episódio no mínimo pitoresco marcou a comemoração após a defesa da tese. O telefone da casa de Adélia tocou no momento em que ela estava reunida com alguns amigos, festejando. Um deles atendeu a ligação. Do outro lado da linha, uma voz pediu para falar com a homenageada. “Quem é?”, perguntou a pessoa presente à reunião. “Diga que é a tese”, devolveu um bem-humorado Chico.

Circo, assunto recorrente,
revela ligação com o povo


O mesmo pode ser dito, no entender do autor da dissertação, da relação que o artista tem com o povo. Um tema recorrente nas letras de Chico, lembra Marcílio, é o circo. Este está presente em obras como “Mambembe”, de 1972, e na trilha sonora que compôs para o filme “Os Saltimbancos Trapalhões”, de 1981, para ficar em apenas dois exemplos. “Esse aspecto é bastante revelador, uma vez que o circo é, por definição, um espaço privilegiado para a aproximação do artista com o povo”, interpreta o pesquisador. Outro assunto que aparece com alguma freqüência nas criações de Chico é a figura do malandro.

Esta, porém, é bastante específica. “Ele fala do malandro dos anos 50. Não se trata de uma idealização, nem tampouco tem relação com o malandro que conhecemos hoje em dia”, adverte Marcílio. O malandro de Chico, de acordo com o professor de literatura, confunde-se muitas vezes com o próprio artista, que tem que apresentar traços de malandrangem para driblar a censura, enfrentar a indústria fonográfica ou questionar a cultura de massa. “O próprio Chico é produto da cultura de massa, pois explodiu nos festivais de música brasileira que eram produzidos pela televisão. Entretanto, isso não o impediu de refletir sobre essa questão”, diz o pesquisador.

Chico também não tinha uma visão única a respeito da função da arte ou do artista, destaca Marcílio. Ao mesmo tempo em que defendia a arte como um instrumento de expressão da liberdade, o autor questionava em suas músicas qual o limite dessa capacidade transformadora. “Nos anos 60 e 70, por exemplo, havia o que se convencionou chamar de canções de protesto. Estas eram altamente afirmativas. As músicas de Chico não tinham esse compromisso. Eu diria que ele trocou a exclamação pela interrogação. Penso que foi preciso muita coragem para fazer os questionamentos que fez”.

As reflexões mais significativas sobre a função da arte e do artista são encontradas, afirma Marcílio, nas peças teatrais escritas por Chico. Nelas, a temática mais comum é a traição. Na obra “Calabar”, de 1973, todo o roteiro é dedicado ao assunto, dado que trata da posição do senhor de engenho Domingos Fernandes Calabar no episódio histórico em que este preferiu tomar partido ao lado dos holandeses contra a coroa portuguesa. Nas outras três peças que escreveu (“Roda Viva”, “Gota d’água”, e “Ópera do Malandro”), a traição aparece como traço da personalidade de alguns personagens artistas. “No texto de ‘Roda Viva’, o artista trai o público ao se unir a empresários inescrupulosos. Na peça ‘Gota d’água’, o protagonista, que é o autor de um samba, abandona a esposa para viver com uma garota rica. Por fim, em ‘Ópera do Malandro’, a figura do malandro confunde-se com a do artista. No texto, o autor da obra trai os produtores ao mudar o final da trama. Ou seja, Chico transmite a idéia de que o artista representa o povo, mas reconhece que ele pode traí-lo”, analisa.

Ao ser indagado sobre a dificuldade de o público enxergar tais características na obra de Chico, Marcílio admite que a produção do artista contempla muitas nuanças. “São sutilezas que nem sempre podem ser facilmente percebidas. Minha missão como pesquisador foi justamente tentar desvendar os aspectos menos óbvios do trabalho de Chico. Isso não me torna, porém, um ouvinte ou um leitor mais competente que as demais pessoas. É apenas um modo diferente de observar o que ele concebeu ao longo da carreira. Se fosse para resumir minha análise a uma única frase, eu diria que a obra de Chico não é datada”, conclui. A esse respeito, talvez seja conveniente recorrer à observação feita sobre o compositor por um outro ícone da MPB, Caetano Veloso. Ao falar sobre a importância do colega para a música brasileira, o baiano fez a seguinte afirmação: “O Chico vai à frente pregando a tradição”.

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