Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 246 - de 29 de março a 4 de abril de 2004
Leia nessa edição
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1964 - Democracia Golpeada
No inferno da câmara fria
Ex-ativista: Robêni
Dossiê: Congresso da UNE
Dossiê: Zeferino
Dossiê: General de brigada
Dossiê: Homem do sistema
Dossiê: Zeferino nos porões
Quatro visões do golpe
Meninos do ITA
 

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Quatro visões do golpe

ÁLVARO KASSAB



Os professores Edgar De Decca, Geraldo Cavagnari, Marcelo Ridenti e Sebastião Velasco e Cruz, todos da Unicamp, analisam nesta e na próxima página o período em que o país ficou sob a tutela dos militares. Os docentes fazem uma leitura do contexto geopolítico da época, do legado deixado pelo regime e do papel exercido pela universidade na resistência ao arbítrio.


1 - Onde o senhor estava em 31 de março de 1964?

Edgar De Decca - Vivia em Campinas e, na ocasião, freqüentava o último ano do colegial no Colégio Culto à Ciência. Aprendíamos um pouco da militância política na União de Estudantes Secundaristas, onde estávamos profundamente envolvidos nas mudanças que se verificavam à época e que ocorriam no Brasil e no cenário internacional, sobretudo no plano cultural. Além da motivação de juventude da leitura dos Cadernos do Povo, do Centro Popular de Cultura (CPC), e do Violão de Rua, ouvíamos os primeiros discos dos Beatles. Também tínhamos uma curiosidade muito grande com a cultura brasileira divulgada no Exterior, como o caso da Bossa Nova. Uma coisa que me muito impressionou foi ter assistido à peça Os Pequenos Burgueses (Gorki), encenada pelo Teatro Oficina. Foi um soco na cara. Minha lembrança é muito boa. Por outro lado, houve um clima de apreensão muito grande no Culto à Ciência porque sabia-se que grupos de estudantes participavam de associações que mais tarde se tornariam suspeitas. De qualquer maneira, a experiência que tivemos foi muito intensa e positiva.

Geraldo Cavagnari - Conspirando contra o governo Goulart. À época, como jovem capitão do Exército, servia no Quartel General da 5º Região Militar, em Curitiba.

Marcelo Ridenti - Eu tinha cinco anos de idade e estava de mudança com minha família de Amparo para São Paulo, onde meu pai era advogado.

Sebastião C. Velasco e Cruz - Em casa, restabelecendo-me de uma hepatite. Na época, eu tinha apenas 15 anos, mas acompanhava apaixonadamente o dia- a-dia da política brasileira. Condenado a um repouso forçado que durou pelo menos dois meses, pude assistir aos lances mais espetaculares da crise que levou ao golpe através das imagens que eram transmitidas em tempo real pela televisão.

2 - Como o senhor vê o período pós-64 no contexto do século 20 brasileiro?

De Decca - Hoje, com maior distanciamento, conseguimos perceber algumas coisas que, no calor da hora e quando os acontecimentos tinham um impacto muito forte na memória, ficava muito difícil de fazer uma avaliação isenta. É possível como historiador perceber que a experiência de 64 demonstra que as instituições políticas brasileiras, apesar do que se diz ao contrário, conseguiram um padrão muito alto de institucionalidade, sobretudo se comparado ao restante da América Latina. Não podemos confundir as experiências de 1930 e de 1964 com a miríade de golpes militares que ocorreram no século 20 na América Latina. O período que vai do golpe de Vargas em 1930 até o estabelecimento de uma ditadura stritu sensu em 1937, com o Estado Novo, e o período que vai de 1964 até a ditadura mais fechada, em 1968, mostram que, apesar das articulações golpistas, a possibilidade de um regime absolutamente fechado em todos os níveis institucionais, é bastante complicada no Brasil. A experiência histórica mostra que a sociedade civil tem instituições fortes que se consolidaram no decorrer, principalmente, do período republicano. Isso faz com que os períodos de excepcionalidade sejam relativamente pequenos no Brasil, demonstrando a vitalidade da sociedade. A ditadura do Estado Novo durou, por exemplo, de 1937 a 1945; a ditadura militar, por sua vez, nos moldes mais restritivos, foi do AI-5 até o governo Geisel, quando já se falava na abertura lenta e gradual e as oposições tiveram uma vitória extremamente expressiva nas urnas, em 1976. A experiência de 64 mostra o quão importante é valorizarmos as instituições brasileiras, porque elas têm um enraizamento histórico muito importante.

Cavagnari - O golpe de 64 não foi aventura de uma minoria, foi decisão de uma maioria significativa. O que condeno não é o golpe em si, mas o estado de exceção implantado com o AI-5. Até dezembro de 1968, quando foi editado esse famigerado ato discricionário, aceitava-se o movimento de 64 como um correção de rumo no processo democrático inaugurado em 1946. Embora se condene a brutalidade cometida pelo arbítrio autoritário, o pós-64 inaugurou um processo bem-sucedido de desenvolvimento econômico e tecnológico do país.

Ridenti - O período da ditadura ficou marcado pela "modernização conservadora" da sociedade brasileira. Dava-se continuidade e até se aprofundava a política desenvolvimentista que vinha do tempo de Vargas, marcada pelos pesados investimentos do Estado, associado ao capital nacional e internacional. Mas com uma diferença enorme: livrava-se do que o "populismo" pudesse ter de popular. Reprimiu-se o movimento que exigia as reformas de base, que diminuiriam as desigualdades sociais. A ditadura impulsionou o desenvolvimento nacional, sem que as "classes perigosas" tivessem acesso a ele.

Velasco e Cruz - Se tomarmos por "período pós-64" o ciclo de 20 anos de governos militares, eu diria que ele foi menos significativo do que se costuma imaginar. No plano econômico e social, o regime militar aprofundou um modelo cujo perfil já estava claramente desenhado no período anterior. É verdade, os governos militares, especialmente o de Castello Branco, introduziram uma série de inovações institucionais importantes, como o FGTS, e a correção monetária, por exemplo. Mas ao contrário do que aconteceu em outros países, como o Chile de Pinochet, o que buscavam era aperfeiçoar o padrão de economia capitalista existente, não destruí-lo, para criar um outro, inteiramente diferente, sobre os seus escombros. Basta pensar em alguns dos elementos da ordem passada que persistem e na importância do papel que logo seriam chamados a desempenhar: as empresas públicas (algumas delas emblemáticas, como Volta Redonda, Petrobrás, BNDE...); a legislação do trabalho; a legislação sindical ..., o padrão característico de relacionamento entre Estado, capital estrangeiro e capital local que marca todo o processo da industrialização brasileira. Não é por outro motivo que em meados dos anos 90, quando Fernando Henrique Cardoso quis definir o sentido geral de sua política, ele disse que poria um ponto final na era Vargas. Não na era dos generais.

3 - Qual o legado histórico, negativo ou positivo, do golpe de 64?


De Decca - O legado, negativo ou positivo, é a experiência que podemos tirar daquilo que percebemos como a capacidade das instituições permanecerem atuantes. As oposições e a sociedade não se desmobilizaram diante das pressões, da tortura, da censura e de todo um regime que foi se fechando progressivamente no pós-64. Apesar dos pesares, as instituições foram espaços de negociações e de conflitos. Não podemos esquecer que o golpe de 64 é uma articulação da sociedade civil. Os militares foram partícipes de um golpe cuja liderança civil articulou de ponta a ponta. Essa sociedade civil articulou com os militares até o AI-5 e depois dele também.

Cavagnari - Apesar da brutalidade da ditadura militar, principalmente do terceiro governo militar, o legado histórico do golpe de 64 é positivo no campo do desenvolvimento econômico e tecnológico do País.

Ridenti - Especialmente para as classes dominantes, houve legados positivos: crescimento econômico e enorme concentração de riquezas, com a manutenção da ordem social e econômica estabelecida. Os trabalhadores e a maioria da sociedade usufruíram apenas marginalmente daquele progresso, pois tiveram de enfrentar o arrocho salarial, o aumento das desigualdades sociais, a repressão aos opositores do regime, a restrição aos direitos e liberdades democráticas, a militarização das polícias que segue até hoje, a imposição de decretos-lei (origem das atuais medidas provisórias) etc.

Velasco e Cruz - O golpe de 64 veio para sufocar as demandas de incorporação dos setores populares na vida política, bloquear o impulso democratizante que constituía, desde meados dos anos 50, uma das dinâmicas centrais na sociedade brasileira. A essa tarefa os autores do golpe se lançaram de imediato, e com enorme zelo. No trato com os políticos e com as organizações que serviam de canais de expressão para os setores médios a sua ação foi muito mais contida, oscilante. Ela se apresentou inicialmente como uma intervenção cirúrgica, limitada no tempo e em seu alcance. Depois foi se ampliando em ondas, até chegar, em dezembro de 1968, com o AI-5, no confisco da política, na instauração de uma ditadura sem pejo.

Mas, contrariamente ao que alguns analistas chegaram a acreditar, os militares que deram o golpe não pretendiam com isso liderar uma volta ao passado. Eram autoritários, porém modernizantes. Queriam uma indústria forte e uma economia capitalista em crescimento. Por isso, delegaram o comando da política econômica a civis, e criaram uma rede de segurança para defendê-los de todo o tipo de pressão, mesmo daquelas que vinham da caserna.

O ciclo de crescimento que começa em 1968 e se prolonga até o início da década de 80 tem a ver com uma série de fatores, internos e externos, grande parte dos quais sem relação alguma com a orientação da política econômica. Não importa. O certo é que, por sua duração e por sua intensidade, ele implicou em mudanças profundas na estrutura da economia e da sociedade brasileira. A urbanização acelerada é uma das expressões desse processo. A enorme expansão das classes médias assalariadas e da força de trabalho empregada na indústria são duas outras. Aí reside a grande ironia. Alterando modos de vida, abrindo novos horizontes, redefinindo expectativas e visões de mundo de parcelas expressivas da população, essas mudanças estruturais acabaram por induzir a emergência de forças sociais que dariam novo impulso à dinâmica democratizante que se procurou extirpar com o golpe de 64 .

Desse ponto de vista, o legado é misto. O golpe militar deu origem a um regime de força, que montou um aparelho de repressão política com poucos similares no mundo e o usou com notável brutalidade. Além disso, as políticas econômicas e sociais do regime agravaram o quadro de disparidades que é a marca secular da sociedade brasileira. Mas os governos militares preservaram as linhas mestras de um contexto institucional que vinha garantindo há décadas taxas muito elevadas de crescimento econômico. E ao fazerem isso ajudaram a criar as condições para que a legitimidade do poder que exerciam fosse contestada, mais tarde, de forma cada vez mais ampla e efetiva.

No final do ciclo militar o Brasil estava imerso em uma crise econômica e social de extrema gravidade, cujos efeitos até hoje se fazem sentir. Mas essa crise foi produzida por uma combinação complicada de fatores, entre os quais se destacam o "choque dos juros", ditado pelo banco central dos Estados Unidos, em 1979, a globalização financeira e a consagração, em escala global, dos princípios do neoliberalismo. Atribuir o que aconteceu desde então ao "golpe de 64" (ou ao regime dele derivado) é dar a esse fato histórico uma importância descabida.


"O padrão social gerado pela semi-estagnação é inóspíto para a democracia"

4 - Em sua opinião, os militares tinham um projeto para o país?

De Decca - Acredito que não fosse objetivo do governo militar se perpetuar no poder. Quando falo em alto padrão de institucionalidade, incluo o Exército. Ele participa da institucionalização do Brasil desde a República, portanto é um Exército que está acostumado a ter uma participação política no sentido de consolidar a Constituição brasileira republicana. É um Exército que tem como vocação histórica assegurar a Constituição. A exceção foi 64, quando esse alto comando militar se viu profundamente comprometido com o contexto da Guerra Fria, marcado pelo perigo comunista, e com a uma ideologia de segurança nacional que o afastou de suas vocações históricas. Uma das características do Exército brasileiro é justamente participar ativamente das campanhas civilistas - o movimento revolucionário de 22, de 24 e de 30. A partir de 64, o Exército que sempre teve no povo o seu grande sustentáculo de legitimidade, coloca esse mesmo povo sob suspeita, retirando-lhe o exercício de sua cidadania.

Cavagnari - Focado no desenvolvimento econômico e tecnológico, houve um projeto estratégico, muito bem-executado pelos governos militares. Aliás, é a partir de 64 que se institucionaliza, efetivamente, o planejamento estratégico no Estado brasileiro. Não há dúvida, os militares tinham um projeto para o país, mas só focado em tal desenvolvimento. Os resultados alcançados nos campos econômico e tecnológico alimentaram o discurso "Brasil - potência", que traduziu muito bem a vontade militar - ou seja: construir a potência antes da reestruturação da democracia. Essa ordem de prioridade revela, não há dúvida, que os militares não tinham um projeto de desenvolvimento político para o Brasil, no rumo do Estado democrático de direito.

Ridenti - Cada governo da ditadura militar teve suas peculiaridades. Mas, no geral, pode-se dizer sinteticamente que houve um projeto de "desenvolvimento com segurança" para construir um "Brasil grande", retomando o velho postulado positivista de "ordem e progresso". Essa política de desenvolvimento foi feita com empréstimos internacionais, gerando a dívida externa impagável que hoje herdamos.

Velasco e Cruz - Não cabe falar dos militares como se eles formassem um bloco, nem da existência de um mesmo projeto ao longo tempo. Os militares sempre estiveram divididos em uma série de facções, com peso e natureza distintos. Algumas delas careciam de perspectivas claras, contavam com apoios restritos à própria corporação, e tiveram vida curta. Já a tendência dominante era animada por concepções mais amplas, mantinha alianças sólidas no mundo civil e se fez presente em toda a história do regime. Para o conjunto desses grupos e subgrupos, um denominador comum: o anticomunismo. Muitos deles não passavam daí. Mas a facção dominante se distinguia pela visão de uma economia harmonicamente integrada na ordem capitalista internacional, pela insistência no caráter provisório do mando militar direto, e pelo apego à idéia de uma política moldada segundo o figurino liberal-democrático, de participação limitada, em que caberia às Forças Armadas zelar pela observância dos referidos limites.

5 - A democracia pós-64 está batendo na casa dos 20 anos. Em sua opinião, o estado democrático já está consolidando ou o futuro pode nos reservar o risco de um retrocesso?


De Decca - Como historiador, acho que democracia é um conceito tão amplo e aberto que só sabemos o que é, principalmente, quando deixamos de tê-la. A democracia é algo dinâmico, cresceu em função dos movimentos sociais; até há pouco tempo esteve também associada aos direitos sociais e também ao fato de ser um regime mais atraente do que as ditaduras, como o fascismo e o comunismo, que prometeram mundos e fundos no que diz respeito à satisfação das necessidades sociais da população. As coisas hoje se transformam de uma maneira muito problemática - os direitos sociais, nas democracias modernas, estão cada vez menores. Aquilo que de uma certa maneira foi a garantia do estado do bem-estar social, hoje se transformou em impasse. Os direitos sociais estão em crise em termos mundiais. Novas categorias estão sendo debatidas - de minorias, na questão do gênero, da sexualidade, o direito de ir e vir. Com essas mudanças no horizonte, a democracia tem que reaquacionar todo esse quadro de demandas da sociedade civil. Estamos vivendo um período de grande efervescência internacional, no qual a democracia está em risco porque há forças que combatem as sociedades democráticas. A consolidação das instituições democráticas vai ter que reelaborar os seus sistemas de direitos para incorporar novos elementos que venham a reconhecer aqueles que são a grande maioria da população. Existe hoje uma demanda por novos direitos.

Cavagnari - Existem no entorno algumas ameaças de regressão autoritária - por exemplo, na Venezuela, na Bolívia e no Equador. Não creio que tais ameaças representem um perigo para a democracia brasileira. O risco de uma regressão autoritária, no Brasil, não é uma possibilidade real. Nem se pensa nela como possibilidade teórica. A democracia no Brasil já está consolidada.

Ridenti - Sob hegemonia norte-americana, impera a chamada nova ordem mundial, dita neoliberal. Especialmente com a volatilidade do capital especulativo internacional, ela dá pouca margem de manobra aos governos nacionais, de diferentes partidos, cujas políticas acabam sendo muito parecidas. Em particular, os países periféricos têm permanecido prisioneiros da nova ordem, que entretanto tende a gerar descontentamento popular, pois concentra riquezas, dificulta o crescimento de economias periféricas e cerceia direitos sociais. A insatisfação popular é crescente, mas ainda não encontrou sua expressão política. Se ela vier a constituir uma ameaça àqueles que detêm o poder econômico e político em escala nacional e internacional, é certo que a democracia estará ameaçada. O caso da Venezuela é um exemplo vivo.

Velasco e Cruz - Não sei se retrocesso é a melhor palavra, mas basta olhar o que acontece em torno de nós, a começar pelos Estados Unidos, para perceber que existe sempre a possibilidade da degeneração dos padrões de convivência política. No nosso caso, trata-se de algo mais do que mera possibilidade. O Brasil parece viver hoje uma situação inversa àquela do final dos anos 70. Então, tínhamos uma sociedade vibrante que se debatia para liberar-se das amarras da ditadura. Hoje, a competição eleitoral é uma norma enraizada, a liberdade de expressão está assegurada e inexistem impedimentos formais ao exercício da atividade política. Mas é um equívoco considerar que as ameaças à ordem democrática partam sempre do Estado. O quadro social gerado pela semi-estagnação em que nos arrastamos há anos é inóspito para a democracia.


6 - Embora a universidade tenha formado parte substancial da resistência à ditadura, outros segmentos importantes da universidade brasileira nasceram e/ou prosperaram durante a ditadura, como por exemplo a Unicamp e os cursos de pós-graduação. É possível fazer um balanço disso?


De Decca - É muito importante ter em mente o crescimento da universidade brasileira no período porque, de novo, volto a insistir nos padrões de institucionalidade do Brasil. Qual foi o maior movimento de oposição que ocorreu na sociedade depois de 1964? Foram justamente os movimentos oriundos das universidades. Portanto, a universidade brasileira virou um foco de resistência mais forte e mais articulado ao governo militar instalado em 1964. Os olhos dos militares estiveram diretamente voltados para a universidade. A reforma universitária se tornou alguma coisa absolutamente urgente. O exército teve que interferir nesse setor que mostrava alto grau de articulação, razão pela qual há um processo complexo e interessante: ao mesmo tempo em que o governo militar solapa a instituição universitária cassando seus melhores cérebros no AI-5, busca-se fazer com que a universidade se transforme num eixo da própria política científica. Busca-se isso num certo sentido pela neutralização das carreiras que tinham conteúdo crítico muito evidente - as humanísticas -, e um investimento pesado nas áreas tecnológicas, razão pela qual instituições como Capes e CNPq acabam se consolidando com um peso muito forte. É bom lembrar, porém, que nenhuma universidade sobreviveria exclusivamente pela sua vocação tecnológica. Como essa capacidade de articulação já existia nas universidades brasileiras, acho que ao mesmo tempo que se consolidou todo um setor de pesquisa voltado às áreas tecnológicas, foi se produzindo também um território crítico das próprias ciências humanas. Aí houve o que podemos chamar de uma contrapartida. O reitor da Unicamp, por exemplo, tinha uma alta capacidade de negociação porque sabia dessa força de institucionalização que a universidade brasileira tinha condições de criar. Outros representantes da universidade brasileira também conseguiram estabelecer limites e elos de negociações. De uma certa maneira, a institucionalização resguardou a universidade de muitas das arbitrariedades cometidas no período mais fechado do governo militar.

Cavagnari - Tanto o desenvolvimento econômico quanto o desenvolvimento tecnológico do país exigiam uma significativa "massa crítica" de profissionais bem qualificados. A construção da potência brasileira exigia esforço nessa direção, porque sem o domínio de tecnologias avançadas a condição de grande potência regional estaria comprometida. O discurso de "Brasil-potência" decorria de uma proposta geopolítica, cujos fundamentos foram desenvolvidos a partir da década de 20 e consolidados nas décadas de 50 e 60. Essa proposta sugeria a constituição de um conjunto geopolítico abrangendo a América do Sul, o Atlântico Sul e o Pacífico Sul-Americano, sob a hegemonia brasileira. O discurso "Brasil-potência" apostava na expectativa de o Brasil vir a ser uma grande potência regional no século 21. Para atingir esse perfil de grande potência regional não bastava ter uma economia desenvolvida, mas ter necessariamente o domínio das tecnologias avançadas. Assim, sem pós-graduação no País esse domínio não seria alcançado.


Ridenti - Essa foi uma das ambigüidades da ditadura. Ela reprimia os professores e estudantes considerados subversivos. Mas o projeto de desenvolvimento exigia investimentos significativos em ciência e tecnologia, portanto, também na universidade. Ora, os debates e a crítica próprios da atividade acadêmica acabaram por gerar questionamentos crescentes à ditadura.

Velasco e Cruz - Os governos militares investiram na educação universitária por razões políticas - havia uma enorme demanda social a acomodar - e por acreditarem que a formação, em grande número, de quadros qualificados nesse nível era um requisito da sociedade moderna que almejavam. Mas ao agirem assim, eles fortaleciam alguns dos grupos mais sensíveis às restrições à liberdade de expressão e à participação política que eram traços definidores do regime.


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