Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 246 - de 29 de março a 4 de abril de 2004
Leia nessa edição
Capa
1964 - Democracia Golpeada
No inferno da câmara fria
Ex-ativista: Robêni
Dossiê: Congresso da UNE
Dossiê: Zeferino
Dossiê: General de brigada
Dossiê: Homem do sistema
Dossiê: Zeferino nos porões
Quatro visões do golpe
Meninos do ITA
 

9

DOSSIÊ

"Está vendo aqueles professores ali? São todos comunistas, mas sabem trabalhar de verdade"

Em 1975,
Zeferino
volta aos porões


EUSTÁQUIO GOMES


No final de 1975 Zeferino alarmou-se ao saber por João Manuel Cardoso de Mello que um de seus jovens pupilos da Economia, Luiz Gonzaga Belluzzo, fora obrigado a tomar um avião precipitadamente para Londres para escapar à voz de prisão. O crime de Belluzzo era distribuir no campus o jornal do PC do B A Voz Operária, e de constar de uma lista de "Marcados para morrer" onde estavam, além dele, o físico César Lattes, a escritora Hilda Hilst e os médicos Sérgio Arouca e David Capistrano. Dias antes, dois alunos do Instituto de Economia haviam sido apanhados pelo Dops e, sob tortura, mencionaram os nomes de Belluzzo e de Waldir Quadros, um estudante de economia da USP que mais tarde seria contratado pela Unicamp (ver texto a respeito na página 3).

Waldir foi preso quase imediatamente, mas Belluzzo teve tempo e até contou com os favores de um delegado do Dops de São Paulo, Emiliano Cardoso de Mello. O delegado, que era tio de João Manuel e pai de Zélia Cardoso de Mello, a futura ministra da Economia de um presidente ainda distante no tempo, Fernando Collor de Mello, simplesmente recomendou a Belluzzo que desse "o pinote". Foi o que fez, só retornando ao país quando a poeira baixou com a destituição do general Ednardo D'Ávila Melo do comando do II Exército.

Pudesse antever esse passo atrás do regime, Zeferino talvez achasse temerária a realização no campus, naquele mesmo 1975, de um seminário que trouxe a Campinas estrelas da esquerda intelectual mundial, como o historiador anglo-egípcio Eric Hobsbawn. Era o primeiro grande evento internacional promovido pelo grupo de cientistas sociais do IFCH e por trás de sua organização estava o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro. A repercussão foi grande ao ponto de a revista Veja, na época firmando-se como o principal semanário do país, dedicar-lhe uma capa com um título alvissareiro: "Preste atenção em Campinas". Para além dos resultados científicos e dos engenhos da tecnologia que era possível desenvolver no terceiro mundo, Zeferino compreendeu que podia tirar bom partido da circulação de idéias heterodoxas dentro de um certo ecumenismo controlado pelos muros da academia, até porque essa tradição estava se perdendo desde o golpe de 1964. Prezava seus pupilos à esquerda e, diante de Hobsbawn, num rapapé na reitoria, apontou alguns deles e fez um comentário que deixou o inglês com um sorriso nos olhos míopes:

- Estão vendo aqueles professores ali? São todos comunistas, mas sabem trabalhar de verdade.

Estudante foi torturado em três unidades militares

Cinco anos mais tarde, discursando no aniversário da Intentona Comunista a convite do II Exército, em São Paulo, negou ser de direita e definiu-se como um socialista moderado, "irmão de idéias de meu amigo Paulo Duarte, de quem invejava o amor pelo vinho, de Alípio Correa Neto e de Antonio Candido de Mello e Souza". Desses três, Alípio era seu amigo pessoal, Candido o intelectual que mais admirava e a Paulo Duarte ele considerava realmente seu "irmão". Quando Paulo teve de exilar-se em 1967, após ter entrado em rota de colisão com a direita uspiana, Zeferino apressou-se em ajudá-lo comprando-lhe a biblioteca para a Unicamp.

A impaciência com o movimento estudantil colaborou certamente para que alguns meses antes Zeferino não se comovesse muito com o sumiço de um de seus estudantes de ciências sociais, João Aidar, que nas férias de dezembro de 1976 perambulava pela Amazônia e foi preso no Acre por carregar na mochila um exemplar em espanhol do Livro Vermelho de Mao comprado em Lima, no Peru. Até ser localizado por seus pais e solto dois meses depois por falta de provas de seu envolvimento político com a esquerda militante, o estudante passou por três unidades militares e foi torturado em cada uma delas.

Mas o incidente emblemático desse período foi a prisão do professor de história Ademir Gebara na madrugada de 28 para 29 de outubro de 1975. A detenção de Gebara, como tantas outras no país aquela semana, viera na onda de intolerância que sucedeu aos manifestos de jornalistas e acadêmicos inconformados com a morte de Herzog três dias antes. Nessa noite, duas peruas Veraneio do DOI-Codi percorreram vários endereços de Campinas e recolheram, sem maior cerimônia, uma chusma de assustados operários, enfermeiros, funcionários públicos e estudantes universitários, entre os quais dois pós-graduandos da Unesp e um da Unicamp, Gustavo Zimmermann. Na sede do DOI-Codi, Gebara soube que era acusado de "tentar montar" uma gráfica clandestina. De nada valeu explicar que já não era militante político desde os tempos de estudante na PUC de Campinas: o interrogatório varou toda a noite e no dia seguinte ele começou a apanhar. Nas noites seguintes enfrentou sessões de choques elétricos, tapas no rosto e pontapés no traseiro. Certa ocasião levou uma saraivada de pancadas no nariz que o obrigaria, anos mais tarde, a fazer uma cirurgia corretiva. Dormia num colchão fino estendido no chão e acordava ouvindo gritos lancinantes. Uma noite viu serem torturados impiedosamente, durante longas horas, a mulher e um filho do líder portuário Emílio Bonfante, de Santos. Do mundo exterior, nos primeiros doze dias, nenhuma informação entrou.

Na Unicamp, os que acreditavam no relaxamento de sua prisão, confiados em que tudo se esclareceria rapidamente, sentiram-se alarmados com o passar dos dias. Organizou-se uma assembléia na sede da Adunicamp para discutir o assunto. Resolveu-se que um grupo subiria para falar com o reitor e pedir sua intermediação. Subiu o diretor Manoel Berlinck acolitado pelos economistas Wilson Cano e Belluzzo, pelos lingüistas Carlos Vogt e Carlos Franchi, pelo historiador Ítalo Tronca, pelo educador Rubem Alves e pelo sociólogo André Vilallobos. Zeferino recebeu-os cheio com um pé atrás.

- Vocês dizem que ele não fez nada. Mas se está preso é porque fez alguma coisa.

E teceu uma longa consideração sobre a função da universidade, a neutralidade do saber e a inconveniência de se praticar dentro dela o debate ideológico. Não que os professores, como cidadãos, devessem se abster de adotar a ideologia que lhes parecesse correta, ele próprio tinha a sua, mas tratava-se de não converter a sala de aula em palanque doutrinário; até porque os estudantes, indefesos diante da autoridade moral dos mestres, não estavam ainda em condição de discernir e escolher. Berlinck atalhou:

- Gebara nunca fez proselitismo, professor. No máximo é um simpatizante da esquerda.

- Vocês adoram falar mal do governo. Se esquecem que eu sou parte do governo.

- Por isso pedimos que vá vê-lo, professor. O senhor tem o nosso respeito e o das autoridades.

0Não estavam fugindo à verdade, mas incensá-lo era um estratagema muito usado para que pudesse ceder em alguma coisa. Conhecendo outra de suas fraquezas - o xodó que tinha pelos "guardinhas", mensageiros mirins que ele contratava em quantidade junto a uma instituição da cidade - Vogt contou-lhe que alguns deles tinham levado cascudos dos agentes da OBAN. Ao ouvir isso, Zeferino subiu nas tamancas. Falou em "abuso de autoridade" e disse que lavraria um protesto a respeito. Acima de tudo tinha horror à idéia de intervenção policial na Unicamp, como ocorrera na USP e em várias universidades federais e até particulares. Graças a sua interlocução privilegiada em todos os estamentos, construíra para a Unicamp a imagem de uma instituição intocável. Se dava satisfação ao arbítrio, era para preservar o espaço da liberdade acadêmica. Tudo isso ia dizendo enquanto prometia, agora sim, fazer uma visita a Gebara.

Cumpriu a promessa logo no dia seguinte, o décimo-segundo da prisão do professor de história. Na tarde do dia 10 de novembro, Gebara foi chamado por um carcereiro que o mandou aprontar-se. Ele trocou o uniforme da prisão (um macacão do Exército) pela roupa amassada que ainda trazia guardada num saco e, cinco quilos mais magros, barba por fazer e uma venda nos olhos, acomodou-se numa Variant que o conduziu pelas ruas de São Paulo. Quando foi autorizado a tirar a venda, estava sob a mira de uma metralhadora. Soube que estava no QG do II Exército quando um oficial ordenou ao agente que portava a arma:

- Guarda isso.

E ao prisioneiro perguntou por que não tinha feito a barba. Antes que pudesse responder, Gebara viu Zeferino surgir por um corredor. Estabeleceu-se um diálogo difícil, pois Gebara não o tinha visto senão fortuitamente e o reitor a bem dizer não o conhecia.

- Que houve?

- Fui preso sem ter nada.

- Nunca fez militância?

- Quando estudante, sim, mas isso já faz tempo.

Afável, Zeferino contou que estivera com sua família e que estava fazendo gestões para a sua soltura. Em seguida perguntou se estava sendo bem tratado. Com um coronel relações públicas por perto, Gebara não se atreveu a falar dos maltratos.

- Lhe falta alguma coisa?

- Faltam cigarros, respondeu Gebara.

A partir daí a conversa ganhou um tom surrealista, com Zeferino achando um absurdo que faltassem cigarros para os presos e o relações públicas dando-se ao trabalho de explicar que, como o comandante Ednardo não fumava, eles tinham encontrado uma boa oportunidade para que ninguém fumasse também.

- Falta café, acrescentou Gebara.

Zeferino estrilou:

- Como? Não tem café?

E ensaiou uma descompostura no coronel RP:

- Não tem café, não tem cigarro, os presos não fazem barba, andam por aí de roupa amassada... Muito bonito, coronel!

O coronel ouviu calado e Zeferino encerrou ali a visita. No entender de Gebara, Zeferino mostrara sagacidade ao apanhar os sinais que estavam em evidência - o desalinho, a barba, a falta de conforto - para deixar claro que havia estabelecido um juízo crítico da situação e, mais importante ainda, que dava como quebrada a incomunicabilidade do prisioneiro. Seus próprios companheiros de cela foram afetados positivamente por esse visitante inesperado que não tinham visto mas que de algum modo sabia agora da existência deles.

Não deixa de ser significativo que, após o encontro com Zeferino e até sua libertação duas semanas mais tarde, Gebara tenha apanhado mais que antes. É verdade que, desde então, um funcionário do SNI fora colocado ali para evitar que durante os interrogatórios os agentes passassem dos limites, mas sua ocasional (ou intencional?) ausência era o suficiente para acordar o sadismo dos interrogantes. Praticavam então um tipo de pancadaria técnica que não deixava marcas e se destinava, unicamente, a aplacar a sua raiva.



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