Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 246 - de 29 de março a 4 de abril de 2004
Leia nessa edição
Capa
1964 - Democracia Golpeada
No inferno da câmara fria
Ex-ativista: Robêni
Dossiê: Congresso da UNE
Dossiê: Zeferino
Dossiê: General de brigada
Dossiê: Homem do sistema
Dossiê: Zeferino nos porões
Quatro visões do golpe
Meninos do ITA
 

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DOSSIÊ

FAZIA discursos no 31 de março, mas descia aos porões para livrar seus pupilos

Zeferino flutuou entre
a adesão e a resistência


Em fins de 1968, o regime militar endureceu. Com a edição do Ato Institucional número 5, importantes liberdades civis foram suprimidas: o presidente podia cassar direitos políticos, fechar o Congresso Nacional, decretar intervenção em estados e municípios, proibir manifestações sobre assuntos políticos, aplicar o princípio da liberdade vigiada e suspender a garantia do habeas-corpus.


Isto aqui é uma universidade, e não a caserna de onde o senhor veio

Zeferino Vaz, em vista disso, acautelou-se contra os "excessos" estudantis. Não tinha a intenção de permitir que a linha dura do regime o acusasse de leniência. Bastava olhar em torno para ver que o movimento estudantil havia se radicalizado e estava permeado por uma miríade de pequenas agremiações partidárias de esquerda que iam da linha trotskista à maoísta - PC, PcdoB, PCBR, Ala Vermelha, UPR, POC etc - todas atuando na clandestinidade e ao arrepio das leis de exceção. Na USP, a ocupação da Faculdade de Filosofia pelos alunos havia terminado com a morte de um estudante e a depredação do prédio da rua Maria Antônia por grupos paramilitares fortemente armados e escoltados por forças policiais. Após o desmantelamento do XXX Congresso da UNE naquele ano, o clima era de dissolução completa.

Quando soube que o novo presidente do Centro Acadêmico das Ciências Exatas, Alcides Mamizuka, havia se filiado à Aliança Libertadora Nacional, do líder guerrilheiro Carlos Mariguella, a paciência de Zeferino caiu a zero. Numa entrevista ao Jornal da Tarde, de São Paulo, sem qualquer preocupação com apresentar provas, acusou as agremiações estudantis de carrearem dinheiro para a guerrilha urbana.

No início de 1969, Mamizuka deixou de freqüentar as aulas do curso de tecnologia de alimentos, que eram ministradas no ITAL (Instituto de Tecnologia de Alimentos), já que a Unicamp ainda não contava com instalações para isso. A razão é que sempre encontrava um camburão na porta do prédio. Para não ser apanhado, saltava de uma república a outra levando só a mochila de estudante. Mesmo assim, um dia encontrou seu quarto revirado e confiscados os seus livros de Lênin, Marx, Engels e Regis Debray. Abandonado o curso, perdeu-se nos labirintos da capital paulista, mergulhando de vez na guerrilha. Mas não pegou em armas: seu trabalho era a propaganda - panfletos, cartazes e mensagens revolucionárias aos combatentes e à população. Em fevereiro de 1970 foi preso e confinado na rua Tutóia, onde ficava a prisão da OBAN criada por Abreu Sodré. No dia seguinte, ao ser levado para fazer o reconhecimento de um ponto de reunião da ALN, tentou fugiu e levou três tiros de pistola nas costas. Passou dois anos entre as celas da OBAN, do DOPS e do presídio Tiradentes. Era, até então, o primeiro e único estudante da Unicamp a ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional, mas isso estava longe de comover Zeferino. Bem ao contrário, preveniu-o contra os riscos do aliciamento de estudantes. Desta vez não houve chocolates nem cigarros, muito menos visitas de reconforto moral na prisão.

Um incidente ocorrido no início de 1970 mostra que sua intolerância na época tendia a politizar até mesmo casos comuns de indisciplina. Durante a calourada daquele ano, veteranos do curso de Medicina exageraram nas sessões de trote e bolinaram em plena rua algumas representantes da fina flor da sociedade campineira. As famílias das calouras foram se queixar ao promotor público Armando Gallo, que pressionou Zeferino até ao ponto em que o caso foi levado ao Conselho Diretor e uma sindicância foi aberta. Como foi quase impossível identificar os culpados, Zeferino atirou toda a responsabilidade sobre as lideranças estudantis do momento, punindo quatro delas com a perda do semestre letivo*. Em razão disso as relações entre o reitor e os estudantes - que tiveram seu melhor momento no turbulento ano de 1968 - ficaram arranhadas por um bom tempo.

É daquele ano um pequeno ensaio que escreveu de uma assentada, intitulado "Contribuição ao conhecimento da guerra revolucionária". Vinha aureolado por um subtítulo tão notável como espantoso - "O processo do trote dos calouros como técnica de base científica reflexológica de imposição de liderança estudantil subversiva nas universidades" - que denunciava a neurastenia política de que estava dominado naquele momento.

A crer na sinceridade de sua análise, Zeferino estava longe de achar que o trote fosse simples estudantada. Segundo ele, os excessos praticados pelos veteranos eram, em primeiro lugar, "um meio de satisfação de impulsos sadomasoquistas inerentes ao homem em grau variável, que vão desde as formas frustas até as neuróticas e psicóticas".

Estas se manifestam pela necessidade de impor sofrimento, quando predomina o comportamento sádico, ou de obter satisfação pelo sofrimento, quando o componente masoquista é o predominante. Isso explica por que alguns veteranos sádicos se excedem e por que alguns calouros masoquistas se submetem alegremente às práticas sádicas.

No entanto, segundo sua teoria, tal interpretação só era aceitável até 1955. A partir desse ano, a esquerda subversiva se convencera de que os estudantes universitários constituíam matéria-prima muito mais receptível que os operários à mensagem revolucionária, e passou a concentrar neles parte substancial de seus esforços. "O processo do trote está sendo, a nosso ver, cientificamente orientado e utilizado com excelentes resultados através de técnicas de reflexologia para condicionar e impor obediência", escreve. Segundo essa conclusão, os veteranos do trote seriam, sem exceção, líderes subversivos. Chegara a este resultado após longa observação - relata - o que afinal tinha a ver com sua área de pesquisa, pois não havia dúvida de que esses líderes se inspiravam na teoria dos reflexos condicionados de Pavlov, introduzidos em 1915 e depois incorporados em definitivo à fisiologia. O americano Watson estendeu à espécie humana o que Pavlov fez com cães, criando um ramo da psicologia conhecido como behaviorismo, a ciência do comportamento ou reflexologia. Era com base nessa ciência que os veteranos agiam, argumentava o reitor.

Ia mais longe. Segundo ele, entre 15 e 25 de fevereiro, período das matrículas nas universidades, "os líderes subversivos adequadamente preparados procedem à raspagem dos cabelos dos calouros e cobram uma taxa em dinheiro". A partir daí, durante aproximadamente 50 dias, diariamente os calouros recebem ordens acompanhadas de gritos e ameaças.

Sucessiva e diariamente, os calouros desnudados são pintados nas costas com dísticos obscenos ou convocados para reuniões onde os líderes lhes fazem preleções e lhes determinam o comportamento. Os calouros que reagem são violentamente castigados. (...) O processo culmina com a passeata dos calouros pela cidade nos primeiros dias de abril. É uma espécie de desfile da tropa em que se testa a organização dos grandes grupos de estudantes e a obediência em massa às ordens dos líderes e de seus auxiliares. (...) Decorridos 30 ou 50 dias, basta a presença destes ou o recebimento de suas ordens para que o estudante reaja obedientemente a qualquer determinação.

Não lhe passa despercebido que, na hierarquia da subversão organizada que imagina atuando às suas costas, "são sempre os mesmos líderes que se indicam à eleição dos diretórios acadêmicos, que presidem as assembléias gerais, que promovem e dirigem as passeatas estudantis de protesto contra a guerra do Vietnã, o imperialismo estrangeiro" etc. E depois de acusar os professores das faculdades de Filosofia do país de "atrair para o marxismo os jovens mais agressivos, revoltados ou até idealistas", degradando suas inteligências, fecha o incrível tratado exprimindo sua convicção de que

a ação preventiva e coercitiva do Ato Institucional número 5 e da legislação subseqüente interromperá o processo de afirmação de novos líderes subversivos e do condicionamento das massas dos novos universitários.


Dois anos depois do AI-5, a catilinária de Zeferino ainda refletia a atmosfera pesada de dezembro de 1968, quando o regime militar iniciado quatro anos antes vestiu assumidamente o traje da ditadura. Alguns dias após a publicação do ato em Brasília, o general José Fonseca Valverde, coordenador das engenharias e phD por Stanford, compareceu a uma reunião da Comissão de Ensino carregando uma valise quadrada. No calor da discussão, abriu-a e depositou sobre a mesa um Colt 44.

- Agora tem lei neste país, disse. Vou botar esses comunistas na cadeia.

Referia-se a todos os que não comungavam dos ideais do regime. O físico César Lattes, conhecido tanto por sua genialidade quanto pela irreverência, e cujo cachorro respondia pelo nome de Costa e Silva, pôs-se de pé, mirou Valverde e disse-lhe com dureza igual:

- Considerando que isto aqui é uma universidade, e não a caserna de onde o senhor veio, faça o favor de guardar imediatamente essa arma. Valverde obedeceu. Zeferino, que não estava presente, ficou chocado ao tomar conhecimento do episódio. Sua turbulenta passagem pela Universidade de Brasília, nos primórdios do regime, dera-lhe trauma de interferências de generais em assuntos da cozinha universitária. O diretor do Instituto de Matemática, Rubens Murillo Marques, que detestava Valverde, aproveitou para alertar o reitor:

- Cuidado. Hoje ele ameaça a gente. Amanhã vai ameaçar você.

Zeferino preferiu não acreditar na hipótese, mas prometeu tomar providências contra os excessos do general. Tarefa que, naquela circunstância da vida do país, não era coisa simples.

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