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A alma do menino e
os mistérios da mente



ÁLVARO KASSAB


Acima, Benito aos 9 anos, com o tio Eduardo (primeiro à esq.) e amigos limpando o arrozal; abaixo, com o mesmo grupo (Eduardo é o último à direita), numa pausa para a música (Fotos: Acervo pessoal)Benito Pereira Damasceno não conseguiu chorar tão logo viu o corpo de sua mãe, Enedina, que não resistiu ao trabalho de parto. O bebê não vingou. A tragédia foi presenciada por uma única testemunha: seu pai, o lavrador Jacinto, a quem coube providenciar o traslado do corpo da esposa. Não foi um cortejo convencional – da casa, no sítio conhecido como Curralinho, até o município de Chapéu, eram 12 léguas. Jacinto deixou para trás o roçado de arroz, milho, feijão e abóbora, envolveu o corpo numa rede e, auxiliado por outros homens, seguiu a pé sob o sol do cerrado goiano. Foi assim, numa rede, que Benito viu sua mãe pela última vez. O choro (tardio?) viria depois do impacto inicial. Mas, reconhece hoje Benito, desencadeado muito mais pela atmosfera catártica do velório do que pelos sentimentos difusos de um menino de 12 anos. Benito entenderia mais tarde o significado da perda.

Benito vira a mãe duas ou três vezes, já que não fora criado pelos pais biológicos. Ficara combinado que Enedina daria a guarda de seu filho mais velho a seu irmão Eduardo da Silva Guimarães. O primogênito morreu ainda no berço. Assim, coube a Benito, nascido em outubro de 1942, morar com seu tio, um farmacêutico prático que fazia as vezes de único médico de Chapéu, hoje Monte Alegre de Goiás, a 570 quilômetros de Goiânia. Eduardo foi a grande influência do menino Benito, que sempre viu nele o seu verdadeiro pai.

Localidade de Curralinho, que fica às margens do Rio Paraná, onde Benito nasceu  (Foto: Acervo pessoal)Por iniciativa do farmacêutico, o garoto jogava damas e freqüentava as rodas nas quais a política era o assunto. Eduardo, mais tarde eleito vice-prefeito, era generoso nas coisas das letras. Voltava carregado de livros das comitivas que partiam para Barreiras, cidade baiana que abastecia o sertão goiano. Benito chegou a acompanhar o tio numa dessas viagens. A cavalo, atravessavam campinas sem fim, segundo relatou Eduardo em carta endereçada a Benito e publicada no livro “A Produção Geográfica de Goiás”, do professor Horiestes Gomes, da Universidade Federal de Goiás. Os tropeiros percorriam centenas de léguas, pousavam em locais estratégicos e voltavam com dezenas de burros carregados de víveres e encomendas – de tecidos a querosene.

A infância de Benito transcorreu na companhia do tio, da avó (mãe de Enedina) e de três irmãos – na verdade, primos, já que eram filhos de Eduardo. Como pernoitava na farmácia, Benito viu inúmeras vezes seu tio sair na madrugada alta para cuidar de doentes na zona rural, sem nada receber pelo ofício. A experiência o marcaria tanto quanto o fato de constatar a impotência do pai no tratamento do irmão caçula, Elzevier, portador de uma doença mental – provavelmente causada por um sarampo malcuidado.

O Hospital do Leste, na Universidade de Gotemburgo  (Foto: Acervo pessoal)Benito acompanhou de perto toda o sofrimento de Elzevier, desde o surgimento da doença, quando o garoto tinha 6 anos de idade, até a sua morte, aos 18. A doença, degenerativa, avançou aos poucos, tirando de Elzevier toda a qualidade humana – ele não conseguia ouvir, expressar-se e não compreendia a linguagem gestual –, poupando apenas funções vitais, como comer, ver e andar. Benito recorda-se do dia que seu irmão caçula sumiu à tardinha. A cidade inteira foi mobilizada na busca. Elzevier estava numa chapada, a poucos metros de uma queimada. Fora atraído pelo fogo que varria a vargem.

Benito começou a ganhar o mundo em 1957. Chegara a hora de partir para Goiânia. Em Monte Alegre, só havia o primário. Benito, que aprendeu a ler aos 10 anos, prestou concurso para ingressar no então ginásio da Escola Técnica Federal e Industrial de Goiás. As estratégias do jogo de damas lhe foram muito úteis – passou em segundo lugar graças ao domínio do raciocínio visual-espacial. Aluno interno, já que não tinha condições de se virar financeiramente, começou a tomar gosto por atividades políticas, presidindo o grêmio estudantil da escola e participando das reuniões da União Goiana dos Estudantes Secundaristas.

IPM - Essa relação foi aprofundada no Liceu de Goiânia, onde Benito cursou o que seria hoje o ensino médio. Filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e passou a ser dirigente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), desenvolvendo atividades no meio rural e nos sindicatos. Em uma delas, um mês antes do golpe de 64, acabou preso na cidade de Catalão ao participar de um comício do sindicato da construção civil. Na praça onde estava o palanque, dezenas de pessoas famintas saquearam um caminhão carregado de porcos que seguia para São Paulo. Alarmados, donos de armazéns vizinhos plantaram a notícia de que seus estabelecimentos seriam invadidos pelo povo. Benito e o presidente do sindicato foram para a cadeia, onde permaneceram por 24 horas, saindo graças à interferência do então governador Mauro Borges. A detenção custou a Benito o primeiro Inquérito Policial Militar (IPM) do Estado e um ano e meio de clandestinidade.

Benito na Suécia  (Foto: Acervo pessoal)Quando as tropas da ditadura tomaram as ruas, Benito e outros 15 companheiros, entre os quais José Porfírio, foram convocados às pressas para uma reunião do partido comandada por Jacob Gorender, membro do Comitê Central. Ficou decidido que eles partiriam para os municípios de Trombas e Formoso, à época governados por comunistas. Nestas localidades, os militantes do PCB organizaram a resistência e desenvolveram atividades de conscientização da população, sobretudo do meio rural. A tarefa foi abortada com a chegada dos militares à região. Acossado e em número pequeno, o grupo avaliou que seria suicida a opção de permanecer na região. A maioria dos militantes embrenhou-se na floresta e seguiu para o Maranhão pelo rio Tocantins; Benito rumou para a sua região, onde permaneceu até a poeira baixar e o IPM ser arquivado.

Livre da Justiça, Benito retomou os estudos, ingressando em 1966 na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás. Foi aprovado entre os primeiros colocados. Nesse meio tempo casou-se em 1969 com Dione, também estudante de medicina, e envolveu-se na edição do jornal “Esqueleto”, produzido pelo centro acadêmico. A publicação era distribuída clandestinamente a professores e alunos. Ao final do quinto ano de faculdade, prestou um exame para tentar uma vaga no Hospital do Servidor Público de São Paulo, referência na área de saúde. Aprovados, Benito e Dione cursariam o sexto ano e ficariam lotados no Departamento de Oftalmologia.

 e hoje, na Unicamp  (Foto: Antoninho Perril)Em julho de 1972, um episódio alteraria o curso da vida de Benito. Ele estava clinicando quando uma enfermeira lhe informou que o esperavam na porta com uma encomenda de Goiás. Ao sair, o estudante avistou dois homens e logo viu que se tratavam de policiais. Sem esboçar reação, pediu apenas que desejaria comunicar Dione de que seria detido. Não precisava. Dione já estava no camburão.

O inferno do casal começou nos porões do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, região central de São Paulo, para onde eram levados os presos políticos. Benito só saía de sua solitária “de dois metros por um metro e meio de largura” para ser interrogado. O repertório da crueldade incluía espancamentos, choques elétricos nos órgãos sexuais e ameaças de morte – a mais comum era de que o interrogado seria atirado ao mar, o que de fato acabou ocorrendo com muitas das vítimas.

Benito, que àquela altura perdera o contato com Dione, foi salvo da morte por um militar goiano que acabou convencendo a alta patente de que o estudante deveria ser poupado. Acabou sendo transferido de camburão, encapuzado, para um quartel de Goiânia, onde, suspeita ele, era drogado diariamente. De lá seguiu para Brasília, onde ficou numa solitária do PIC – Polícia de Investigação Criminalística. Em setembro, depois de quase três meses incomunicável, foi para uma cela coletiva com outros presos políticos. Dione, que também estava em Brasília, foi absolvida e libertada.

A pena - Solto em novembro para aguardar a sentença em liberdade – a condenação, conforme decisão do Conselho da Marinha, seria de seis meses de prisão –, Benito concluiu o curso, recebendo o diploma em março de 1973, e fez residência em doenças infecciosas no Hospital das Clínicas da UFGO. Atuou também um curto período como professor assistente de Anatomia e Neurofisiologia da Universidade Católica de Goiás. Os arapongas de plantão, entretanto, não lhe davam sossego. A vigilância dos agentes era diuturna e o fato de ser um ex-preso político logo respingou nos empregos. Em maio de 1974, cumpriu mais dois meses de prisão, já que havia ficado outros quatro trancafiado. Ao sair da cadeia, soube que um promotor do Exército havia ingressado com uma apelação para aumentar a pena. Temendo pelo pior, ele e Dione providenciaram passaporte e saíram, em agosto, às pressas para a Alemanha Oriental. Lá, cinco meses depois, receberam a notícia: o Supremo Tribunal Federal havia aumentado a pena de Benito para dois anos de prisão.

A adaptação de Benito ao regime pró-soviético, entretanto, foi penosa. A começar pela impossibilidade de trabalhar nas áreas de seu interesse, neurofisiologia e neuropsicologia. A polícia tratava os estrangeiros como suspeitos, a comunicação com o Brasil era muito difícil – até por meio de cartas – e o protecionismo científico era ditado pela xenofobia e pelo espectro da guerra fria. Em setembro de 1975, Benito e Dione decidiram partir para a Suécia, por sugestão de amigos.

O começo foi difícil. Benito trabalhou dois anos e meio como assistente de enfermagem até submeter-se a uma prova de interpretações de leis aplicadas à saúde e ao exercício da profissão médica. Aprovado, fez dois anos e meio de residência médica e, em seguida, especializou-se em neurologia. Em 1977, ganharia um Eduardo, seu primeiro filho (hoje sextanista de medicina) e perderia outro, seu pai, falecido em Monte Alegre. Em 1979, nasceria o caçula Alfredo, que faz hoje o segundo ano de residência médica.

Tudo corria bem – o trabalho era valorizado, o socialismo não tinha mordaça, os direitos sociais eram garantidos – até o filho mais velho começar a ser discriminado na creche por ser filho de estrangeiros. Relatos de racismo chegavam ao conhecimento de Dione, que se especializou em psiquiatria. O casal não esperou pelo pior. O brasileiro nascido no sítio Curralinho, que exercia a função de médico-chefe do Departamento de Neurologia do Hospital do Leste, da Universidade de Gotemburgo, estava decidido a deixar a Suécia, para a incredulidade dos colegas nórdicos.

No final de 1983, depois de nove anos em Gotemburgo, Benito, mulher e filhos desembarcaram em Goiânia. Logo criaria, em sociedade com um médico que passara pela Alemanha, um serviço de cirurgia para epilepsia no Instituto Neurológico de Goiânia. Em busca de novos horizontes, deixou em 1985 um currículo na Unicamp. Foi contratado em 1º de março de 1986. Benito diz sentir-se em casa desde então. Por opção e idealismo, dedica-se em tempo integral ao ensino e a pesquisa. Poderia estar numa clínica particular, ter seu próprio consultório, mas rejeitou convites e propostas financeiramente mais vantajosas.

Nestes 19 anos, Benito construiu na Unicamp um currículo invejável. Fez mestrado (1989), doutorado (1993) e pós-doutorado/livre-docência (2000); chefiou o Departamento de Neurologia da FCM (1994-1998); coordena desde 1986 a Unidade de Neuropsicologia e Neurolinguística, Demências e Distúrbios Associados; coordena quatro disciplinas do programa de pós-graduação, que chefiou por quatro anos; editou dois livros e teve 43 artigos publicados; liderou quatro grandes linhas de pesquisa sobre esclerose múltipla, mal de Alzheimer e acidente vascular cerebral; implantou o serviço inovador de cirurgia de epilepsia e o Centro de Convivência de Afásicos, este juntamente com professores do Instituto de Estudos da Linguagem; e tornou-se referência na área de neuropsicologia e neurociência cognitiva, mais especificamente das funções corticais superiores.

Benito acredita que mente, cérebro e atividade externa são indissociáveis, formam uma unidade. O mergulho nos meandros do funcionamento da mente só foi possível graças à identificação do pesquisador com a Unicamp, na opinião de Benito a universidade mais democrática do país. O fato de a instituição ser impermeável às injunções políticas, a excelente convivência com os companheiros e o funcionamento dos departamentos, todos sujeitos a decisões coletivas de comissões, encaixam-se nas convicções socialistas do pesquisador. Benito destaca o trabalho do professor Fernando Costa, hoje vice-reitor. Segundo ele, o ex-diretor da FCM fez uma revolução ao valorizar o regime de tempo integral e criar uma infra-estrutura de pesquisa que fortalece a universidade pública.

E o que restou do menino Benito? Antes de falar, o professor faz uma pausa emocionada. O silêncio, breve mas intenso, que bem poderia ser a resposta, precedeu a história da morte da mãe narrada no primeiro parágrafo desta matéria. Benito continua, voz baixa, firme: da infância, ficou muito – o gosto pelo conhecimento, a curiosidade. Um dos legados, porém, talvez lhe o seja mais caro: a compaixão pelas pessoas pobres. Foi ajudado por elas na infância e na adolescência, e por elas foi preso, perseguido e torturado. Por elas, diz, faz questão de cumprir plantões até hoje, “quando poderia ganhar num dia o que recebe em três meses”, segundo ponderou um colega proprietário de uma clínica.

Bobagem imaginar que Benito renegou seus ideais. Vivenciou de perto o horror de regimes fechados – sabe que o chamado centralismo democrático soviético naufragou por falta de liberdade –, mas ainda acredita que o futuro da humanidade está no comunismo solidário. Costuma afirmar que a natureza humana é aberta; que a mente questiona, é curiosa. Rejeita a tutela por entender que o povo precisa se organizar por conta própria. Não deixa de emitir opiniões que corroboram sua coerência, muito embora seja apartidário e evite falar de política na Unicamp: prega a reforma agrária, defende o fortalecimento do Estado e o investimento maciço em ciência e tecnologia. Sem isso, argumenta, o país continuará refém dos grandes interesses impostos pela globalização. “O mundo ainda é bárbaro. E os bárbaros só respeitam os bárbaros”.

O médico que vive de desvendar os mistérios da mente acredita que a compreensão da natureza torna o homem mais humano. O menino do cerrado, que todos os dias ia à roça e ao garimpo com o pai, cresceu entre jatobás do campo, guaviras e alcagaitas. Enedina, Eduardo, Elzevier. O menino vingou e seu coração sobreviveu à barbárie.

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