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São Paulo: 1918
 

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Editora da Unicamp lança livro que narra
o impacto da maior epidemia da história na Paulicéia


São Paulo, 1918:
a capital do inferno


LUIZ SUGIMOTO


Enfermaria improvisada no salão de festas do clube Paulistano, um dos mais tradicionais de São PauloEndemia: doença que existe constantemente em determinado lugar e ataca um número maior ou menor de indivíduos. Epidemia: doença que surge rapidamente num lugar e acomete simultaneamente grande quantidade de indivíduos. Pandemia: epidemia generalizada. Pandemônio: palácio de satã, capital do inferno, reunião ou conluio de pessoas para fazer o mal ou armar a desordem. Um cineasta provavelmente atropelaria o Aurélio e leria "Pandemônio" como um título chamativo para o filme-catástrofe que se inspirasse, por exemplo, na gripe asiática, que sobressaltou o mundo no ano passado, embora não tenha efetivamente extrapolado fronteiras a ponto de se tornar uma pandemia, e tampouco tenha sido formulada por espíritos demoníacos.

Charge publicada em jornais da época: humor negro e promessas de curaSe este cineasta for brasileiro, encontrará aqui um roteiro pronto nesta linha, baseado na epidemia de gripe espanhola que atingiu o país em 1918, ambientada na cidade de São Paulo. O roteiro está no livro Influenza, a medicina enferma, de Liane Maria Bertucci, a ser lançado pela Editora da Unicamp no próximo dia 2 de junho, na Estação Santa Fé, em Campinas. Historiadora com graduação, mestrado e doutorado na Unicamp, Liane Bertucci venceu com folga o desafio feito à época por um médico chamado Arthur Neiva: "O historiador que, no futuro, procurar descrever as principais epidemias que assolaram o Brasil, com muita dificuldade poderá fazer idéia da formidável calamidade que foi a gripe epidêmica". Neiva era o diretor do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo quando a gripe espanhola matou mais de 5.000 paulistanos, depois de contaminar um terço dos 528.295 habitantes daquela que por três meses se transformaria na capital do inferno - um pandemônio.
Anúncio publicado em jornais da época: humor negro e promessas de cura

Impressiona o vigor do texto de Liane Bertucci. Parece não haver frases sem informações relevantes, o que ajuda a medir a profundidade da pesquisa realizada pela historiadora e impõe um ritmo acelerado no desvendamento dos sucessivos cenários de uma tragédia humana daquela proporção. "A gripe espanhola foi a maior epidemia da humanidade, maior que a peste negra. Em comparação à tuberculose ou Aids, considerando a relação tempo-quantidade de vítimas, a influenza é insuperável, pois matou cerca de 20 milhões de pessoas no planeta. Nada, nem as grandes guerras foram tão letais para a humanidade", afirma a pesquisadora, que hoje é professora da Universidade Federal do Paraná.

A história da gripe espanhola poucas vezes foi escrita com tantas minúcias. Antes, havia apenas três livros a respeito, como veremos em texto nesta página. Liane Bertucci conta que, em 1917, as autoridades de São Paulo faziam discursos inflamados sobre a superioridade paulista no tratamento das questões da saúde e da insalubridade, graças à infra-estrutura montada para enfrentar notadamente as moléstias decorrentes da aglomeração urbana. Até meados de 1918, os paulistanos estavam preocupados com a carestia e as informações sobre a Primeira Guerra Mundial. Sérios problemas na agricultura ameaçavam o abastecimento e organizava-se a Missão Médica do Brasil para prestar assistência aos combatentes aliados.

Gripe matou mais de 5 mil paulistanos

A professora Liane Berticci, autora do livro: "O tempo da epidemia é o da solidão, da suspeição generalizada"Peste a bordo - Por isso, poucos deram atenção às pequenas notícias vindas da Europa sobre uma doença que já vitimara muitas pessoas. A epidemia se alastrou rapidamente pelos países em guerra, derrubando soldados de várias nacionalidades. A Missão Médica já estava em Dacar (Senegal) desde 5 de setembro, juntamente com outros navios do Brasil da divisão de guerra. Mais de 50 brasileiros, médicos inclusos, teriam morrido por causa da influenza. A reação foi de pavor quando o Demerara ancorou no Rio de Janeiro em 14 de setembro, depois de passar por Recife e Salvador trazendo mortos a bordo. A imprensa informava que outro navio, o Highland Glen, trazia jovens cujos pais morreram da doença em Portugal e que tinham como destino a cidade de São Paulo.

No dia 21 de outubro, São Paulo estremeceu: a espanhola fazia a primeira morte, um homem. Segundo Liane Bertucci, "a capital já havia começado efetivamente a parar". Fosse um filme, seria de tirar o fôlego. Repentinamente, as pessoas começam a tossir, suando febris, rostos azulando com a dificuldade respiratória. Os doentes que não são isolados correm desesperadamente para postos de socorro improvisados em escolas, clubes, igrejas, ou para as farmácias atrás de fórmulas que os tornem resistentes à peste - na forma pneumônica, é a morte. Autoridades distorcem e escamoteiam informações sobre a proporção da epidemia. Os médicos, atônitos com a letalidade da doença e a rapidez na propagação, desconhecem e divergem quanto a formas de tratamento.

A medicina popular ganha adeptos apaixonados, que discorrem sobre as propriedades do alho, cebola, canela, folhas de eucalipto e, sobretudo, do limão. O quinino vira produto cobiçado. Os jornais se enchem de anúncios de remédios que antes serviam apenas contra constipação e dor de dente, mas que pretendem revelar poder também contra a gripe espanhola. Um fabricante de cigarros anuncia: "Nada de pânico, fume Sudam!". Charlatões vendem suas alquimias, amuletos e feitiços.

O isolamento - Liane Bertucci escreve que "o tempo da epidemia é o da solidão, da suspeição generalizada, com o esgarçamento das relações humanas". Quem permanece imune tranca-se em casa, não recebe amigos nem parentes. Fecham-se bares, cinemas, teatros. Os guardas são aconselhados a evitar apertos de mãos, limitando-se à continência. Abraços e beijos são considerados quase que atos de traição. "As tragédias que aconteciam no delírio da febre se repetiam com freqüência", acrescenta a autora. Gente gripada tentava o suicídio ou matava o mais próximo. Doentes saltavam das janelas de suas casas ou dos hospitais.

Em poucos dias, 11.762 covas foram abertas e 8.040 utilizadas (não apenas de gripados). Os cemitérios do Araçá, Brás, Consolação e Penha ganharam iluminação noturna e o número de coveiros foi quadruplicado para dar conta da demanda. O próprio humor era mais negro, como na charge em que cocheiros disputam violentamente o cliente que quer transportar o caixão. O preconceito contra os pobres também aflorava: o bairro do Brás, por ser o mais populoso e habitado por operários, foi tido pelas autoridades e jornais como o mais sujeito à propagação do mal. "Agora, mais do que nunca, eles eram as classes perigosas", ironiza a historiadora.

O carnaval - A epidemia começou a declinar em fins de novembro. Enquanto os médicos prosseguiam nos debates sobre a causa e possíveis tratamentos da influenza, o número de hospitais provisórios foi diminuindo e os postos de socorro encerravam suas atividades. Suspendia-se a distribuição de alimentos e medicamentos. No dia 20 de dezembro, o jornal A Gazeta saudou em primeira página o fim da epidemia. Em janeiro pessoas ainda adoeceram na capital e, no interior, algumas morreram, mas quando fevereiro chegou a espanhola parecia ter ido embora definitivamente.

"O carnaval de 1919 foi extremamente alegre, explosivo. Além do fim da gripe espanhola, o país festejava o fim da Primeira Guerra com o armistício em novembro de 1918", lembra Liane Bertucci. Em plena quaresma, tosses e espirros voltaram a ser ouvidos em São Paulo. Foram detectados casos da moléstia aqui e em outros estados brasileiros, e todo o aparato para socorrer doentes começou a ser novamente armado. Entretanto, no Hospital de Isolamento, reaberto em 22 de março, apenas 11 leitos foram ocupados, como a historiadora registra em capítulo que intitulou de "ecos da gripe". A tragédia não se repetiu.

O silêncio sobre a peste

Até desenvolver sua tese de doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, que resultou no livro Influenza, medicina enferma, a historiadora Liane Bertucci encontrou poucos livros diretamente relacionados com a epidemia de gripe espanhola no Brasil e voltados a um público maior que o da restrita área médico-científica. É um silêncio estranho, diante da maior epidemia que a humanidade já sofreu. "Logo depois da pandemia, houve grande debate entre médicos e pesquisadores sobre esse tipo "diferente" de gripe, no Brasil e no exterior. Poucos sabem, mas essas discussões levaram a várias das normas atuais de vigilância sanitária internacional, que vimos a Organização Mundial de Saúde colocar em prática para deter, por exemplo, a Sars (síndrome respiratória aguda grave) surgida na Ásia", observa a autora.

Para explicar esse silêncio, Liane Bertucci recorre à autora espanhola Beatriz Echeverri Dávila. A hipótese é a "concorrência" de significativos acontecimentos contemporâneos, como a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa de 1917. Outra explicação estaria nas características epidemiológicas da enfermidade, que chegou e se foi com rapidez extraordinária , deixando poucas seqüelas econômicas e sociais, apesar do grande número de mortes. Depois, veio ainda a tragédia da Segunda Guerra, que pode ter contribuído para esmaecer a memória de sobreviventes da epidemia.

Sobre o impacto da influenza no Brasil em 1918, dois livros escritos pouco depois da epidemia relatam experiências pessoais de médicos do Rio de Janeiro, Carlos Seidl e Moncorvo Filho, a respeito das discussões, mobilização e agruras das autoridades médicas da época. Outro livro foi publicado em 1920 pelos médicos Meyer e Teixeira, relato especialmente minucioso sobre a epidemia em São Paulo. Somente em 1986 surgiu o livro Epidemia e sociedade - A gripe espanhola no município de São Paulo, de Cláudio Bertolli Filho, debatendo o tema pouquíssimo explorado na historiografia brasileira até então, e que segundo Liane Bertucci possui o grande mérito de tentar resgatar com precisão o número de mortos na epidemia, chegando a números bem próximos dos oficiais: 5.429 óbitos no livro, contra 5.331 divulgados pelas autoridades.


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