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50 anos sem a prosa seca de Graciliano

ANTÔNIO ROBERTO FAVA

Até os nove anos de idade ainda não havia sequer sentado numa carteira de uma sala de aula. Ler e escrever pareciam um sonho distante, inatingível. Isso não impediu, no entanto, que o garoto Graciliano Ramos, mais tarde, se tornasse um dos mais importantes escritores da geração de 30 do Modernismo Brasileiro.

No mês de março fez 50 anos que o autor de Vidas Secas e São Bernardo morreu. Pouca coisa (ou quase nada) foi feito para comemorar a data. Apesar desse esquecimento, a obra de Graciliano Ramos (1892-1953) continua sendo editada e rendendo alguns trabalhos acadêmicos. Um exemplo disso é a tese de doutorado de Márcia Cabral que desenvolve estudos sobre Infância, um livro de memórias de Graciliano (leia texto nesta página). Para o professor Carlos Eduardo Berriel, do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, conhecedor da obra e da vida do escritor alagoano, apesar de Graciliano ter sido estudado pelo melhor da crítica dos últimos 50 anos, pode-se considerar que grande parte de sua obra ainda está por ser avaliada de maneira mais abrangente e detalhada.

"Como alguns aspectos existentes em seu estilo literário e as influências que outros escritores exerceram sobre Graciliano, como Dostoiévsky, Tolstói e Eça de Queiroz, por exemplo, é algo que merece ser avaliado com mais acuidade", diz. Berriel aponta vigorosas características que marcam a obra do escritor: a aridez e a dureza, o realismo e a crítica social, que permeiam quase todos os seus textos. O escritor tinha o hábito de trabalhar arduamente a linguagem do texto, sempre à procura do termo correto, da frase seca e sóbria. "Isso talvez ocorra por Graciliano ter sido um homem do sertão, apesar de pertencer a uma camada privilegiada daquela região seca de Alagoas", observa o professor. Isso não significa que, ao contrário do se possa imaginar, Graciliano não era um homem triste, melancólico ou apático. "Era, isso sim, uma pessoa bastante reservada, que sempre ficava na defensiva. Talvez por não ter tido formação regular universitária. Era um autodidata", conclui Berriel.

Obsessão - A secura e a objetividade são uma particularidade marcante no seu texto, que tem muito a ver com uma certa concepção de escrita que se pode encontrar referências muito fortes em Eça de Queiroz e Machado de Assis, por exemplo. Graciliano foi um escritor que ficou conhecido pelos cortes que fazia em seus textos. Seus originais eram sempre marcados por sinais de régua para riscar palavras, frases e períodos inteiros e, ao final, quando já havia escrito umas quatro laudas, formando-se um amontoado de rabiscos, tirava uma página a lápis, "mais ou menos definitiva". Depois, não necessariamente no mesmo dia, reescrevia toda a página a caneta. "Era um escritor tão obsessivo que não raro reescrevia até mesmos as provas tipográficas", revela Berriel.

Para se ter uma idéia do processo obsessivo de Graciliano, basta dizer que a primeira edição de O Mundo Coberto de Penas estava rodando na gráfica quando o autor resolveu fazer mais uma pequena correção: na última hora mudou o título do livro para Vidas Secas, que se tornaria uma das obras mais aclamadas da literatura brasileira. A obra foi publicada na Argentina, na Polônia, Rússia, Alemanha, Portugal e França. "Apesar de Graciliano ser conhecido no Brasil, jamais viveu de literatura, mas sim para a literatura", assinala Berriel.

Vale ressaltar que Graciliano Ramos publicou Vidas Secas, em 1938, pela Livraria José Olympio Editora. Até 1970 haviam sido vendidos mais de 200 mil exemplares, incluindo cerca de 420 mil em traduções para 11 línguas, segundo o pesquisador Laurence Hallewell na obra Livro no Brasil (Queiroz e Editora da USP, 1985).

Intrigas resultaram em prisão

O professor Carlos Eduardo Berriel: obra precisa ser avaliada de maneira mais abrangenteGraciliano Ramos foi um escritor que viveu mergulhado nos acontecimentos mais significativos da realidade brasileira da primeira metade do século 20. E os viveu intensamente, numa participação direta e abrangente. Como diretor de Instrução Pública, ainda em Alagoas e, posteriormente, como Inspetor Federal de Ensino, no Rio de Janeiro, influiu no campo da educação. Começando como revisor, destacou-se como jornalista até chegar à função de redator e cronista. Travou conhecimento com os problemas da administração pública como prefeito de Palmeira dos Índios. Essa atividade política absorveu grande parte de sua vida, e o Estado Novo marcou o início de sua maturidade, fazendo-o purgar no cárcere impiedosamente por um período de 11 meses, como resultado das pressões e contra-pressões exercidas por ideologias contrárias e dominantes naquela época.

Berriel conta que a prisão de Graciliano Ramos foi provocada por intrigas perpetradas por funcionários públicos. O escritor era funcionário da Secretaria de Educação de Alagoas e, como tal, havia adotado alguns procedimentos que desagradaram algumas pessoas. Coisas insignificantes. Por exemplo: ser rigoroso com relação à distribuição de merenda escolar e de uniformes. E mais: permitir a matrícula de crianças pobres em escolas de bairros de gente rica.

"Logo depois da Intentona de 35, houve um movimento de caça às bruxas, de gente que queria acertar as contas com seus desafetos, diziam que eram comunistas e acabavam presos. Graciliano foi preso depois de ser denunciado como comunista. Mas só ingressaria no PCB em 1945. Mas toda essa polêmica foi deflagrada por gente que queria ocupar seu cargo nos escalões do governo alagoano", conclui Berriel.

Tese visita infância do escritor

Infância e Leitura é o título da tese de doutorado, em fase de conclusão, da professora Márcia Cabral. Trata-se de um dos poucos trabalhos acadêmicos sobre o escritor Graciliano Ramos. Sob a orientação da professora Marisa Lajolo, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-Unicamp), Márcia centra seus estudos no livro Infância, romance autobiográfico de 1945. Com base em notícias autobiográficas, a obra trata, como diz no título, da infância do escritor, nascido em Quebrângulo (Alagoas), em 1892.

"A crer no narrador, analfabeto até os nove anos de idade, algo de muito interessante nesse processo deve ter ocorrido, a ponto de os críticos considerarem Graciliano Ramos autor dos mais precisos no manejo da língua portuguesa", observa a pesquisadora. O escritor confidenciou à esposa, Heloísa Ramos, ter tido no banheiro "uma ótima idéia" para um livro. Os capítulos de Infância começavam então a ser delineados.

"O livro pareceu-me matéria exemplar, pois ilumina aspectos cognitivos, enfatizando o ponto de vista histórico e cultural na construção dessas primeiras experiências. Daí tornar-se o foco privilegiado da minha investigação", diz Márcia Cabral. A partir daí, a pesquisadora passou a examinar as imagens de leitura do livro. A mãe de Graciliano, leitora de folhetos religiosos, concebia esses materiais dignos de grande respeito e devoção. Apresentava-lhe as cantigas das marujadas e, vez por outra, lia e relia um longo romance, cujos principais personagens eram Adélia e d. Rulfo. Sebastião Ramos, pai, patriarca da família, pequeno comerciante, além de compartilhar de leituras coletivas na praça de Buíque, carregava o Carlos Magno e Os Doze Pares de França para a rede, num gesto próximo de sua intimidade com o cigarro de palha e as conversas com os empregados no terreiro. "Padre Pimentel parecia ocupar lugar especial em sua formação. Traduzia-lhe as expressões enigmáticas dos textos religiosos, atualizando as informações distantes de seu foco de compreensão. Agia como um verdadeiro mediador, cuja principal qualidade era a de permitir a existência de dúvidas e provocar indagações", diz a pesquisadora. Tudo isso em um contexto, onde, curiosamente, à criança não era permitido sequer tomar parte em conversa de gente grande.

O tabelião Jerônimo Barreto, possuidor de uma biblioteca particular em Viçosa, facilitou ao pequeno Graciliano o acesso aos livros. O Guarani, de José de Alencar, segundo Márcia, parece ter sido o primeiro livro que o autor de Vidas Secas leu. A partir dessa experiência, acompanha-se o seu envolvimento com as obras de carregação, a intimidade com personagens de folhetim. Chama atenção, por outro lado, a influência de Mário de Andrade, literato e espécie de professor substituto, no que diz respeito à leitura da prosa naturalista, das obras de Coelho Neto, de Aluízio de Azevedo, dentre outros.

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