Unicamp Hoje

11

Capa
Science
Conivência
População
A Semana
Oportunidades
Portal
Índios
Cuidadores
Futebol
Drogas

Jornais anteriores PDF Instale o Acrobat Reader

Jornal da Unicamp - 20 a 26 de maio de 2002
Agora semanal

Futebol
Esporte bretão põe a pátria de chuteiras

Tese publicada em livro revela como o
futebol virou fator de integração nacional

Manuel Alves Filho

A menos de 15 dias da estréia da seleção brasileira na Copa do Mundo, diante da Turquia, a ansiedade começa a tomar conta dos torcedores. Esporte mais apreciado no País, o futebol certamente colocará milhões de pessoas diante dos televisores ao longo da competição mais importante da modalidade, mesmo que a maioria das partidas aconteça de madrugada e que a equipe dirigida pelo técnico Luiz Felipe Scolari ainda não tenha atingido o padrão de qualidade que se espera de um selecionado nacional. Mas quais foram os fatores que fizeram com que um jogo criado na distante Inglaterra se tornasse tão popular no Brasil? As respostas para esta questão podem ser encontradas na tese de doutorado defendida, em 1998, pelo historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira, no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. O trabalho, intitulado Footballmania. Uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938), virou livro (Editora Nova Fronteira) e ganhou, em 2001, o Prêmio Jabuti na categoria Ciências Humanas.

De acordo com Pereira, foram necessários apenas 36 anos para que o futebol deixasse de ser considerado um jogo estranho – onde já se viu uma partida terminar empatada?! – para se transformar numa das maiores paixões dos brasileiros. A rapidez do processo, segundo ele, deve-se à construção de uma identidade nacional em torno do esporte. No decorrer de quatro anos de pesquisa, tendo como fontes documentação da polícia, relatórios, correspondências e jornais do Arquivo Nacional e da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o historiador descobriu que clubes tradicionais como Flamengo e Fluminense não eram os únicos a promover a modalidade. "Identifiquei dezenas de pequenas agremiações, formadas em sua maioria por trabalhadores, que estavam ausentes da história normalmente contada sobre o futebol", relata.

Pereira afirma ser verdadeira a informação segundo a qual o esporte era, nos primeiros anos do século passado, uma atividade predominantemente aristocrática. "Mas a prática do futebol não se restringia apenas a esse segmento social. Equipes operárias, como o Bangu, também valorizavam o jogo. O processo acontece paralelamente e com grande contato. Os clubes menores se espelhavam nos maiores, que tinham estrutura e dinheiro. Estes, por sua vez, iam buscar nas agremiações mais humildes os jogadores que se destacavam", esclarece o historiador.

No início dos anos 30, conforme o pesquisador, o futebol já atraía um número crescente de praticantes e espectadores. Até então, porém, a seleção brasileira era formada exclusivamente por jogadores brancos. Apenas na Copa de 1934 um atleta negro, Leônidas da Silva, foi convocado. No Mundial seguinte, depois de um acordo entre as federações paulista e carioca de futebol, que já exerciam o domínio político sobre o esporte, ocorreu uma maior abertura étnica e outros afro-descendentes passaram a integrar o selecionado. "É justamente por ocasião da Copa de 1938 que o sentimento nacional se consolida em torno do futebol. Algumas imagens também se cristalizam em relação a ídolos negros, como o próprio Leônidas da Silva e também Domingos da Guia. Ou seja, o conjunto da população passa a se identificar com uma seleção mestiça".

O historiador conta que, em 1938, multidões se dirigiam até as redações dos jornais para ler os boletins trazendo os resultados dos jogos disputados na França. "A popularização se liga ao fato de o futebol ter sido apropriado por diferentes sujeitos para a construção de uma identidade nacional. Mas nem por isso ela exclui a possibilidade da articulação de outros níveis de identidade, como a questão étnica", diz Pereira. Algumas personalidades, segundo ele, contribuíram decisivamente para que o esporte ganhasse tamanho status junto ao público brasileiro. Um deles foi o jornalista Mário Filho, que mais tarde emprestaria o nome ao Maracanã, até hoje o maior estádio do mundo.

Pereira afirma que, na década de 1930, Mário Filho trouxe o conceito do marketing para o futebol. Por meio do Jornal dos Sports, de sua propriedade, o jornalista passou a promover clássicos como o Fla-Flu e a criar figuras como o urubu, símbolo do clube da Gávea. "Mas a maior contribuição dada por ele foi a criação de uma imagem nacional do futebol. Seguindo a tese defendida pelo sociólogo Gilberto Freyre, que atribuía positividade à herança racial brasileira, Mário Filho afirmava que o futebol brasileiro era especial porque mesclava a disciplina e a rigidez européia à malemolência, ginga e malandragem que via como inata dos afro-descendentes". Em outras palavras, o futebol brasileiro é melhor porque promove a integração de raças, o que dá um resultado original e positivo.

O crescimento do futebol na preferência nacional não chamou a atenção apenas da "massa". Diversos políticos também se apropriaram da modalidade. Em 1906, de acordo com o historiador, já há o relato da presença do presidente da República em jogos oficiais. Uma década depois, o Poder Público aparece como um dos "financiadores" da seleção. Isso se torna mais perceptível no Estado Novo, de Getúlio Vargas. Ministros da época permaneciam em constante contato com a delegação brasileira, cujo chefe era um homem ligado ao "pai dos pobres". Uma leitura do diário de Getúlio, divulgado recentemente, revela que o político não era um grande apreciador do futebol - ele jogava golfe -, mas demonstrava surpresa com o fato de a modalidade despertar tanta "paixão e ódio" na população.

Footballmania. Uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938)
Leonardo Affonso de Miranda Pereira
Editora Nova Fronteira
374 páginas
R$ 29,00

Um campo minado
Atividade que mexe com o lado passional do povo brasileiro, o futebol tornou-se campo fértil nos últimos anos para a proliferação da violência tanto no interior quanto nas imediações dos estádios. A rivalidade saudável deu lugar à pancadaria e aos atos de vandalismo, fatores que estão afastando o público dos jogos, notadamente os que envolvem os chamados "clubes de massa". O fenômeno, também presente em outros países, foi objeto da tese de doutorado defendida, em 1998, pela professora Heloisa Helena Baldy dos Reis, da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp. Segundo ela, o problema brasileiro tem causas macro e micro-estruturais, que vão das questões sócioculturais à própria organização do esporte, passando pela omissão das autoridades. Para a pesquisadora, que logo em seguida analisou em seu pós-doutorado as medidas antiviolência adotadas na Espanha, o Brasil tem condição de alcançar o resultado obtido pelo país europeu, que praticamente eliminou ações dessa natureza dos eventos esportivos e de lazer.

A tese de doutorado de Heloisa concentrou-se em jogos realizados no Parque Antarctica , do Palmeiras. Porém, durante os anos de 1997 e 1998 ela também observou jogos no Morumbi, estádio de propriedade do São Paulo Futebol Clube. O objetivo, segundo a professora, era levantar as raízes da violência. Durante os dois anos em que observou o comportamento dos torcedores, ela presenciou inúmeros casos de brigas, agressões e atos de vandalismo. Entre as causas diretas do problema, conforme a pesquisadora, está a falta de estrutura adequada à realização de eventos de multidão. Os estádios, de modo geral, não oferecem assentos em todos os setores. Não raro, os sanitários estão em péssimas condições de uso e são em número insuficiente para atender o público. "Isso cria um grau de irritabilidade em alguns torcedores, que danificam as instalações ou extravasam sua insatisfação contra os adversários".

Na verdade, diz Heloisa, a irritação do torcedor começa bem antes de a bola rolar. Com certa freqüência, ele não sabe, até a véspera do jogo, onde, como e em que circunstâncias a partida vai se realizar. Quando tudo fica definido, surge a dificuldade para se comprar o ingresso. Depois, vem o transtorno de chegar ao estádio. A opção, nesse caso, fica entre seguir em ônibus lotados ou ir de carro e ser achacado pelos flanelinhas. Como se não bastasse, o evento normalmente é marcado para um horário inadequado por conta do interesse da televisão. "Num país violento como o nosso, é um absurdo iniciar o jogo às 21h45!", critica a pesquisadora.

A Polícia, afirma Heloisa, dá a sua cota de contribuição para esse estado de coisas. "O uso de agressão física e moral por parte dos policiais gera ainda mais violência. Além disso, a corporação não tem preparo para atuar em eventos de multidão", atesta. De acordo com a professora da FEF, o problema conta também com a tolerância dos poderes públicos. Ao contrário do que acontece na Europa, falta legislação específica para punir os infratores. "As normas jurídicas gerais raramente são aplicadas", lamenta. Na Espanha ou na Itália, o torcedor violento paga uma multa pecuniária altíssima e ainda é proibido de freqüentar o estádio por um determinado período. Nos dias e horários dos jogos, ele é obrigado a se apresentar à delegacia mais próxima ou na do próprio estádio.

Apesar da gravidade da situação brasileira, Heloisa acredita que é possível revertê-la, a exemplo do que foi feito na Espanha, país apontado pela Comunidade Européia como o que melhor soube enfrentar o problema da violência nos estádios de futebol. De acordo com a professora da FEF, não se trata simplesmente de importar medidas, mas sim de analisar as experiências positivas e adaptá-las à nossa realidade. O modelo espanhol, ratifica, praticamente erradicou os atos agressivos dos espetáculos esportivos. A principal medida foi a constituição de comissões de trabalho, em nível nacional e nas províncias (estados), que analisaram a questão e propuseram medidas de curto e médio prazos.

Essas comissões, de acordo com Heloisa, reuniram vários segmentos ligados direta ou indiretamente ao esporte, como atletas, dirigentes, políticos, torcedores, policiais, jornalistas, pesquisadores etc. "Creio que essa iniciativa seria importante para que começássemos a enfrentar a problemática da violência de frente", afirma a professora da FEF. Entre as ações de curto prazo sugeridas pela pesquisadora estão: proibição da venda de bebidas alcoólicas dentro ou nas proximidades dos estádios, combate ao consumo de drogas pelos torcedores, venda antecipada de ingressos com a identificação dos compradores, vigilância eficaz e antecipada do estádio e realização de preliminares e outros eventos para distrair o público.

Em médio prazo, Heloisa recomenda, além da criação de comissões permanentes para discutir a questão da violência e da elaboração de uma legislação específica para punir os infratores, uso de circuito interno de televisão, revisão contínua dos dispositivos de segurança, colocação de cadeiras numeradas em todos os setores do estádio, elaboração de normas a respeito dos materiais que devem ser utilizados na construção de novos estádios, promoção de cursos preparatórios e de reciclagem para a PM, solicitação para que os clubes criem coordenadorias de segurança e concessão de prazo de um ano para que os estádios providenciem uma porta para cada mil torcedores potenciais. "Sou otimista. Estou convencida de que, com essas ações, conseguiremos resgatar o futebol como espetáculo", afirma a professora da FEF. (M. A. F.)