| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 399 - 16 a 22 de junho de 2008
Leia nesta edição
Capa
Corte, costura e memória
Xenofobia pintada de amarelo
Arte oriente
Dekasseguis
Ideogramas
Parceria bem-sucedida
Haicai
Japão ilustrado
 


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A imigrante Michie Akama, fundadora da São Paulo Saiho Jogakuin, e suas alunas na frente e no interior da escola: 5 mil mulheres passaram pelo internato ( Fotos: Antoninho Perri/ Divulgação)

Tessituras de uma identidade

MANUEL ALVES FILHO

A imigrante Michie Akama, fundadora da São Paulo Saiho Jogakuin, e suas alunas na frente e no interior da escola: 5 mil mulheres passaram pelo internato ( Fotos: Antoninho Perri/ Divulgação)Ao desembarcar no Brasil em 1930, a imigrante japonesa Michie Akama foi trabalhar, junto com o marido, numa lavoura de café no interior de São Paulo. No contato com os demais membros da comunidade, ela notou a presença de muitas moças em idade casadoira. Professora por formação, vislumbrou então a oportunidade de criar uma escola que pudesse oferecer a essas adolescentes cursos que as preparassem tanto para o cumprimento das funções de esposas e mães, quanto para a vida em sociedade, o que incluía o eventual exercício de uma atividade profissional. Três anos depois, já na Capital, Michie fundou a São Paulo Saiho Jogakuin, que em português significa Escola Feminina de Corte e Costura São Paulo. Durante quatro décadas, cerca de 5 mil mulheres passaram pelo internato. Esse contingente ajudou a escrever um capítulo importante da história da imigração japonesa no país.

A trajetória das ex-alunas da São Paulo Saiho Jogakuin foi resgatada por um estudo desenvolvido para a dissertação de mestrado da publicitária Regina Chiga Akama, apresentada no Departamento de Multimeios do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, sob a orientação do professor Etienne Samain. Por meio de uma abordagem antropológica e visual, a pesquisadora reconstruiu a memória dessas mulheres, que atualmente são senhoras com maior ou menor grau de representatividade na colônia japonesa. Regina explica que elaborou a pesquisa com base em três pontos de apoio: imagens, oralidade e escritos. As fotografias que compõem o trabalho pertencem ao acervo deixado pela escola e aos álbuns pessoais das ex-meninas casadoiras. Os instantâneos mostram situações cotidianas no internato, como as atividades executadas em torno da máquina de costura.

Já as fontes dos escritos são os arquivos da instituição, os livros produzidos por Michie e as publicações editadas pela própria escola, com as quais as alunas colaboravam. Por fim, Regina colheu o depoimento de algumas dessas mulheres, que mantêm a tradição de se encontrarem anualmente no mês de setembro, em São Paulo, para um evento de confraternização. “O interessante é que esse costume nasceu para homenagear a fundadora do internato, no mês do seu aniversário. Mesmo com a morte de Michie, em 2005, elas continuaram realizando as reuniões”, conta a pesquisadora. Em 2007, o encontro contou com a participação de oito ex-alunas da São Paulo Saiho Jogakuin. Em outros tempos, o evento chegou a congregar mais de cem delas, vindas de várias partes do país. 

Ao cruzar as informações obtidas por intermédio dessas fontes, Regina conseguiu desvendar alguns dos elementos que concorreram para a formação da identidade dessas mulheres, cujos conhecimentos adquiridos no internato foram fundamentais para a constituição de suas respectivas famílias no Brasil. Embora o corte e costura tenha sido o primeiro curso oferecido pela escola, destaca a pesquisadora, outros foram agregados com o passar dos anos. A preocupação de Michie era proporcionar às suas alunas uma formação abrangente, inclusive do ponto de vista cultural. Dessa forma, foram oferecidas posteriormente aulas de culinária, música, ikebana, etiqueta, entre outras. Todas ministradas em japonês e português.

O principal objetivo da escola era preparar as adolescentes para o casamento, mas outros aspectos também foram contemplados. “O curso de corte e costura, por exemplo, oferecia às alunas a oportunidade de exercerem uma atividade profissional. Muitas delas ajudaram no orçamento doméstico graças a essa qualificação”, informa a autora do estudo. Ademais, após deixarem a São Paulo Saiho Jogakuin, algumas ex-alunas criaram escolas similares em outras partes do Brasil, o que fez delas empresárias. “Esse dado é interessante. Nos relatos que colhi dessas mulheres, ficou patente a importância da formação proporcionada pelo internato nas suas trajetórias de vida. As que se casaram e constituíram família destacaram que esse aprendizado as auxiliou nas tarefas de esposas, mães e, eventualmente, co-provedoras da casa. Já as que se mantiveram solteiras desenvolveram carreiras bem-sucedidas. Uma delas, que atuou durante 30 anos como tradutora, me disse que o japonês que aprendeu no internato foi essencial ao seu desenvolvimento profissional”, relata Regina.

A questão profissional, reforce-se, parecia estar desde logo entre as aspirações de várias daquelas garotas. É o que se pode apreender do texto escrito por uma delas para uma publicação do internato (veja nesta página). Nele, a aluna fala sobre profissão, inclinação e ideal. A certa altura, deixa claro que o seu intuito é tornar-se professora de corte e costura. “O artigo dela reforça a idéia da profissão como uma necessidade. No caso dessas alunas, o fator inclinação era um dos facilitadores. Já o ideal misturava tanto a possibilidade de fazer dessa atividade cotidiana uma realização profissional, como a noção das dificuldades que essa conquista poderia encontrar, principalmente para uma mulher daquela época e naquele contexto”, analisa a autora da dissertação.

Por falar em obstáculos, eles não foram poucos nas trajetórias dessas mulheres. Durante determinados períodos, o preconceito contra os japoneses e seus descendentes aumentou consideravelmente no país. Por ocasião do governo Vargas, medidas nacionalistas impuseram a perseguição aos integrantes da colônia. Escolas foram fechadas, jornais foram impedidos de circular e o ensino do japonês também foi proibido em solo brasileiro. “Como a Saiho Jogakuin era considerada apenas uma escola de corte e costura, ela não foi fechada. Entretanto, a polícia chegou a inspecioná-la algumas vezes. Para burlar a fiscalização, as alunas escreviam em japonês, estudavam e depois destruíam os textos. Algumas vezes, elas foram obrigadas a esconder os escritos no meio dos bordados, quando da visita dos policiais”, relata Regina. Para um povo que superou inúmeras adversidades ao longo de 100 anos, tal aventura foi relativamente simples de ser enfrentada.

Diferentemente de outras instituições de mesmo formato que encerraram suas atividades, a fundação que hoje leva o nome da fundadora da São Paulo Saiho Jogakuin mantém em funcionamento o Centro Educacional Pioneiro, que oferece cursos formais nos níveis infantil, fundamental e médio, bem como cursos de japonês, judô, kendô, soroban (ábaco japonês), cerâmica, treinamento esportivo e natação.


Um testemunho

A publicitária Regina Chiga Akama: abordagem antropológica e visual para reconstruir a memória de centenas de  mulheres

Meu ideal

“Toda profissão é nobre, desde que seja digna. Muitas existem, mas é bem certo que só há médico porque existe doente. Portanto, uma profissão só existe em função de uma necessidade. Na escolha da profissão que seguiremos, há fatores importantíssimos, como sejam: a inclinação e o ideal. O ideal que acalento desde há muito, vejo-o agora próximo a se tornar realidade. Esse sonho é o de me tornar professora de corte e costura.

Deste diploma, não usarei apenas como uma arma profissional, mas sim para orientar centenas de jovens, para os místeres do lar. Estou certa, a recompensa será a satisfação de ensinar e ser útil ao próximo. Na conquista deste ideal, armo-me da mais firme energia para vencer todos os obstáculos que se me depararem. Vejo quão árduo é o caminho a percorrer mas é na conquista pelo esforço que repousa a verdadeira glória. Lá, no fim do caminho pedregoso, rebrilha a moeda de ouro que pagará todo o sacrifício que eu fizer para que meu sonho se transforme em realidade”. (Texto: Watanabe/Boletim Ayumi 1954)


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