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Reforma da Previdência alia
desastre social com rombo fiscal

CLAYTON LEVI

Além de dilapidar a Previdência do setor público, o projeto de reforma previdenciária enviado ao Congresso pelo governo vai provocar um rombo fiscal sem precedentes, principalmente nos estados e municípios. O alerta é do economista Geraldo Biasoto Junior, professor do Instituto de Economia da Unicamp, coordenador de política fiscal do Ministério da Fazenda e secretário de investimentos em saúde do Ministério da Saúde durante o governo FHC. Biasoto diz que do ponto de vista fiscal a proposta é indefensável. “Sua promulgação, na forma atual, gerará justamente o contrário da percepção de sustentabilidade dos sistemas de previdência pública que tanto se deseja”, diz.

Segundo o economista, isso acontecerá, primeiro, pela inevitável multiplicação de demandas ao Poder Judiciário com respeito ao repasse das contribuições já realizadas. Em segundo lugar, porque, na ausência de norma geral sobre obrigações dos fundos quanto a benefícios e contribuições, a própria Justiça perderá parâmetros para julgamento. E, em terceiro, porque a falta de delineamentos quanto ao tipo e forma de aplicação dos recursos a serem acumulados cria grandes dúvidas quanto à sua capitalização adequada. “Infelizmente, a emenda não se preocupa em definir a gestão do fundo de capitalização e o destino dos recursos”, diz.

Para Biasoto, ao permitir que leis ordinárias estaduais e municipais regulem os fundos de pensão dos estados e municípios, sem parâmetros nacionais, o governo estará abrindo uma ‘temporada de absurdos’. “A ausência de regras de transição é tão gritante que não se prevê que os tesouros federal, estaduais e municipais transferirão os recursos já poupados pelos servidores aos novos fundos complementares. Da mesma forma, não se prevê nenhum repasse de recursos relativos à contribuição patronal que seria devida. Vale dizer, os servidores são entregues à sua própria sorte”, argumenta.

Em artigo recente, Biasoto qualificou a proposta do governo de “um coquetel de maldades que faria corar qualquer ditador latino-americano”. O economista critica, principalmente, o ponto que prevê o cálculo da aposentadoria pela média dos rendimentos durante a vida laboral. “Na prática, isso significa cortar quase pela metade o valor das aposentadorias”, diz. Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Biasoto concedeu ao Jornal da Unicamp.

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Jornal da Unicamp – O senhor tem dito que a reforma da Previdência, tal como foi formulada pelo governo, é um desastre do ponto de vista social e também fiscal. Por que ela seria ineficaz do ponto de vista fiscal?
Biasoto—Para o servidor ativo vai mudar o cálculo da aposentadoria, que será feita pela média dos rendimentos. Uma pessoa que entrou no serviço público com salário de mil reais e no final da carreira está com 5 mil reais, na hora de se aposentar o cálculo será feito pela média, o que dará algo em torno de 2,6 mil reais. Um servidor, por exemplo, com 15 ou 20 anos de contribuição provavelmente optará por sair da aposentadoria pública e migrar para um fundo de pensão. Ao fazer isso, o servidor entrará na justiça para reclamar aquele valor que foi debitado no seu contra-cheque, com o qual ele contribuiu durante toda a sua carreira. Provavelmente, também reclamará um outro valor, referente à contribuição patronal. Certamente a justiça atenderá ao primeiro pedido e muito provavelmente ao segundo. Isso com certeza provocará um rombo fiscal e inviabilizará os cofres estaduais e municipais, que terão de arcar praticamente com uma outra folha salarial para pagar os valores reclamados. Será um desastre fiscal.

JU – Se os estados e municípios não tiverem de onde tirar os recursos, o prejuízo ficará com o servidor?

Biasoto – Provavelmente. Além disso, as discussões na justiça deverão prolongar-se através dos anos e a situação fiscal do município ou do estado ficará sob judice. Isso levará a um travamento das máquinas estaduais e municipais porque, a rigor, isso significa endividamento. Ao mesmo tempo, o servidor fica sem poder capitalizar. É uma equação inviável. Não tem como evitar essa situação. Se isso acontecer, talvez seja necessário expandir o programa Fome Zero para os servidores que ficarão sem a sua aposentadoria.

JU –Nesse caso, por que o governo teria enviado esse texto ao Congresso?

Biasoto—Francamente, acho que ninguém está entendendo o tamanho da enroscada em que se está metendo o país com essa proposta maluca. Jamais imaginei que alguém teria a coragem de propor uma maluquice como essa. Essa proposta além de ser muito ruim do ponto de vista fiscal também desbarata o serviço público. Há pessoas com 20 ou 25 anos de serviço público que não terão sequer tempo para construir uma poupança no sistema privado. Um trabalhador, por exemplo, na Unicamp, que tem um salário de 5 mil reais, se aposentará com 2,5 mil e não terá mais tempo de fazer uma nova poupança. O governo teve uma ótica absolutamente fiscalista nessa proposta. Não se importou com a estrutura do estado. O grande problema dessa proposta é a sua concepção. Para mim, ela não se importa com a manutenção da estrutura do estado. A proposta do governo dá a possibilidade de que se tenha um sistema complementar e não identifica a forma como esse sistema complementar irá se comunicar com o sistema antigo. No PL9 [proposta de reforma apresentada pelo governo FHC e arquivada pelo Congresso] se estabelecia que o sistema complementar se destinava àqueles que ingressassem na carreira pública depois da emenda. Os antigos permaneceriam no sistema atual. Ora, ao se mudar a regra de cálculo da aposentadoria, usando a média das contribuições, cria-se um problema de sérias conseqüências. O trabalhador fez poupança para a sua aposentadoria. Os seus contra cheques mostram que ele passou quinze ou vinte anos contribuindo com o sistema. Em minha opinião, nenhum juiz será capaz de dizer que esse dinheiro não pertence ao trabalhador.

JU – É possível calcular esse rombo?

Biasoto – Do ponto de vista atuarial, só para os governos estaduais, haveria um rombo de aproximadamente 700 bilhões. Pode não ser tudo isso, mas qualquer coisa como 10, 15 ou 20 bilhões, a ser questionado na justiça pelas pessoas significa um desastre fiscal de magnitude inacreditável. Na verdade, ninguém sabe de quanto será essa conta porque não é possível prever se o juiz concederá apenas o que o servidor tem direito pela sua própria contribuição ou se concederá uma contribuição solidária de um para um ou dois para um. Trata-se de um drama do ponto de vista fiscal.

JU – Numa palestra recente, o senhor minimizou a importância do déficit atual da Previdência do setor público. Mas o governo tem trabalhado a opinião pública com números que impressionam. Quem está com a razão?

Biasoto – É lógico que há um problema previdenciário no setor público que se expressa numa séria de situações. Mas, do ponto de vista federal, por exemplo, você tem um déficit que é mais ou menos constante nos últimos cinco anos. Muitos ensaios realizados nos últimos anos sugeriram um crescimento exponencial desse déficit. Isso não tem sido visto. Nos governos estaduais e municipais temos uma situação que se comporta muito aos saltos. As máquinas públicas não foram construídas com cinco mil pessoas entrando a cada mês. Foram construídas gradualmente, com aumentos discretos. Isso me permite dizer que os déficits mudam de patamar, mas não que tenha uma tendência exponencial como muitos estão falando. Esse problema poderia ser enfrentado de outras maneiras.

JU – Como, por exemplo?

Biasoto – A possibilidade de se estender um pouco o período de aposentadoria é algo justo socialmente e bom para o serviço público. Não acho essa proposta descabida.

JU – O senhor considera necessário haver uma regra de transição?

Biasoto – A regra de transição é uma necessidade absoluta. Afinal, as pessoas optam pelo serviço público segundo um conjunto de regras. Então, no mínimo enquanto essas regras estão vigentes, o servidor deve ter o seu direito garantido. Sem isso, teremos uma avalanche de ações judiciais e muita gente vai ganhar as ações, o que provocará um rombo fiscal imprevisível.

JU –Se a proposta for aprovada como está, qual será o impacto nas instituições públicas?

Biasoto – Em primeiro lugar, é o perigo muito grande de um pânico entre as pessoas, que já está ocorrendo porque ninguém sabe o que vai acontecer durante as votações. Colabora muito para isso o fato de os jornais estarem noticiando que há um rolo compressor no Congresso a serviço do governo para que a proposta seja aprovada a toque de caixa. Além disso, a proposta de calcular a aposentadoria pela média das contribuições é um incentivo para que as pessoas mudem de profissão. É verdade que o setor público paga menos que o privado durante a vida ativa do servidor, mas em troca oferece uma aposentadoria maior. Algumas pessoas criticam isso. Mas, francamente, acho que essa é uma boa conta para o estado. Se o estado tivesse de buscar o mesmo profissional sem prometer uma aposentadoria razoável teria de pagar muito mais a esse profissional. A conta que o servidor faz é a conta da estabilidade e garantia de aposentadoria integral. O estado precisa manter isso se pretende garantir o mínimo de qualidade no serviço.

JU — O projeto do governo também acena com a instituição de fundos de complementação através de leis ordinárias. O senhor diz que isso não vai funcionar. Por quê?

Biasoto – A constituição de 88 fez um grande desserviço ao país na hora em que deu a possibilidade de transformar os antigos celetistas em servidores estatutários. A partir daí começaram a ser criados nos estados e municípios institutos de previdência. Em Campinas, por exemplo, foi constituído em 91 o IPMC (Instituto de Previdência dos Municipiários de Campinas), com um cálculo atuarial de 55%, sendo 10% do servidor e 45% por parte da prefeitura. No final, os 55% revelaram-se inviáveis e baixou-se para 35%. Mesmo assim, três anos depois o fundo estava quebrado e teve de ser desmontado. Isso aconteceu no Brasil inteiro. E aconteceu por falta de regras adequadas e porque o volume de benefícios concedidos era maior do que o dinheiro que entrava.

JU – A proposta de reforma na Previdência, tal como está, reforça esse risco?

Biasoto – O PL9 era a forma de se dar uma institucionalidade federal e regras de funcionamento para os fundos municipais e estaduais. Regras para regular a gestão dos fundos, a maneira como os tesouros estadual e municipal participam do fundo, como se aplicam os recursos do fundo, tempo de contribuição, etc. O PL9 colocava essas regras, que deveriam ser seguidas por todos os estados e municípios. Ainda assim, havia um enorme risco de quebradeira porque a fiscalização nem sempre é eficiente. Agora, imagine o que pode acontecer com leis ordinárias municipais e estaduais montando esses fundos. Cada um vai fazer o que quiser, será uma salada. Você tanto poderá privilegiar servidores como roubar o dinheiro das pessoas em operações que dão prejuízo.

JU – Isso traria riscos do ponto de vista fiscal e social...

Biasoto – Fiscal e social. Do ponto de vista social, se o fundo quebrar, o servidor fica na rua da amargura. Do ponto de vista fiscal, se o fundo quebrar e as pessoas forem para a justiça reclamar seus direitos, os tesouros municipais e estaduais vão ter de dar conta do dinheiro. Trata-se, portanto, de um segundo momento em que se cria uma instabilidade fiscal enorme.

JU –Sua impressão pessoal é de que o projeto passa ou os parlamentares vão se conscientizar de sua inadequação?

Biasoto – Minha grande dúvida está no fato de o governo atual estar apostando todas as suas fichas nas reformas. No momento em que ele afirma que vai fazer as reformas porque são fundamentais, ele coloca a si mesmo numa camisa de força. Agora ele terá de jogar tudo nas reformas. Daí a explicação para o rolo compressor no Congresso e à censura aos petistas que têm se colocado contra as reformas. Por outro lado, estamos assistindo nos últimos dias a um movimento muito pesado de reação, tanto dentro do PT quanto na sociedade civil. A manifestação dos servidores públicos em Brasília deixou isso muito claro. Acho que a situação de recessão em que o país está aliada à reação dos servidores tornará mais difícil para o governo conseguir a aprovação do projeto.

JU – Em que pontos o senhor acha que o texto sofrerá modificações?

Biasoto – O primeiro ponto, que considero crucial, é o cálculo da aposentadoria pela média das contribuições. O segundo ponto que acho muito difícil manter é a pensão em 70%, porque o pensionista estará sofrendo muitas perdas. A primeira perda é a contribuição do inativo, a segunda perda é a redução da pensão em relação à aposentadoria. No mínimo, o Congresso terá de alterar essa questão dos 70% para as pensões.


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