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Campinas, junho de 2001 - ANO XV - N. 163.........
     
   
 


ÁLVARO KASSAB

romancista Milton Hatoum é filho de uma pátria sem fronteiras. Caso coubesse demarcação, os limites ultrapassariam o imponderável, ficariam circunscritos à linha imaginária da fantasia: seu território faria divisa com aldeias remotas, montanhas nevadas, portos, rios, florestas, igarapés...Seja na Manaus da infância e da adolescência, desfigurada pela ação predatória da Zona Franca, seja no Líbano de seus ancestrais, país castigado por sucessivos conflitos. Não por acaso, uma confluência que desemboca em pontos diferentes na causa, mas comuns na motivação militarista. No caso dos manauaras, por obra da ditadura; na terra dos avós, um “palimpsesto de culturas”, segundo ele, por conta dos impérios e dos conflitos religiosos.

Hatoum, 49 anos, foi benevolente com sua memória, esquadrinhada nos pormenores de um nomadismo atávico – nascido e criado em Manaus, morou em Brasília, cursou arquitetura (FAU/USP) em São Paulo, fez mestrado em literatura em Paris, depois de passar por Madri e Barcelona. Voltou à cidade natal, onde é professor de literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas. O substrato desta trajetória resultou em dois livros aclamados pela crítica e traduzidos em países da Europa e nos Estados Unidos: Relato de um certo Oriente (1989, Prêmio Jabuti) e Dois irmãos (2000), ambos publicados pela Companhia das Letras. O escritor esteve na Unicamp no último 27 de abril, participando do projeto Leituras Literárias, promovido pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).

Nas obras, Hatoum joga todos os dados no tabuleiro da profusão de imagens e sensações caudalosas que marcaram sua vida. Transforma-se no mercador da bela prosa poética, no mascate cuja embarcação permanece atracada no cruzamento de culturas tão díspares quanto coexistentes. De sua mala saem vozes da tradição oral milenar oriental, cânticos de tribos perdidas no paraíso perdido, sons emitidos por curumins na selva, falas de judeus marroquinos estabelecidos na província. De suas histórias brotam os conflitos da família árabe, as lendas amazônicas, irrompem os cablocos. O escritor funde carneiro e arara, tanga e túnica, cedro e jacareúba, narguilé e tabaco de corda, tucum e jasmim, cunhantãs e matriarcas, mediterrânico e amazônico. Hatoum espalha um punhado de zatar no Rio Negro.

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A pátria sem fronteiras

VIDA E FICÇÃO
Estou cercado de amigos, e os amigos sempre ajudam no caso da literatura. Eu tentei muito, durante mais de 10 anos, sobretudo na década de 70, quando morei em São Paulo e na Espanha. Tentei escrever um romance político, mas não deu certo. Não era um romance, não era ficção. Estava mais para crônica, era uma coisa que está muito em moda, que hoje chamaria de jornalismo adaptado. Precisei de muito tempo para publicar algo. Depois eu fui pensando na questão da imigração, na minha vida: saí de Manaus com 15 anos de idade, sozinho, para Brasília. Não podia voltar, você sabe que não volta. Brasília foi um horror, fiquei dois anos naquela cidade detestável, nunca mais voltei. Depois fui para São Paulo, Rio, Barcelona, Paris, Madri.

Aí me perguntei: que diabo de vida é essa?, preciso parar em algum lugar, não posso ser esse nômade. Aí me dei conta que meu pai e meu avô também fizeram isso. Meu avô foi para Marselha, Itália, Recife...Pensei de novo: estou repetindo isso. Quando morreu meu avô contador de histórias, decidi que iria contar uma história para que essas vozes contassem o que vivi. Aí percebi que tinha uma diferença, não era a crônica política dos anos 70. Aquela era forte ideologicamente, mas na minha vida o que contava mais eram a infância e adolescência. Fui armando a trama do meu primeiro livro, Relato de um certo Oriente, publicado em 1989. Antes do meu segundo livro, também dei muita cabeçada. De 1992 a 1997 eu escrevia todos os dias, das 10 da noite às 3 da madrugada. Passei 5 anos escrevendo e descobri que não era romance depois que acabei. Escrevi aquilo, 600 páginas, com tanta exigência, mostrei aos amigos, e não comoveu ninguém... Estava com um monte de problemas.

A minha vida foi degringolando, meu pai morreu, me separei, o romance não deu certo....Pensei: eu tenho que ir embora da cidade, sair daqui. Foi quando comecei a escrever Dois irmãos, quando nada deu certo, quando eu precisei exorcizar essa pinimba. Aí comecei a escrever, inspirado num romance do Machado de Assis, Esaú e Jacó, que eu tinha lido há muito tempo. A história é fantástica; tem até uma frase do Esaú e Jacó que usei textualmente, só mudei uma vírgula. Aí eu pensei: preciso escrever um pequeno salmo do Relato de um certo Oriente, que é um drama familiar circunscrito à casa em Manaus, preciso pensar um pouco no Brasil, a minha experiência em São Paulo, esse arquiteto frustrado – o arquiteto da memória começou a falar. Aí pensei na trama dos gêmeos como um conflito entre o Sul e o Sudeste – representantes de uma parte da elite – e o Norte, Manaus. E aí foi a mesma trabalheira, fiz várias versões, sete ao todo, mudei muito. Quis dar um pouco de densidade às personagens secundárias, coloquei algumas que apareciam no Relato. Pensei também muito no Euclides da Cunha: ele percebeu o que estava acontecendo com a Amazônia. É isso: a experiência conta muito e o leitor percebe. Claro que a linguagem não reflete essa segmentação da experiência, acho difícil.

O MUNDO EM TRÂNSITO
Essa voz dos imigrantes, o imaginário dos imigrantes, durante a minha infância, foi uma experiência importante. Porque eles, ao mesmo tempo em que fantasiavam, também contextualizavam muito. Então, por exemplo, quando meu avô libanês contava história, ele falava do comércio, da vida ribeirinha, dos rios, da floresta, dos povoados, dos índios, dos caboclos, enfim, de como que isso se relacionava com Manaus. Quer dizer, falava dessa vida entre Manaus e o interior, da história dele. Falava desse mundo em trânsito, entre a cidade e a floresta, com suas peculiaridades culturais e econômicas.

O REGATÃO
O pai da minha mãe era regatão (vendedor que percorre os rios de barco). Ele começou como mascateiro em Manaus, depois ele foi regatão por um tempo, depois voltou para Manaus e ficou lá. Já meu avô paterno é curioso, é outra história. Por que ele foi de Beirute para o Acre, morou em Rio Branco, onde ficou alguns anos e, depois, voltou para Beirute. Meu pai nasceu em Beirute, quando meu avô voltou. E meu pai cresceu ouvindo histórias do pai dele sobre o Amazonas, sobre o Acre. Então ele já não veio mais como imigrante em busca da fortuna. Ele veio também um pouco pela curiosidade de conhecer essa região. Meu pai era um homem que tinha uma certa instrução, ele trabalhava num ministério lá em Beirute, era um homem que tinha um pouco de posse. Então não era um imigrante clássico, muito pobre, como era meu avô materno, que era um homem das montanhas, do sul do Líbano, muito rude, que veio do mundo muito primitivo, da aldeia.

 

 
 
 
 

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