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As alegorias sacramentais de Vieira

LUIZ SUGIMOTO

Quatorze anos depois da publicação da primeira edição, Teatro do Sacramento, de Alcir Pécora, é relançado pelas mesmas Editora da Unicamp e Edusp, quando se celebram os 400 anos de nascimento do jesuíta Antonio Vieira (1608-1697), considerado o maior pregador do seu tempo. O livro, fruto da pesquisa de doutoramento do autor, continua sendo apontado pelos especialistas como o melhor estudo da obra de Vieira já produzido no país.

Pécora, professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, afirma que muito já se produziu depois que escreveu Teatro do Sacramento, o que deveria pedir atualizações. Entretanto, lembra que o livro demandou dez anos de trabalho e não quis introduzir elementos de sua vida acadêmica posterior. "Seria como se outra pessoa estivesse interferindo naquilo que consegui produzir à época. Acho o livro bom nos seus defeitos".

Na entrevista que segue, Alcir Pécora aponta distorções que empobrecem a leitura da extensa (e ainda largamente desconhecida) obra de Vieira, fala da figura controversa do jesuíta e explica o que são "as alegorias sacramentais", o tema central do livro.

O professor Alcir Pécora, autor de Teatro do Sacramento: “Vieira tem mais de 200 sermões editados por ele, uma obra imensa que está muito longe de ser verdadeiramente conhecida, analisada e discutida”(Foto: Antoninho Perri)Jornal da Unicamp – Em nota para esta segunda edição de Teatro do Sacramento, o senhor diz que a preguiça o impediu de realizar modificações no livro para torná-lo mais palatável e urbano. De fato, não é uma leitura fácil...

Alcir Pécora – Já me disseram que o livro é tão denso que ficamos andando em cima dele, sem conseguir entrar (risos). Deixei de fazer modificações não por preguiça exatamente, mas é verdade que nunca tive interesse em fazê-las. Considero o livro bem acabado do jeito que saiu; não que seja perfeito, mas é totalmente representativo do estudo que pude fazer durante os dez anos que me tomou. A forma do livro está comprometida com a minha tentativa de organizar esses dez anos em que percorri um caminho todo errático, disposto a enfrentar polêmicas e dilemas, a ponto de abandonar uma tese praticamente pronta para recomeçar por novo ângulo. Daí a dificuldade de tornar o livro mais palatável para o leitor ou mesmo de lançar mão do que produzi posteriormente para deixá-lo mais redondo. Estou mais interessado em que o livro se mantenha fiel à sua construção. O resultado da pesquisa apresenta flutuações de percepção, mas não acho ruim.

JU – O senhor afirma que a obra de Vieira é mal conhecida. Pensando nos leitores em geral, o que é essencial conhecer sobre sua produção?
Alcir Pécora – O que acho essencial, de fato, são os sermões. Fala-se muito dos sermões, mas pouquíssimos são lidos – da Sexagésima, de Santo Antonio aos Peixes, do Mandato, talvez o da Epifania, e uns poucos mais. Vieira tem mais de 200 sermões editados por ele, uma obra imensa que está muito longe de ser verdadeiramente conhecida, analisada e discutida, sobretudo no Brasil, onde os estudos coloniais na área da literatura são deixados de lado. Muito diferentemente do que acontece na América espanhola, onde esses estudos são tidos como fundamentais.

JU – O senhor também fala que a obra de Vieira é alvo de distorções. Quais são as mais comuns? E por que elas ocorrem?
Alcir Pécora – Não digo que sejam distorções exatamente, pois todo leitor costuma trazer a obra para um contexto próprio, que não é necessariamente aquele em que o autor escreveu. E o leitor tem direito a esse tipo de deformação. Entretanto, no caso de Vieira, há dois aspectos, entre vários outros, que a meu ver reduzem muito a sua obra. Um deles é a tentativa de ler um autor do século 17 sob o ponto de vista de uma literatura nacional que só seria formulada nos séculos seguintes – é a chamada leitura teleológica, que tem gerado um empobrecimento grave de suas possibilidades de significação.

Por exemplo: há quem procure perceber em Vieira elementos que apontem para um Brasil independente, quando estamos falando de um jesuíta, para quem a idéia de nacionalidade brasileira (a par da portuguesa) não fazia nenhum sentido – e acho que a repudiaria completamente se fosse pensada, coisa que não foi. Em sua época, nem havia o Brasil como entendemos hoje, sequer a mesma unidade territorial, já que eram dois estados, o Brasil e o Grão-Pará. Vieira viveu nos dois, mas sentindo-os sempre como parte do império português. Enfim, a leitura teleológica nacionalista produz um anacronismo que impede a percepção do que há de importante na obra.

JU – E qual é o segundo aspecto que empobrece a leitura da obra de Vieira?
Alcir Pécora – É a imagem de um homem contraditório. Vieira atuou fortemente em muitas áreas. Foi pregador nas missões da Companhia de Jesus, de D. João IV, da rainha Cristina da Suécia, tendo sido convidado mesmo a se tornar pregador do papa. Foi teólogo e missionário. Também deixou escritos considerados proféticos, mas que mais eram interpretações casuísticas de profecias. Em dez anos trabalhando na frente diplomática do governo de D. João IV, ainda produziu vários pareceres e papéis políticos. Envolveu-se em todo tipo de polêmica de Estado no seu período. Sustentou forte oposição à Inquisição e participou de todo o debate sobre a questão do judaísmo no século 17. Escreveu poesia, foi um grande correspondente etc.

Diante desta trajetória, é mais fácil dizer que Vieira tinha fases distintas ou atividades contraditórias entre si, quando suas atuações, a meu ver, eram absolutamente articuladas. Fala-se na contradição, por exemplo, entre ser político e também pregador ou missionário. Entretanto, pensa-se nisso com nossa visão contemporânea de que o religioso é um homem voltado para si mesmo – dentro do lugar comum da religião como questão de foro íntimo – e que o político, ao contrário, é cínico ou falso ao falar de religião. É uma visão estranha ao catolicismo tridentino, e especialmente à Companhia de Jesus. Acreditava-se então que a vida cristã demandava uma forma de política igualmente cristã. Portanto, unir as duas atividades era uma necessidade, sob risco de se incorrer na separação maquiavélica entre conduta religiosa e prática política.

JU – Ainda assim, Vieira foi mesmo uma figura controversa, ora considerado o “Apóstolo”, ora o “Judas do Brasil”.
Alcir Pécora – Ele é controverso porque suas posições nunca foram as mais aceitas ou partilhadas. Pelo contrário, tinha certo gosto em afrontar o lugar comum, o que para um político é péssimo, já que o melhor político estabelece vocabulários que permitam a negociação entre o lugar comum da gente com poder. Vieira tinha um discurso muito inventivo e produzia fórmulas consideradas excêntricas no ambiente político contemporâneo. Por isso, produziu sempre com mais facilidade oposição que aliança. Acho que até gostava disso. É particular em Vieira esse gosto pelo confronto, pela tensão política.

JU – Daí, o fato de a produção discursiva de Vieira revelar muito dos acontecimentos do seu tempo?
Alcir Pécora – Praticamente não há tema do século 17 com o qual Vieira não tenha se envolvido. Além dos sermões, dos escritos ditos proféticos e dos textos de chancelaria, sua correspondência também é enorme: perto de 800 cartas estão recuperadas na íntegra e certamente outras serão descobertas. Existem poemas latinos, alguns em duelo com Gregório de Matos. Parte da obra é escrita em latim e ainda inédita.

JU – O senhor analisa a retórica e a estética relativas aos sermões e as relaciona com o peso da mensagem teológica. Como esses elementos são articulados na obra de Vieira?
Alcir Pécora – Acho que o conceito de estética não se aplica aos sermões, e sim o de retórica. Isso por que a estética é um conceito que se formula a partir do século 18, quando se pensa na autonomia do artístico ou do literário. No caso de Vieira, há uma articulação entre o que é letrado, o que é da religião e o que é da política. Esses universos não são disciplinas estanques e separadas como nos séculos 19 ou 20. Participam necessariamente do universo intelectual. E a integração entre esses saberes é postulado e tematizado pela retórica, não pela estética.

JU – O que são as alegorias sacramentais e como elas concorrem para o que o senhor chama de “magnífico teatro discursivo”?
Alcir Pécora – As alegorias sacramentais são o tema fundamental do livro. Procuro mostrar que a integração entre as várias atuações de Vieira – como teólogo, pregador, missionário, político, diplomata, profeta – tem como eixo uma idéia da linguagem como sacramento. Esta guardaria potencialmente um poder semelhante ao da consagração eucarística, quando o sacerdote diz “este é o meu corpo, este é o meu sangue” e faz com que, do ponto de vista católico, Deus ali se manifeste nas formas do pão e do vinho.
A tese central do livro é que, no caso de Vieira, há uma crença análoga em relação à palavra. É como se o pregador, na construção do seu discurso, produzisse a presença divina e ela, por um processo de conversão verdadeiramente místico, agisse sobre as almas das pessoas, corrigindo-as individualmente – ou, em se tratando de pessoas ligadas ao governo, influindo na formulação de políticas de Estado. É isso que orienta o conjunto da sua obra. Palavra, poder e mística são concepções totalmente articuladas nos sermões de Vieira.

JU – Pode falar, grosso modo, sobre os temas abordados em Teatro do Sacramento?
Alcir Pécora – O livro acompanha as analogias construídas pelos sermões com o sacramento eucarístico, em várias dimensões. Primeiramente estuda aquelas relativas à idéia de natureza, tomando-a como efeito de Deus, de modo que tudo o que existe ainda manifesta este ato criador original. Os sermões desenham constantemente essa natureza em que não vemos apenas acidentes, mas também o ato necessário de origem, de fundação divina, que o mantém providencialmente orientado para seu fim original.

O segundo ponto estudado examina a própria concepção do mistério eucarístico ressaltada nos sermões. Neles, a idéia da comunhão está associada não só a uma ligação vertical do cristão com Deus, mas a uma ligação do conjunto dos homens entre si através de Deus. Trata-se de uma afirmação da comunidade dos homens, inclusive comunidade política, por meio da presença divina. O fundamento primeiro do Estado é o amor entre os homens. Ressalto que é preciso cuidado para entender a palavra amor nesse contexto: ela é ao mesmo tempo plena de identidade mística e de adesão política às finalidades do Estado cristão. Nada especialmente romântico.

No último capítulo trato do Vice-Cristo (ou Príncipe Encoberto), uma figura que Vieira aproveita de diversas tradições místicas e a reorienta na direção de suas convicções jesuíticas. Trata-se, portanto, de compreender a sua visão histórica, a qual necessariamente inclui a idéia de que também o futuro já era parte dela e podia ser lido, identificado, explicado. Nessa história do futuro, haveria o surgimento de um príncipe português, cuja ação inspirada conduziria a um tempo de reunificação da monarquia universal cristã. Lembremos que Vieira viveu o tempo quente das guerras de religião, bem como o das novas descobertas, com a revelação de povos no Oriente e Ocidente sem nenhum conhecimento do Deus católico. Ninguém mais ardentemente do que a Companhia de Jesus, e seus soldados, alguns extraordinários como Vieira, formulou uma política de reunificação da Igreja na Europa e de conversão de novos gentios, com incursões na China, Japão, Índia etc.

 

 

 
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