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O Brasil e a dimensão geoestratégica na arena transnacional



ÁLVARO KASSAB


Velasco e Cruz: "Não podemos pensar o Brasil como um objeto moldado pelos acontecimentos e processos externos a ele" (Foto: Antoninho Perri)No prefácio de seu último livro, Globalização, Democracia e Ordem Internacional, o professor Sebastião Velasco e Cruz revela que reservara a tarde de 11 de setembro de 2001 para começar a escrever um ensaio. O texto, Democracia e ordem internacional. Reflexões a partir de um grande país da semiperiferia, figura como o penúltimo dos nove capítulos do livro – o último aborda as reações decorrentes do atentado no World Trade Center. O prólogo do ensaio em questão, segundo as palavras de Velasco e Cruz, “expressa a perplexidade produzida por esse acontecimento dantesco e o raciocínio por meio do qual a paralisia dela decorrente pôde ser finalmente superada”.

Uma perplexidade, no caso do autor, já presente na invasão do Kuait pelo Iraque, em 1990, que culminou na ofensiva da coalizão liderada pelos EUA, cujos bombardeios, transmitidos em tempo real, pegaram o cientista político “pelas vísceras”. A guerra do Kosovo fez com que Velasco e Cruz, até então dedicado mais à economia política, incorporasse de uma vez por todas a dimensão geoestratégica no conjunto de sua obra.

Globalização, Democracia e Ordem Internacional reúne artigos que não só contemplam vários cenários – do Brasil das últimas décadas à conjuntura globalizada – como trazem à tona o vasto repertório analítico de Velasco e Cruz, intelectual que chefia o Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH). “Esses ensaios têm um denominador comum: a disposição reflexiva de suspender momentaneamente o juízo a fim de tentar entender o mundo, quando a vontade é transformá-lo”. Parte dessas reflexões pode ser conhecida na entrevista que segue.



A obra
O livro Globalização, democracia e ordem internacional é uma coletânea de trabalhos produzidos ao longo de sete anos. O primeiro desses escritos foi elaborado nos Estados Unidos, em 1996. Ele surgiu como resultado do movimento da realidade brasileira, por um lado, e da minha reflexão sobre o Brasil, de outro. Isso me levou a transitar de uma agenda de pesquisa voltada preponderantemente para a análise de processos econômicos e políticos no Brasil, para uma agenda que não abandona essa preocupação, mas que procura situar, sempre, os processos brasileiros num quadro internacional e, mais do que isso, num quadro global.

Essa mudança foi decorrente da minha pesquisa de livre-docência, que resultou no livro Estado e Economia em Tempo de crise – Política Industrial e Transição Política no Brasil nos anos 80. A passagem se fez naturalmente porque essa pesquisa tinha, como tema central, a análise do esforço que se fez, em meados dos anos 80, durante o governo Sarney, mais particularmente na chamada Nova República, de 1985 a 1987 para retomar a linha de desenvolvimento da política econômica brasileira, que por muito tempo incorporou como referência importante a dimensão do futuro, o planejamento de longo prazo. Com a explosão inflacionária dos anos 80 e a crise da dívida externa, essa dimensão ficou por um certo tempo perdida. Toda a atenção dos responsáveis pela política econômica estava voltada para resolver os problemas do dia-a-dia. Era a urgência do momento.

O “atentado”
Quando a economia começou a se recuperar, em 1984/85, veio o governo civil e com ele os economistas da oposição, com a tarefa de dar novos rumos à economia brasileira. Eles precisavam, simultaneamente, resolver os pontos de estrangulamento internos e situar o país de forma favorável no plano internacional. Desenvolveram, então, uma série de projetos sobre política industrial. Uma parte importante desse programa foi a política nacional de informática, que havia sido elaborada e aprovada pelo Congresso no final do governo Figueiredo, mas que entrou no programa do Sarney como uma das colunas mestras da política de desenvolvimento industrial. Logo no início do governo Sarney, em 1985, essa política de informática foi denunciada pelo governo norte-americano como sendo um atentado ao livre comércio. Isso tornou o Brasil passível de retaliação por parte do governo americano. Exatamente em 7 de setembro de 1985 foi aberto um processo de averiguação e, depois de negociações espinhosas algumas sanções econômicas foram efetivamente adotadas. Não eram, naturalmente, sanções iguais àquelas sofridas por Cuba e o Iraque. Elas atingiam alguns produtos que causavam prejuízos econômicos e, sobretudo, sinalizavam para a elite política e empresarial brasileira a disposição americana de partir para medidas duras caso a nossa orientação de política industrial não fosse alterada. Esse foi então um ponto que esteve presente desde o início do meu trabalho.

Só o começo
Essa postura norte-americana já sinalizava o que estaria por vir.
Na verdade, desde o início da década de 80, mais exatamente em 82, o governo norte-americano lançou sua diplomacia econômica num esforço global, pela abertura de uma nova rodada de negociações na organização que precedeu a Organização Mundial do Comércio (OMC), que era o GATT. O governo americano objetivava não apenas retomar as conversações para a redução de barreiras tarifárias, mas tinha como alvo mais importante trazer para essa arena transnacional a discussão e a regulamentação de questões que, até aquele momento, eram de estrita competência dos governos nacionais. Eram os chamados novos temas: serviços, medidas de comércio relacionadas a investimentos estrangeiros e propriedade intelectual. De 1982 a 1986 houve uma disputa acirrada entre os Estados Unidos e os países em desenvolvimento, liderados pelo Brasil e pela Índia, que não aceitavam a discussão desses temas. Havia nessa primeira fase um conflito na área agrícola entre a Europa e os EUA, o que criava condições mais favoráveis à posição assumida pelo Brasil e pela Índia. Quando os dois grandes se acertaram, não houve condições para o bloco dos países em desenvolvimento manter essa resistência. Em 1986, chegou-se a um acerto, pelo qual, guardada uma certa diferenciação formal, efetivamente esses temas foram incorporados à agenda da Rodada Uruguaia – que recebeu esse nome porque a abertura desse ciclo de negociações foi decidida em Punta del Este.

Caixa de ferramentas
Essa foi uma ocorrência que precedeu a realização do meu trabalho. Quando comecei a escrever, em 1988, a dimensão internacional não estava presente – fazia parte do tema política industrial, sobretudo na Rodada Uruguaia do GATT. O que estava sendo discutido ali era exatamente a legitimidade ou não do uso de uma série de instrumentos de política econômica que estavam na caixa de ferramentas dos nossos decisores. No final, essa rodada foi muito longa – o acordo foi assinado em 1994. Nós perdemos em toda a linha. Concessões foram obtidas na área de serviços, mas na área de propriedade intelectual, não; a agenda americana foi aprovada quase que na íntegra. Depois fomos obrigados a mudar a nossa legislação interna para ajustá-la ao que foi decidido nessa época.

No meu trabalho, eu tive que limitar a incursão no quadro internacional àquilo que era indispensável para explicar o que me interessava, ou seja, a política industrial no Brasil. Quando terminei esse estudo, que me ocupou de 1988 a 1992, comecei imediatamente a trabalhar numa perspectiva comparada, contrastando os casos brasileiro, chileno, argentino e mexicano, trazendo para o primeiro plano, na montagem do quadro interpretativo, as grandes transformações da economia e da política internacional.

Mudança de plano
Em 1995 saí do Brasil e fiquei um ano e meio nos EUA com a intenção de desenvolver um estudo que prolongaria essa primeira pesquisa. Tratava-se de um estudo sobre a política empresarial – como é que os empresários no Brasil se reordenavam para adaptar-se, e se transformavam na crise. Saíam uns, entravam outros e desenvolviam estratégias distintas, tanto no plano econômico como nos planos social e político. Eu tinha um projeto, que estava bastante desenvolvido, só que, ao chegar lá, percebi que a direção do meu interesse havia mudado. Comecei, enfim, a reunir elementos para fazer essa nova viagem, que consistia em olhar para o Brasil, mas num quadro comparativo mais amplo.

O choque
Esse primeiro passo, decisivo, me levou a uma literatura que conhecia superficialmente, e mais do que isso, me induziu a dar atenção mais sistemática a uma série de questões que já me inquietavam há muito tempo. E aí tenho de fazer referência a um outro episódio, esse não relacionado a minha atividade de pesquisa, mas às grandes transformações pelas quais o mundo passou nesse período. Em 1986, aconteceu a mudança de governo na Rússia com a ascensão de Gorbachev, e com sua Perestroika. Em 1989, houve a implosão do sistema soviético, com a queda do muro de Berlim. Um ano depois, em 1990, tivemos a guerra no Iraque, que me provocou uma impressão muitíssimo forte. Me pegou muito mais pelas vísceras do que pelo cérebro, num primeiro momento. O que me chocava antes mesmo do início das operações militares, era ver a tranqüilidade revoltante com que inúmeros comentaristas se referiam ao uso maciço do poderio militar americano para destruição do inimigo. Era de espantar a ligeireza com que tratavam a hipótese de utilização de bombas nucleares contra um estado não-nuclearizado, como era o Iraque. Que mundo é esse em que as pessoas têm juízos éticos tão distintos? Matar civis é um crime, mas usar armas nucleares contra o Iraque pode. É como se aquela população não fosse verdadeiramente humana. Aquilo me chocou. Muito antes da guerra propriamente dita, a atmosfera daquela operação me tocou de forma muito intensa. E mais ainda quando a televisão passou a retransmitir os bombardeiros ao vivo, sobretudo os artefatos anti-mísseis que conseguiam interceptar projéteis no ar.

Dimensão geoestratégica
A partir daí me ocorreu essa intuição, de que a tecnologia americana tinha sofrido uma revolução muito grande. Esses avanços na tecnologia de guerra teriam um impacto enorme nas relações de poder entre sociedades e Estados. Mas eu não podia me preocupar com isso porque estava totalmente engajado na pesquisa sobre Brasil e a política industrial. Então, quando terminei, esse assunto foi se apresentando por ele mesmo e pela seqüência de intervenções militares que marcaram a década de 90. Eu, que passei ao internacional pela porta da economia política, ao me ver no terreno dos estudos internacionais passei a descobrir em mim um interesse crescente em questões relativas à dimensão geoestratégica.

O inseto e o inseticida
No meu interesse, a guerra do Iraque foi decisiva: pelo fato em si, como questão de análise – que é isso, que tipo de guerra é essa? -, mas também pelo ângulo ético. Quando você tem uma desproporção tão grande dos meios de destruição, a partir de um determinado ponto não há mais como falar de guerra. Me ocorria essa imagem: quando eu entro num quarto com um inseticida, eu não luto com os insetos, eu os extermino. O que acontece na relação entre os Estados centrais – particularmente os Estados Unidos – e a maioria dos povos do mundo é que a concentração de poder entre eles é tamanha que os primeiros têm a capacidade de se relacionar com os segundos exatamente dessa forma.

Premissas conservadoras
Esse é o tema de um dos ensaios, sobre o desencontro do Brasil no mundo do final dos anos 70, no limiar dos anos 80. Eu retomo uma linha, que é a análise das transformações econômicas e políticas no Brasil. Há muito tempo eu já vinha olhando e estudando o que acontecia no mundo, a reestruturação do capitalismo no mundo desde meados dos anos 70 e a sua dimensão geoestratégica. Essas duas coisas convergem no final desse período. Para dizer em duas palavras, a idéia básica desse ensaio é a de que, no momento em que no Brasil a sociedade estava realizando um movimento muito generoso de crítica e rejeição a um regime autoritário, fazia também uma crítica severa ao modo de desenvolvimento no Brasil.

Concentração
Nos anos 70 a economia crescia a taxas elevadíssimas, mas de uma forma concentrada. Vou falar até ironicamente, citando um general: “a economia vai bem, mas o povo vai mal”. O crescimento não era distribuído. A questão da concentração de renda era uma das tônicas do debate nacional. Em 1984, na época pelas campanhas pelas eleições diretas, o que se expressava nos discursos da oposição e da sociedade, era esse duplo conceito: liberdade, crescimento e um desenvolvimento com inclusão social. Nada muito diferente do que se dá hoje. Ainda batemos na mesma tecla.

Rastejando
De 1945 a 1980, o Brasil foi um dos países que mais cresceu no mundo. Hoje, o Brasil é outro. E esse outro vem de 20 anos de rastejamento. Sofreu um trauma de hiper-inflação e viu muitas vezes as melhores expectativas se esboroarem como um castelo de areia. Hoje, mesmo que essa demanda de crescimento com equidade exista, ela é diferente de 1984. Naquele momento, nós estávamos lançados numa dinâmica generosa e progressista, exatamente numa época que em o capitalismo estava fazendo um movimento oposto. Num dos artigos do livro, mostro de maneira sintética que o capitalismo dos 20-30 anos gloriosos do pós-guerra resultou num conjunto de desequilíbrios macroeconômicos nos Estados Unidos e Europa, nos anos 70, e a um mal-estar generalizado nessas sociedades. As duas coisas, em conjunto, resultaram no descrédito das fórmulas que orientavam a gestão da política econômica e na ascensão, nos planos ideológico e político, dos defensores do fundamentalismo de mercado, os famosos neoliberais.


Os neoliberais
Não gosto do termo “neoliberais”, mas é lógico que eles estão aí. Trata-se de um conjunto de intelectuais e políticos que mantiveram durante décadas um projeto consistente de desagregação das estruturas de controle institucional do mercado e de domesticação do capitalismo. Na imaginação deles, tratava-se de empreender mudanças levassem o capitalismo a aproximar-se do que o havia sido no passado. Como essa operação era mais fácil de realizar na imaginação do que na prática, o que eles fizeram não foi reconstituir o capitalismo do final do século 19, mas sim instaurar um modelo de capitalismo com dominância financeira, com desorganização das classes populares, e com uma tendência muito acentuada da concentração da renda, do poder econômico e do poder político. Não é casual que a noção de globalização tenha se difundido de tal forma.

Por outro lado, é interessante observar que a consagração do termo ocorre na década de 90. Ele começa a circular no final dos anos 80, quando a União Soviética ainda existia, mas já não era mais a mesma. Já estava lançada numa política de integração com o mundo ocidental. Se pensarmos nas concepções estratégicas, os ideólogos do governo soviético passavam a articular idéias a respeito de segurança internacional de natureza globalista. Essas idéias encontram ambiente propício a sua plena aceitação num contexto particular em que o conflito estratégico que foi estruturante do ponto de vista das relações políticas e econômicas por mais de quarenta anos, estava se diluindo.

Ambigüidade
A noção de globalização é muito vaga e imprecisa. As pessoas usam o termo de maneira das mais distintas. Mesmo quando observamos a tentativa de dar um contorno mais preciso à noção, ela envolve uma ambigüidade básica, que é a de referir-se, simultaneamente, a um processo e a um estado de coisas, uma certa configuração do sistema mundo. Se nós pensarmos em termos de processo, a globalização não tem nada de nova. Em um dos ensaios do livro, menciono um sociólogo anglo-saxão que, ao datar o processo histórico de globalização, faz referência ao surgimento das primeiras religiões monoteístas que não têm como referência esse ou aquele povo, mas os filhos de Deus. Aí você já teria um elemento detonador de processos globalizantes....Se for assim, a globalização abarca praticamente toda a história, inclusive a antiga. E se eu tomo a globalização como uma forma de caracterizar o sistema econômico e político contemporâneo, eu perco de vista aspectos fundamentais desse sistema.

Em vez de falar em globalização, prefiro falar em economia global ou sociedade global. Quando faço isso e eu olho para a política, para a sociedade e para a economia contemporânea, vejo que podem até existir projetos globalizantes, mas nós não vivemos num mundo global, onde as referências aos estados nacionais sejam irrelevantes.

O preço
Os problemas do Brasil não são derivados da economia global. Não podemos pensar o Brasil como um objeto moldado pelos acontecimentos e processos externos a ele. Não é assim. A China, por exemplo, tem lá os seus problemas, mas do ponto de vista do dinamismo econômico está estão indo bem. A Coréia do Sul, apesar de ter levado um enorme tranco em 1997/98, se recuperou rapidamente. O problema brasileiro é a interação entre uma sociedade, que tem um tempo nos seus processos de transformação política, e as transformações que acontecem no âmbito da economia internacional, que criaram um ambiente pouco propício à resposta positiva aos grandes problemas e desafios que o país tem que enfrentar.

Capacidade de atuação
Uma das implicações interessantes no fato de pensar em termos não-genéricos sobre esses temas é que ele nos incita a indagar sobre o que leva a economia real a aproximar-se, mais ou menos, dessa configuração hipotética que denominamos economia global. Um dos elementos importantes no arranjo econômico internacional no qual vivemos é a consagração de regimes que limitam muito severamente a capacidade dos governos nacionais de formular e implementar políticas. Essas limitações não são físicas nem objetivas, mas institucionais. Se um determinado Estado foge ao figurino, atuando em desacordo com as disciplinas previstas nesses regimes, ele se torna passível de sanções. Como essas sanções são administradas pelos Estados, e como as relações entre eles são muito assimétricas, o seu efeito, em alguns casos, pode ser catastrófico.

Papel do Estado
O papel do Estado é decisivo. Tomemos, a título de ilustração, o caso da propriedade intelectual, que é decisivo para os interesses identificados com a política de globalização. Os Estados Unidos pressionam e ameaçam com sanções todos os países que não dão efetividade ao que está escrito no papel. Ora, se você quiser tornar efetivo o que a lei estabelece como direito de propriedade sobre algo intangível como é o conhecimento embutido em um suporte qualquer, tem que ter o Estado muito presente. Mais ainda: não apenas presente como uma organização que coage, cerceia e constrange os indivíduos quando necessário, mas também como um Estado muito presente na cabeça e nas expectativas incorporadas pelos indivíduos.

Estado no plural
A questão não é tanto se o Estado vai ou não ser importante, mas para que fins ele importa. A outra observação que eu faço repetidamente é a de que não podemos pensar esse assunto no singular – o Estado e a economia. A economia capitalista é estruturada politicamente por um sistema de Estados, que ocupam posições e desempenham papéis diferentes. Há Estados que estão em crise, Estados falidos, condenados a ficar perpetuamente em déficit com relação às aspirações de seus agentes. Por outro lado, temos Estados que concentram enorme poder e agem como se estivessem acima do bem e do mal.

Império?
Caberia falar, então, em ordem imperial? Esse é um grande debate. Entre especialistas de relações internacionais, muitos acreditam que a situação que o mundo vive desde o final da década de 80 é transitória, porque o sistema internacional contém elementos que levam, no médio prazo, a um reequilíbrio de forças. Alguns globalistas acreditam que o mundo continuará avançando num grande processo de integração, de profundidade crescente, a tal ponto que a idéia de primazia de um ou outro Estado não faça mais nenhum sentido. Outros falam do Império como uma estrutura de poder supra-nacional. Outros, ainda, falam em unipolaridade, tendo em vista o poder incontrastável de um Estado diferente dos outros, os Estados Unidos, que mantém relações de assimetria não só com os países da periferia, mas também com outros Estados do centro capitalista. Podemos perceber, então, uma primeira linha divisória: ela separa, de um lado, os que imaginam o sistema como uma configuração na qual o poder está concentrado em bases permanentes; e, de outro, os que imaginam essa situação como transitória e trabalham a hipótese da evolução do sistema para uma configuração multipolar. Penso que a segunda hipótese seja a mais realista, a mais adequada e aquela mais a fim com os valores que eu sustento e que me animam.

A diplomacia
Tenho grande dificuldade de conceber um mundo em que a pluralidade de centros de poder – com a diversidade política e cultural correspondente – não esteja presente. Me parece que esta também é a aposta da diplomacia brasileira. Ela nunca esteve ausente no Itamaraty. Mesmo nos anos 90, quando ganhou força a tendência globalista. Essa é a concepção de longo prazo que inspira a política externa do governo Lula.

Dualidade
Há uma tensão neste governo, que é antiga, entre uma política externa mais afirmativa, mais ousada e mais disposta a assumir riscos, e uma política econômica ortodoxa e conservadora. Essa dualidade se presta a interpretações bastante diferentes. Num primeiro momento, a escolha por uma política macroeconômica continuísta, que prolongou a política adotada no final do governo FHC, foi ditada por circunstâncias de duas ordens. De um lado, havia uma situação de crise que avançava celeremente e projetava para o futuro governo um cenário de crise cambial de efeitos desastrosos sobre a estabilidade. Esse não era um cenário hipotético. Era isso que a campanha do candidato governista indicava. No meu entender, essa pregação, de que Lula era um perigo, naturalmente foi levada em consideração.

O fato é que o governo Lula era particularmente vulnerável à ameaça de descontrole causado por uma crise financeira. Era um governo de esquerda e sem raízes em setores cujo apoio é indispensável para a gestão de uma política monetária convencional. O problema é que as escolhas entendidas por alguns como um movimento de adaptação às circunstâncias excepcionais do momento, se converteu, para outros, em expressão daquilo que deve ser. O que era necessidade foi convertido em virtude e passou a se apresentar como a única direção possível. Qualquer coisa fora disso, é um descalabro.

Mas existe também a outra face. Ela fica evidente quando fazemos o seguinte exercício mental: o que seria da política externa deste governo se vingasse o cenário de erosão da autoridade presidencial, se as coisas internamente saíssem do controle? Não haveria a mínima possibilidade de levar adiante a política externa de hoje. Dentro de certos limites, a manutenção de equilíbrios políticos internos é condição para o desempenho do papel que o Brasil passou a buscar no mundo. A política externa desse período produz efeitos reais, e tem garantido ao país um reconhecimento internacional inédito. Essa projeção não seria possível num quadro de desestabilização.

Democracia e globalização
Ao mesmo tempo em que a idéia da democracia se difunde e se torna quase uma obrigação incontornável, ela encontra um ambiente muito problemático para se realizar. A promoção da democracia converteu-se em política dos Estados centrais, que realizam inclusive operações de guerra a pretexto de remover regimes acusados de não respeitar princípios de organização democrática. Mas, a democracia que se impõe por esses meios não é aquela que possa existir, com todas as suas ressonâncias, nos corações e mentes das pessoas. É uma democracia muito restrita, uma forma emasculada de política democrática. Em termos operacionais, o que se exige é a observância do formalismo contido na democracia eleitoral.


A ameaça
Aquele regime que não se adaptar a esse modelo – a não ser que seja muito forte e poderoso, como a China – corre o risco de ser taxado de Estado delinqüente, passível de sanções econômicas e, em última instância, de intervenção militar. Corre o risco, vale insistir, porque nesse mundo assimétrico, a democracia se apresenta como um instrumento de estratégias de poder. Aqui e ali, quando interessa, cobram-se os títulos. Onde não interessa, faz-se vista grossa. Obviamente, as vistas grossas começam quando os desmandos acontecem nos países que promovem essa operação toda no mundo. Qualquer desvio da pureza dos procedimentos eleitorais na Ucrânia é motivo para incendiar o país e ameaçar com o ostracismo os seus governantes. Já nos Estados Unidos, uma eleição fraudada é um assunto deplorável, mas que diz respeito apenas aos americanos.

Quimera
Há uma visão muito difundida em certos círculos no sentido de que a integração econômica profunda que temos hoje transforma em quimera a democracia nos limites dos Estados nacionais. A globalização, com as ressalvas que se possa fazer ao termo, envolve esse movimento de retirar uma série de políticas da esfera nacional para colocá-las no plano da regulação internacional. As competências são transferidas; logo, o local da representação deve se deslocar. Para aqueles que pensam dessa forma, a democracia tem que ser repensada não mais como democracia desse ou daquele país, mas como democracia global. Há nessa discussão, no meu entender, um silêncio imenso a respeito do que seja esse mundo com todas as suas assimetrias que o caracterizam e com toda a distância que o separa de um mundo que poderíamos chamar de globalizado.

Cosmopolita?
O projeto cosmopolita abstrai essa realidade, e tende a se traduzir em apoio a intervenções militares que fazem tábula rasa dos princípios do direito internacional e produzem efeitos políticos desastrosos. Na discussão sobre democracia e ordem internacional, eu afirmo a idéia de que o ambiente internacional mais propício e mais adequado à realização dos melhores anseios da tradição democrática é um sistema onde o poder, no plano internacional, esteja desconcentrado.

Serviço

Obra: Globalização, democracia e ordem internacional

Autor: Sebastião Velasco e Cruz

Editora: Editora da Unicamp/Editora da Unesp

Páginas: 296

Preço: R$ 36,00

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