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Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 240 - de 8 a 23 de dezembro de 2003
Leia nessa edição
Capa
Artigo: crer ou não crer
HC: hospital terciário
Do ofício à experiência
C&T: qualidade de vida
Pesquisa: destilador molecular
Discussão: tecnociência
Cooperunicamp: estímulo
Altec: unicamp é destaque
Estudo: maturação sexual
Painel da semana
Oportunidades
Teses da semana
Idosos: retratos da velhice
Sensoriamento remoto
 


 

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Os idosos e seus baús fotográficos
Jornalista resgata experiências de vida a partir da linguagem
visual em ‘Retratos da Velhice’

RAQUEL DO CARMO SANTOS

LUIZ SUGIMOTO

A pesquisadora Fabiana Bruno: lembranças de menina que visitava a tia-avó no asilo

Aqui é... aqui foi... olha aqui... São sinais indicativos de tempo e de espaço que pessoas idosas utilizam quando nos mostram seus álbuns de fotografia. “A importância dos ‘baús fotográficos’ para a velhice representa algo incomensurável”, escreve a jornalista Fabiana Bruno, em sua pesquisa para mestrado em multimeios do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Fabiana tinha apenas 6 anos quando se deixou comover por sensações que pairavam no mundo do asilo, durante visitas à tia-avó Isa. “Guardo as lembranças daqueles rostos de pessoas velhas. São retratos que foram despertados e que se fixaram na minha memória”, afirma.

Adulta, a jornalista reaproximou-se do universo dos idosos e explorou seus baús para tentar descobrir, junto com eles, como constroem a memória na velhice. Para isso, fez uso de duas ferramentas da comunicação: a verbalidade nas entrevistas e a visualidade nas fotografias. “Experiências, até então cravadas no silêncio singular da fotografia, vão se rompendo pelo desvendamento e voz que emergem da memória do idoso, num momento de vida em que suas lembranças se cruzam com o tempo do envelhecimento”, comenta. A dissertação Retratos da Velhice. Um duplo percurso: metodológico e cognitivo, será apresentada em 16 de dezembro e teve a orientação do professor Etienne Samain.

“Em geral, os estudos que focam a memória como tema são centrados na história oral, cuja importância reconheço. Mas uma das características marcantes deste trabalho é que ele ultrapassa esse modo de investigação, reconstruindo o filme da vida dos idosos a partir da linguagem visual. As fotografias são formas que, ao se deslocarem, produzem seu próprio pensamento”, afirma Etienne Samain. “Faço uma reflexão também sobre a educação do olhar, sobre pensar naquilo que se vê”, acrescenta a mestranda.

Para constituir o que define como “rede de informantes”, Fabiana Bruno optou desta vez por idosos que encontramos em ruas e praças. “Os sujeitos da pesquisa não eram idosos asilados ou doentes, que não vivessem uma velhice escondida. A concepção da rede pedia idosos que se mantivessem atuantes enquanto representantes de uma classe social, etnia e gênero. Um requisito essencial era que dispusessem também de acervos pessoais de fotografia, os baús fotográficos”, explica.

Como ponto de partida, a autora recorreu a uma lista de 60 antigos moradores de Jaguariúna, que participaram de uma série de entrevistas no programa “Memórias”, concebido, produzido e apresentado pela própria pesquisadora na Rádio Educativa da cidade. A longa relação acabou reduzida a cinco sujeitos, que tiveram como primeira tarefa eleger do baú, sem que se estabelecessem critérios, um conjunto de 20 fotografias. Todos ultrapassaram este limite na pré-seleção e um deles chegou a separar 80 fotografias.

Cada idoso, então, compartilhou a escolha final com a pesquisadora, que ao mesmo tempo gravou os depoimentos. “Naquele contato inicial, pretendíamos apenas reunir dados primários como data da fotografia, local da tomada, autoria, tamanho, tipo de papel, quantidade de cópias etc. Mas surgiu uma complexa interação entre pessoas e universos, em longos e espontâneos diálogos que permitiram tecer a memória e os caminhos da memória, em especial os do envelhecimento”, recorda Fabiana.

A segunda tarefa foi de reduzir o número de fotografias para 10, com nova rodada de entrevistas. Ao todo, foram mais de dez horas de gravações e quase dois anos de pesquisa de campo. “O processo de escolha parece simples, mas não é desvinculado de um princípio de organização. Na realidade, o idoso desenvolve um sofisticado trabalho intelectual para a seleção das fotografias e, não por acaso, existem associações entre as imagens”, observa a jornalista.

Reconhecença – Para ajudar a entender o que representou para os idosos a tarefa de escolher somente um punhado de fotografias, dentre centenas de outros documentos que sossegavam nos baús, Fabiana Bruno traduz o termo “reconhecença”, que faz parte do vocabulário dos marinheiros: ela afirma que, segundo Antônio Houaiss, designa um “aspecto notório de terra que permite ao navegante saber em que parte do litoral está”, como um boqueirão, um declive rochoso, uma praia de areia fina. “É como se os idosos, colocados diante de outra paisagem – a do desenrolar de toda uma existência –, tivessem que navegar à procura de ‘reconhecenças’ no horizonte e na trama de suas vidas: o bordado de um vestido de casamento, o picadeiro de um circo, a construção da primeira casa, o dia da formatura, o melhor amigo”.


‘Formas visuais que pensam’

e acordo com Fabiana Bruno, ao trabalho dos idosos de demarcação e de balizamento, chamado de “reconhecença”, sucedem-se duas outras operações cognitivas: a triagem das fotografias e a sua montagem em um novo ordenamento. “Trata-se de uma intervenção dupla no interior do corpus de imagens fotográficas. Num primeiro momento, o conjunto é desmembrado e parte das fotos é descartada; em seguida, os elementos que permanecem são reestruturados, à maneira de uma montagem cinematográfica, em uma nova composição de significâncias visuais”, compara.

Celeste Pires da Costa Ferrari, de 81 anos, levou à pesquisadora seu baú fotográfico conservado em uma pequena mala. Apesar da liberdade para apresentar o conjunto na forma que quisesse (em ordem cronológica, temática ou mesmo em desordem), dona Celeste fez uma clara ordenação em quatro tempos: “as mais antigas”, “as (do tempo) do circo”, “a época difícil, “as mais recentes”. Percebia-se várias ligações entre os anos passados no circo e a constituição de uma própria família. “Dona Celeste guarda forte na memória o fato de ter sido uma mulher de circo em época de preconceitos acirrados, e ainda assim se casar com o farmacêutico Walter Ferrari e gerar filhos. ‘Não me amiguei, guardei a foto para provar que casei’, é o que ela enfatiza na entrevista”, conta a jornalista.

Dentro da proposta de uma nova metodologia de leitura das fotografias, Fabiana Bruno promoveu “arranjos visuais da memória”, dispondo as imagens em sentido horizontal, vertical, circular e híbrido, e chegando a importantes representações. “São formas visuais que pensam. Se existe um pensamento próprio às imagens, certamente é o pensamento associativo, o pensamento que se estrutura ao se deslocar”, justifica.

No traçado horizontal escolhido pelos idosos para organizar as fotografias, o olhar corre facilmente pela prancha, seguindo um percurso similar ao encadeamento das sílabas e das palavras. “Construímos um pensamento através do sistema de escrita, da esquerda para a direita, forma clássica da alfabetização visual”, ilustra Fabiana Bruno. Porém, quando as imagens são associadas de cima para baixo, o olhar se agita e se perturba. “Cria-se um embaralhamento visual e mal-estar, um sentimento de quem perdeu o fio da meada, ao procurar uma estrutura significativa que conectaria as imagens entre si”, compara.

O traçado circular foi o que mais surpreendeu a pesquisadora. “A circularidade permite uma multiplicidade de novas leituras: ora o olhar se desloca no sentido horário (ou não), ora se desfaz em recortes sucessivos, laterais, transversais, diagonais, à procura de possíveis associações. É um olhar que conduz à exploração de conexões, correspondências e aproximações entre fotografias que antes apareciam distanciadas, ou simplesmente ‘impensadas’”, comenta a jornalista. A primeira foto de dona Celeste, aos 5 anos, entrando na família circense, tem como vizinha a última imagem, aos 68 anos, no centro de toda sua família reunida. “Mais que um marcador impenitente do tempo, o círculo remete ao movimento mais amplo de um ciclo vital, com o seu começo e fim”, conclui Fabiana Bruno.

 

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Ver um filme não é olhar para uma fotografia. São atos de observação, posturas do olhar, muito diferentes. “Assiste-se” a um filme, “mergulha-se” numa fotografia. De um lado, um olhar horizontal, do outro, um olhar vertical, abissal. As imagens projetadas levam o espectador num fluxo temporal contínuo, que procura seguir e entender; as fotografias, por sua vez, o fixam num congelamento do tempo e o convidam a entrar na espessura de uma memória. Diante da tela, somos viajantes e navegadores; diante da fotografia, tornamo-nos analistas e arqueólogos.
(Etienne Samain)

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