| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 334 - 21 a 27 de agosto de 2006
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4-5

O velho discurso que
rege a história da educação

"Pode parecer óbvio aos educadores a ampliação da oferta educacional; gostaria de destacar, entretanto, que mesmo com toda essa expansão, manteve-se vigente a oferta de educação diferente para atender situações sociais diferenciadas”. A análise é do educador José Claudinei Lombardi, docente do Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Para o especialista, não há nada mais velho do que o “discurso que coloca a educação como panacéia para todos os males”.

Coordenador-executivo do HISTEDBR – Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”, cujo 20º aniversário foi comemorado com um seminário que reuniu recentemente dezenas de pesquisadores na Unicamp, Lombardi tem uma vasta experiência na área. Atuou em aldeias indígenas no Mato Grosso, Paraná e Rio Grande do Sul, além de desenvolver um trabalho com ênfase em fundamentos da educação.

É autor ou organizou, entre outros livros, Globalização, pós-modernidade e educação, Ética e Educação, O Público e o Privado na Educação brasileira e A história da Educação Brasileira. Na entrevista que segue, Lombardi faz uma análise crítica da educação no Brasil – e no mundo – ao longo da história.

Jornal da Unicamp – Como senhor analisa o discurso que coloca a educação como remédio para os impasses da sociedade brasileira?
José Claudinei Lombardi - O discurso da educação como panacéia para todos os males é muito antigo. Ele nasceu com a sociedade capitalista, como parte de um discurso ideológico produzido para atribuir à escola um papel central no cuidado com a infância, com a transmissão dos saberes considerados socialmente relevantes, com a formação do cidadão e com a qualificação do trabalhador. Apareceu já com essa característica geral, abstrata, a-histórica, como se essa escola sempre tivesse existido, cumprindo um papel central no desenvolvimento e na vida dos indivíduos. No Brasil isso não foi diferente, pois desde o Império esse repetitivo discurso de que “a educação é fundamental para ...” sempre esteve presente, sendo acionado para justificar a diferença de desenvolvimento econômico e social, em comparação com os chamados países desenvolvidos.

JU – O discurso é recorrente.
Lombardi – Ele muda na aparência, mas permanece a mesma coisa na essência, obedecendo aos preceitos liberais. A educação é colocada como fundamental para o desenvolvimento econômico e social – tanto do indivíduo, como da sociedade; se isto não ocorre, a culpa ou a responsabilidade recai sobre a escola, sobre o currículo, sobre os métodos pedagógicos, sobre os professores ou sobre os indivíduos que não souberam aproveitar as oportunidades abertas pela educação. De um ponto de vista histórico, trata-se de um discurso reincidente, presente em praticamente todas as justificativas das reformas educacionais brasileiras.

JU – Em que medida ele é reducionista?
Lombardi - Ele é sempre reducionista. Reduz todas as mazelas a um único “remédio” – a educação – o que é absolutamente equivocado. Sabemos muito bem que a educação não tem todo esse poder de determinar os rumos da sociedade. Reduz tudo a um aspecto, ideologicamente escamoteando que sem uma profunda transformação econômica, política e social, pouco avançaremos na resolução dos graves problemas gestados pelo próprio desenvolvimento da sociedade burguesa – como a miséria, as guerras, a destruição do meio ambiente, o desemprego estrutural e outros.

Como não interessa desvelar as bases estruturais que provocam os desequilíbrios sociais, a culpabilidade acaba recaindo sobre a própria sociedade, entendida como somatório dos indivíduos que a compõe. A educação aparece, assim, nos mais diferentes momentos históricos, como a principal possibilidade de promover uma reforma moral e intelectual dos homens.Qual o instrumento usado pelos jesuítas para civilizar os nativos das terras recém-descobertas? Por Pombal para implementar o desenvolvimento liberal necessário a Portugal? Qual o remédio apontado pelo imperador para os males que afligiam a recém-independente nação brasileira? Ainda hoje o discurso é que só a educação possibilita um choque de desenvolvimento ao Brasil. Sob formas e aparentes discursos diferenciados, historicamente a educação é que tem sido apontada como a solução salvadora para os males da sociedade.

JU – É circular...
Lombardi – Ele reaparece com a crise de 1929, com a qual se fortalece, voltando em 1932, com o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova; ressurge na Segunda Guerra, na ditadura militar e, mais recentemente, em todo o processo da Constituinte de 1988 e na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996.

É importante destacar, mesmo sendo repetitivo, que se trata de um discurso ideológico que acaba atribuindo ao indivíduo a responsabilidade por tudo na sociedade. O princípio da liberdade é tomado no sentido estrito de liberdade individual e, assim, se alguém é bem-sucedido na vida, isso é uma decorrência de seu empreendedorismo e expressão de seu sucesso; é um indivíduo que soube direcionar adequadamente sua liberdade. De modo análogo se explica a miséria, o desemprego, o insucesso na vida. Numa sociedade marcada pela diferença entre classes, a educação foi eleita como ferramenta equalizadora, possibilitando a todos indivíduos igual formação e, portanto, igualdade de condições para empreender e ter sucesso. Sendo a educação um instrumento fundamental para a sólida formação moral e intelectual, só não vai para frente quem não sabe aproveitar as oportunidades que a sociedade oferece a todos, indistintamente.
 
É essa, em linhas gerais, a explicação que encontro para a ideologização que coloca a educação como o principal fator para a solução dos males sociais. Esta, ainda hoje, é a tônica que integra o receituário “neoliberal”, expresso por agências multilaterais como o FMI, o Banco Mundial, a Unesco, que colocam a educação como dimensão fundamental dos problemas da vida e principal fator de transformação da sociedade.

JU – É possível, numa sociedade multifacetada como a brasileira, uniformizar as linhas pedagógicas? Se sim, de que maneira? Se não, qual seria o modelo ideal?
Lombardi – Historicamente, nunca foi adotada uma só linha pedagógica. Desde a Colônia foi implantada uma educação diferenciada para o atendimento de classes sociais também diferenciadas. No passado e no presente sempre aparecem propostas de se adotar um único e ideal modelo pedagógico, como a atual proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais que, além de versar sobre os conteúdos curriculares, também recomenda uma única linha pedagógica como adequada ao processo de ensino-aprendizagem, chamada de sócio-interacionista, ou mais usualmente conhecida como construtivista. Isso não passa de mero discurso, já que a adoção de parâmetros únicos para toda a educação nacional esconde a histórica dualidade de nossa organização escolar.

Com relação a tratar de um “modelo ideal” de educação, estou entre os que acham que a educação, ou qualquer outro aspecto da vida, não é regido pelas idéias. Ao contrário, considero que cada formação social produz historicamente a educação que lhe é adequada.

JU – Sempre foi assim?
Lombardi – Sim. Temos uma educação diferenciada desde a Colônia e a atual organização dual da educação vem desde o Império. De um lado, uma educação de alto nível, voltada para a elite, organizadora dos conteúdos universais e científicos; de outro, uma educação mínima, somente “de primeiras letras”, para toda a população. Para a escola da elite, material pedagógico de qualidade, prédio escolar adequado, tecnologia, bibliotecas diversificadas, métodos pedagógicos condizentes e professores bem formados e pagos. Para os filhos dos trabalhadores, salas repletas de alunos, falta de material pedagógico e de livros, carteiras, professores etc.

Com exceção dos apologetas da ordem burguesa, a maioria dos estudiosos da educação brasileira apontam essa dualidade e as mazelas que acompanham a nossa escola pública. Com os Parâmetros Curriculares Nacionais tenta-se disciplinar, igualar a educação pela imposição de um conteúdo “comum”, mas liberalizando outros aspectos organizacionais do sistema educacional.

JU – Tem mais a ver com a canetada da burocracia.
Lombardi – É isso aí. É a burocracia estatal buscando exercer algum nível de controle. Ocorre que é exercido um pseudo-controle, já que o conteúdo escolar é sempre mais difícil controlar. Num território de dimensão continental como do Brasil, é óbvio que o conteúdo trabalhado pelos professores vai se adequar, de alguma forma, a essa realidade multiforme do país.

Mas com relação ao conteúdo, gostaria de fazer uma provocação: o que será que é mais interessante, um conteúdo diversificado, que muda de acordo com a região ou com classe, ou possibilitarmos a todos os saberes que a sociedade acumulou, um conteúdo científico e cultural colossal e que deveria ser acessível a todos os homens? Se a gente pensar nessa dimensão, penso que a grande reivindicação a ser feita é a de uma educação que deve estar fortemente ancorada no conteúdo, nos conhecimentos filosóficos, científicos, literários e artísticos historicamente produzidos pelos homens.

JU – Qual seria o modelo ideal de conteúdo?
Lombardi – Difícil indicar modelo, quanto mais ideal... O que posso expressar é que partilho uma perspectiva que defende uma educação centrada no conteúdo historicamente produzido pela humanidade e que a ele todos tenham acesso, independente de raça, gênero, classe ou religião. Certamente, se pensarmos na educação ofertada aos filhos da alta burguesia, sem muita dificuldade iremos constatar que eles têm acesso, da maneira mais avançada possível e implementados pelo uso dos mais avançados meios de comunicação e técnicas de ensino e aprendizagem. Eles têm mestres altamente competentes – que ganham salários compatíveis com a função –, têm acesso a bibliotecas vastíssimas, à cultura... A eles tudo é franqueado.

Desde minha opção política, sempre estou a me perguntar se esses conteúdos não deveriam ser acessíveis a todos, indiscriminadamente, de modo a contribuirmos com a construção de uma sociedade justa, igualitária e fraterna. Acho que a discussão deveria estar centrada por aí. Penso que a escola deveria estar centrada no domínio dos conteúdos universais, bem como naqueles específicos para o campo profissional escolhido pelos educandos, com um processo pedagógico centrado em alunos ativos no processo de construção do conhecimento, no processo de desvelamento e apreensão desse conteúdo. É uma escola como essa que gostaria de ter para todas as crianças, mas que em nossa sociedade somente é ofertada aos filhos daqueles quem têm condição de pagar bem caro por ela.

JU – À luz de uma perspectiva histórica, como o senhor avalia a evolução da educação brasileira?
Lombardi - Historicamente, salta aos olhos do pesquisador que cada formação social produziu uma educação – em sua organização, conteúdo, aparato didático-pedagógico etc – adequada ao modo de produção da vida material, social e espiritual de seus membros. Se você pensa teoricamente dessa forma, é lógico que em sociedades tribais, como as existentes antes da chegada dos europeus às Américas, onde todos eram iguais e onde ainda não havia se desenvolvido o Estado, só podemos entender a educação se a tomarmos como diluída como um bem de todos, como processo constante de ensinar-e-aprender, pela qual todos os membros da sociedade ensinavam e concomitantemente aprendiam. Havia momentos diferenciados de ensinar e de aprender? É óbvio que sim. Só que isso não era tarefa para uma instituição específica ou para uma classe de pessoas que deveriam trabalhar com o ofício de ensinar e aprender.

JU - Quando surgiu essa tarefa?
Lombardi – Foi no momento em que a sociedade se dividiu em classes diferenciadas, decorrência das transformações na organização econômica, social e política. Essa organização passou a ser cindida entre aqueles que detém e os que não têm os meios de produção, a riqueza e o poder. Foi nesse momento que, para além dos saberes comuns a todos os homens, foi preciso criar uma organização social, a escola, que tivesse por incumbência ensinar saberes diferentes a homens diferentes; que apareceu como uma instituição diferenciada que se destinava a pessoas diferenciadas dessa sociedade.

Tomemos como exemplo uma sociedade escravista – como a grega. Nessa sociedade cindida em classes opostas – proprietários e não-proprietários, senhores e escravos – era necessária uma escola para educar os filhos dos escravos? É óbvio que não, pois da mesma forma que as classes se estruturaram para separação de uns e outros pela genealogia que dava sustentação à propriedade, também operou-se uma divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, produzindo uma separação entre o saber e o fazer. Ao escravo cabia executar as tarefas manuais. E, portanto, o processo de transmissão dos saberes que lhe eram necessários se dava, por via direta, no exercício do próprio trabalho.

A escola que foi produzida nessa sociedade, portanto, foi para educar os filhos da aristocracia. Aparece com essa característica, mas que foi ideologicamente explicitada como formação humana, como processo integral de formação do cidadão grego – sentido expresso pelo termo paidéia. Como o escravo sequer era considerado cidadão, a formação integral era exclusivamente direcionada aos membros das polis, para a formação integral do corpo e do espírito, preparando os filhos da elite para o exercício da cidadania, pelo domínio dos saberes necessários na arte da guerra, na política, nas artes, nas ciências, na moral, enfim no exercício da cidadania.

Esta educação, que se deu sob diferentes formas de organização escolar, na medida em que passou a se dar num espaço específico, a escola, também passou a ser atribuição de um grupo social diferenciado – primeiro dos pedagogos, responsáveis pelo acompanhamento e ensino elementar; por mestres que ensinavam a leitura e escrita; por instrutores que cuidavam das práticas esportivas e musicais; etc. É preciso destacar, ainda, que os filhos das famílias abastadas freqüentavam aulas livres ministradas por sábios ou “amantes do saber” - filo + sophos.

“Penso que as chamadas novas tecnologias de comunicação estão abrindo portas para uma revolução sem precedentes na socialização dos saberes”

JU – O senhor acha então que o legado desse modelo predomina ainda hoje?
Lombardi – Do ponto de vista teórico, sem dúvida. Se considerarmos que cada formação social e cada período histórico, da mesma forma que precisam produzir os bens necessários à sobrevivência de seus membros, também produzem as formas de organização social que são adequadas e as idéias que expressam o conjunto das relações estabelecidas pelos homens, chegaremos à conclusão que também a educação expressará essas relações e os interesses de classes diferenciadas. Neste sentido, a escola que cada sociedade vai ter, nos mais diferentes períodos históricos, é aquela adequada aos interesses de quem exerce o poder econômico e, por decorrência, político, social, ideológico...

Para encurtar conversa, já que teríamos que nos alongar muito seguindo o fio condutor da história, é preciso registrar que a escola que conhecemos é muito nova. Ela só começou a ser forjada no longo e contraditório processo de formação do capitalismo – e que também era a desagregação do feudalismo. A escola que surgiu desse processo foi a expressão de um movimento complexo e contraditório, das corporações de ofício às manufaturas; da Reforma à Contra-Reforma; do Renascimento à era das revoluções. Foi nesse longo período que começaram a se criar escolas diferenciadas para classes diferenciadas, organizadas em séries, com conteúdos disciplinarmente definidos, com regras claras e detalhadamente estabelecidas, com métodos de ensinar e aprender e, ainda, com meios e instrumentos facilitadores do ensino e aprendizagem, como o livro didático, por exemplo.

Foi no interior desse processo que o Brasil foi descoberto. E foi nesse contexto que se forjou a nossa educação. Para organizá-la foram trazidos para cá, como parte indiferenciada da empresa colonial, os jesuítas e que, como se sabe, foram um dos principais suportes do movimento da Contra-Reforma. Com os jesuítas organizou-se, então, uma educação destinada para as elites portuguesas e centralizada nos colégios jesuítas, e um trabalho missionário, mais catequético, mas que também era educativo e formativo nas normas, padrões e valores europeus, e que objetivava, como já disse, a europeização e cristianização da população nativa. Entretanto, não mais se fazia que adequá-la à empresa colonial portuguesa no Brasil e aos padrões mercantilistas que então imperavam.
Mas não há como fazer uma análise histórica exaustiva, somente exemplificar as linhas teóricas mais gerais que possibilitam o entendimento histórico de nossa educação.

JU – E o que constata a sua concepção teórica?
Lombardi – É, portanto, ideológica a explicação que a revolução burguesa propiciou uma educação pública e gratuita, voltada à formação de todos os homens. Não foi isso o que ocorreu, pois da burguesia veio uma organização escolar dual, destinada a classes diferenciadas e que, preferencialmente, deveria ser paga, como qualquer outro serviço ou mercadoria.

Somente com os avanços das lutas do proletariado, no interior das quais essa classe passou a combater e a se contrapor à violenta espoliação a que era submetida, é que surgiram reivindicações por melhores condições de trabalho e de vida, etc, e também de educação como um direito do cidadão.

JU – Quando exatamente foi deflagrado esse processo?
Lombardi – Não há um momento exato, mas trata-se de um processo que se deu no contexto das transformações que acompanharam a chamada Revolução Industrial. Na Revolução Francesa, entendida como expressão política desse processo, a classe trabalhadora aparece reivindicando uma escola pública, obrigatória, gratuita e que, independentemente da condição econômica, fosse indistintamente ofertada a todos. Ao contrário da escola dual, reivindicava-se uma escola unitária, superadora das diferenças sociais. Na Revolução essa reivindicação tomou corpo e foi apresentada sob a forma de projeto. Mais precisamente, como um dos projetos constituintes apresentados na reordenação política burguesa.

JU – Em que medida essas reivindicações foram atendidas?
Lombardi – Foram atendidas na medida em que coincidiam com os interesses da burguesia, ou na medida em que avançou a luta e a organização do proletariado. Ao longo do século XIX, juntamente com todos os acelerados processos de transformação econômicas, sociais e políticas, também foram sendo organizados sistemas escolares nacionais. A estrutura escolar continuou definida em três níveis diferentes de ensino – básico, médio e superior – com uma organização seriada e uma grade curricular composta pelas chamadas disciplinas científicas e literárias.

Estava assegurado, assim, o sistema educacional com a forma de organização e de conteúdo que conhecemos. Foi essa a grande revolução na educação que tivemos.

JU – Quais foram as maiores mudanças registradas de lá para cá?
Lombardi – Penso que a mais relevante é a educação ter se tornado crescentemente acessível a toda a população. Pode parecer óbvio aos educadores a ampliação da oferta educacional; gostaria de destacar, entretanto, que mesmo com toda essa expansão, manteve-se vigente a oferta de educação diferente para atender situações sociais diferenciadas. A escola que se volta à formação da elite, friso novamente, não é a mesma que se volta à formação do trabalhador. Os sistemas nacionais de educação não foram criados para eliminar essa divisão, mas no interior deles convivem dois, ou mais tipos de escola, cada qual destinado ao atendimento de classes diferentes. A divisão entre escola pública e privada é somente uma expressão dessa diferença que, rigorosamente, nada mais faz que reproduzir a desigualdade entre as classes sociais.

JU – Pode servir de instrumento de dominação.
Lombardi – É exatamente essa idéia que estou tentando expressar. A educação não é um modelo abstrato que paira sobre a sociedade, mas uma dimensão concreta da vida social e que se modela em conformidade com as condições de existência dessa mesma sociedade. Uma sociedade profundamente dividida em classes, só pode ter uma educação profundamente cindida e voltada a atender de forma diferente a essas diferentes classes. Numa sociedade regida pela dominação, a escola só pode cumprir o papel de reprodutora ideológica da dominação.

JU – Como o senhor analisa as ingerências mercadológicas nesse âmbito?
Lombardi – No âmbito da teorização burguesa, o atendimento escolar sempre apareceu como um serviço que, preferencialmente, deveria ser pago. Não há pois nada a estranhar que quanto mais cresce, na sociedade burguesa, o processo de mercantilização de todas as coisas – que hoje se dá em escala mundial – também a educação crescentemente acompanhe esse processo. A mercantilização favoreceu um recuo nas conquistas sociais e, com isso, foi sendo deixado de lado a concepção que a coloca como um direito; gradativamente, seu lugar foi ocupado por uma mercadorização dos serviços sociais. De direito do cidadão, as políticas sociais passaram a ser tomadas como serviços ao cidadão. O entendimento é que cada qual deve pagar o justo valor pelo tipo e qualidade de educação que quer receber. Ora, uma educação de alto nível deve ser paga com valor compatível com essa qualidade... O inverso é igualmente verdadeiro.

Quando pensamos no processo recente de transformação da educação, constatamos que esse processo está perdendo aquela vestimenta fantasiosa que o colocava como um setor primordial à formação de todos os indivíduos na sociedade. A escola passa a ser concebida como qualquer outra mercadoria. É como estar no supermercado – lá encontramos produtos para quaisquer bolsos. E certamente a mercadoria procurada não é o conhecimento, mas a expressão material da escolarização: o diploma.

Não podemos esquecer que, entre outros assuntos, essa é uma das questões analisadas pela Organização Mundial do Comércio: o desbloqueio da educação como reserva de mercado, devendo ser considerada como um serviço que deve ficar livre de restrições por parte dos Estados nacionais. Busca-se regulamentar o que já está ocorrendo na prática: a disponibilização do serviço educacional independentemente de fronteiras, estas devem estar abertas e liberadas para que aqui, ali ou acolá possamos ter instituições americanas, japonesas, européias, independentes de entraves de qualquer natureza. O discurso é muito claro: a educação é uma mercadoria e as portas do comércio educacional deverão estar sempre abertas para aqueles que se dispuserem a investir nessa área. É o discurso do livre-mercado, também educacional.

JU – A tecnologia introduziu novas ferramentas no campo pedagógico, entre as quais a educação a distância e as múltiplas oportunidades oferecidas pela internet. Que tipo de benefícios essas novidades podem oferecer? Elas têm força suficiente para mudar paradigmas?
Lombardi – Vamos desmontar a conversa. A educação se utiliza dos instrumentos que são adequados e disponíveis na sociedade, em conformidade com condições historicamente dadas. Uma comunidade na qual o principal meio de transmissão de saberes é a linguagem oral, a educação só poderá estar estruturada na oralidade. Numa sociedade que tem, além da oralidade, o registro escrito, a educação, além de pautar-se pela oralidade, vai utilizar-se desse instrumento de manutenção e de registro de saberes importantes para aquela sociedade. Uma sociedade em que a escrita, para além dos pergaminhos e dos manuscritos, desenvolveu a imprensa como forma de registro desses conhecimentos – e a imprensa possibilitou a invenção do livro – terá na leitura – dos livros – a sua dimensão fundamental, o seu instrumento básico de trabalho.

Vejo que uma sociedade que desenvolveu, para além dos livros, novos instrumentos para o registro e socialização dos saberes historicamente acumulados, de uma forma ou de outra ela irá se utilizar desses instrumentos.

Penso que as chamadas “novas” tecnologias de comunicação, resultantes dos avanços da informática e da eletrônica, além de poderosos instrumentos que possibilitam acelerar a criação e o processamento dos saberes, também estão abrindo as portas para uma revolução sem precedentes na socialização desses mesmos saberes.

JU – Como fica o presencial nesse cenário?
Lombardi – A escolarização ainda é centrada no presencial, mas gradativamente nós estamos vendo penetrar muito forte e aceleradamente a educação a distância. Acho que, daqui para frente, teremos um uso cada vez mais intensivo da informática e dos meios de comunicação a distância no processo educacional. Com isso, não estou dizendo que as antigas formas serão ser eliminadas, pois o uso da informática necessariamente não quer dizer que deixaremos o livro de lado. É difícil traçar cenários para isso, mas certamente a educação está sofrendo um revolucionar sem precedentes.

JU – Como o senhor analisa o papel desempenhado pela universidade hoje?
Lombardi – Você vai se surpreender com a minha resposta... Eu acho que a universidade que temos cumpre o seu papel. Cumpre e cumpre muito bem, levando-se em conta que a sociedade gera as instituições que lhe são adequadas. Entre essas instituições, se coloca a escola e, no nosso âmbito, a universidade. Portanto, a universidade que temos é perfeitamente adequada a essa sociedade. É outra questão saber se a universidade cumpre o propalado papel que ela tem de desenvolvedora de ciência, tecnologia e de recursos humanos. Também nesse caso, a minha resposta vai te surpreender. Por quê? Porque não passa de ideologização a atribuição desse papel à universidade.

JU – E a exclusão digital?
Lombardi – Com o desenvolvimento tecnológico surgem novas questões. Até ontem nós discutíamos o analfabetismo como uma tragédia social num país subdesenvolvido como o Brasil. Hoje, a nossa pauta de discussão já mudou. Sequer resolvemos o problema do analfabetismo, mas já estamos discutindo a exclusão digital. Numa sociedade em que sequer o acesso ao necessário à sobrevivência está resolvido, certamente a exclusão digital é uma das muitas exclusões a que a maioria da população está submetida. Há alguns anos, a pauta de discussão era quanto as condições para que a maioria da população tivesse acesso à aquisição de um livro - uma mercadoria relativamente barata, mas que é muito cara se a carência maior é o feijão. A discussão migrou dos livros e manuais escolares, para equipamentos que custam uma verdadeira fortuna. É uma questão de prioridade e, ontem como hoje, a exclusão social a bens e serviços mantém ainda suas raízes na questão de classes sociais economicamente diferenciadas.

JU – Qual seria então esse papel?
Lombardi – O centro de controle da sociedade burguesa está na empresa capitalista, que concebe a ciência e a tecnologia como fatores fundamentais ao desenvolvimento das forças produtivas. Ora, sendo o conhecimento, a ciência, a principal força impulsionadora do desenvolvimento, ele só pode ser considerado e tratado como capital. Portanto, o grande centro gerador de conhecimentos, de tecnologia, só pode estar em instituições diretamente controladas pelas grandes empresas.Tal qual tem ocorrido com o próprio capital, com suas fontes vitais de matérias primas e energia, com a vendagem das mercadorias, se realmente o desenvolvimento científico e tecnológico é fundamental ao desenvolvimento ampliado do capital, então esse desenvolvimento terá que ser gestado e controlado diretamente pelo próprio capital, e isso de maneira crescentemente monopolizada. Portanto, pressupor que compete à universidade o papel de gerar e produzir novos e fundamentais conhecimentos, é atribuir a ela um papel que rigorosamente o capital não abrirá mão para que ela o tenha.

Historicamente, em determinadas situações nacionais a universidade foi chamada a cooperar com esse processo de desenvolvimento, produzindo ciência e tecnologia. Foi o que se deu no século XIX com a universidade alemã e, mais recentemente, com a universidade norte-americana. Mas como a universidade brasileira surgiu muito tardiamente, o papel dessa instituição já tinha se transformado; não mais se exigia dela o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, já sob o controle do capital monopólico. As universidades aparecem, historicamente, com um papel meramente coadjuvante.

A universidade também tem sido responsabilizada pela qualificação profissional. Penso que sequer esse é um papel que cabe à universidade: qualificar força de trabalho necessária ao desenvolvimento. Permita-me uma provocação: qual a qualificação pretendida por uma sociedade que se pauta na simplificação da produção, crescentemente baseada em máquinas cada vez mais automatizadas? Embora o processo técnico e o controle da produção estejam cada vez mais complexos, processos sobre os quais o capital detém controle monopólico, contando com uma tecnoburocracia eficaz, o processo em curso é de simplificação da produção, simplificação do trabalho. O que está na mesa de discussão não é a qualificação, mas a desqualificação do trabalhador.

A exigência é por profissionais com níveis crescentes de escolaridade, para o exercício de atividades cada vez mais simples e rotineiras. Nesse sentido, não passa de ideologização a exigência para que a instituição escolar prepare para o trabalho, ou que a educação seja responsabilizada pelo desenvolvimento de nação. Flexibilização não passa de ideologização de simplificação.

JU – Voltamos à primeira questão...
Lombardi – Pois é... É o discurso circular. São atribuídos papéis que acabam por responsabilizar posteriormente as instituições educacionais, que passam a ser vistas como supérfluas por não cumprirem a função alardeada. Com isso não estou a afirmar que a universidade não tem função. É evidente que a instituição universitária cumpre funções sociais, que lhe são atribuídas sempre de modo confuso e contraditório. Enquanto idealmente concebe-se que o ensino superior deva estar estruturado sobre os três clássicos pilares – a pesquisa, o ensino e a extensão – a prática constitutiva e disciplinadora do próprio ensino superior tem ido em outra direção. Vamos tomar um exemplo para demonstrar a confusão e contradição do papel da universidade? Tomemos o ensino como exemplo e não é preciso muito esforço para concluir que há instituições universitárias comprometidas com um ensino voltado à efetiva formação superior de pesquisadores e profissionais nos mais diferentes campos do saber; entretanto, no pólo oposto, legalmente amparadas, há outras instituições que não passam de supermercados de diplomas superiores.

No que diz respeito à pesquisa, espera-se da universidade a produção de ciência e tecnologia. Mas poucas são as instituições universitárias que foram equipadas e aparelhadas para a pesquisa. Como nossos laboratórios universitários podem ser comparados aos grandes laboratórios e centros de pesquisa privados, especialmente aparelhados para a produção de novos conhecimentos apropriáveis pelo capital? Como o capital só se dedica a produzir ciência e tecnologia que reverta em lucro imediato, será possível a existência de que instituição que desenvolva ciência e tecnologia sem produzir lucratividade?

Não quero, porém, passar uma visão pessimista. Enquanto tudo tende a nos levar a analisar as questões de uma maneira simplista e mecânica – como se as coisas pudessem ser explicadas por uma simplificada cadeia de causalidade–, penso que ainda é necessário continuar a desenvolver pesquisas mais sólidas e complexas e que nos ajudem a entender melhor o contraditório processo de produção de nossas organizações escolares. Insisto que não avançaremos muito patinando com pesquisas meramente descritivas do particular, do microscópico, do efêmero, do discurso... Defendo uma produção coletiva que consiga contextualizar os objetos de investigação, que busque avançar na direção de sínteses explicativas que contribuam para aprofundar nosso entendimento teórico do mundo que vivemos. Do ponto de vista analítico, também estou convencido que pouco avançaremos sem a pressuposição que a nossa sociedade nada tem de harmônica, mas é profundamente contraditória.

Para além de aparências, na pesquisa histórico-educacional tenho aprendido que as instituições escolares sempre estão a cumprir papéis e que quando mais buscamos modelos e saídas fantasiosas para a educação, mais essa transformação está ocorrendo imperceptível sob nossos olhos, galopando na contradição, essa engenhoca fácil de falar, mas muito difícil de operar.

 

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