| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 333 - 14 a 20 de agosto de 2006
Leia nesta edição
Capa
Artigo: Burocracia e Biodiversidade
Cartas
Geociências e nova era
Origem do mel
Aroma e prevenção de doenças
Muitos mundos
Língua portuguesa
Agualusa e o mundo
Teatro infantil
Painel da semana
Teses
Livro
Destaques do portal
Jabuti
Ajuda de cão-guia
Desfibrilador em estabelecimentos
Prêmio Bunge
 

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O festejado escritor africano concede entrevista sem meias palavras sobre os caminhos da língua portuguesa

Agualusa, cidadão de três continentes, reflete sobre
coisas de todo o mundo

Foto: Antoninho PerriO angolano José Eduardo Agualusa, 46 anos a serem completados em dezembro próximo, é um dos escritores africanos mais festejados da atualidade. Há quem fale numa tríade formada por ele, Mia Couto (Moçambique) e J. M. Coetzee (África do Sul). Suas raízes angolana, portuguesa e brasileira estão presentes em seus livros. Ademais, Agualusa é um conhecedor profundo das culturas de seus ancestrais – já residiu no Brasil e em Portugal. Trata-se de um caso típico em que o atávico mistura-se à realidade, analisada por ele sem meias palavras. É o que fica demonstrado na entrevista abaixo. Com presença confirmada no Colóquio Caminhos da Língua Portuguesa: África-Brasil (leia nas páginas 6 e 7), Agualusa respondeu, por e-mail, às questões formuladas pelo Jornal da Unicamp enquanto cumpria o trajeto Rio-Salvador-Lisboa-Londres.

JUO colóquio da Unicamp vai discutir, entre outras coisas, as semelhanças entre o português falado no Brasil e o de alguns países da África. Você acha que existe esta imbricação. Se sim, onde ela está mais presente?

José Eduardo Agualusa – Existem muitas semelhanças, sim, desde logo no vocabulário, pois quer o português do Brasil quer o português de Angola incorporaram um grande número de palavras provenientes de línguas africanas, em especial do quimbundo.

JUNesse sentido, um dos objetivos do evento é fomentar o intercâmbio entre pesquisadores de culturas diferentes, embora aparentadas. Na sua opinião existe essa troca de informações na literatura?

Agualusa - Troca, na realidade nunca existiu, embora até aos anos 70 a maioria dos escritores angolanos conhecessem muito bem a literatura brasileira. Luandino [José Luandino Vieira] inspirou-se em Guimarães Rosa. O cronista Ernesto Lara em Nelson Rodrigues etc. Agora nem isso. Creio, contudo, que a situação começa a mudar, sobretudo devido ao sucesso de alguns escritores africanos no Brasil.

JUA professora Charlotte Galvez menciona a literatura como fonte e antena das mudanças lingüísticas em curso na África e no Brasil. O senhor, que usa em seus livros gírias e falas do angolano e do brasileiro das ruas, acha que ela pode cumprir esse papel?

Agualusa – Como antena, sim, sem dúvida. Como fonte, infelizmente não. A literatura não tem hoje muito poder em Angola. E no Brasil também não. A esmagadora maioria dos angolanos não lê ficção. No entanto, é preciso realçar que o movimento independentista urbano foi precedido e preparado por um movimento literário. Não por acaso muitos dos dirigentes angolanos, logo a seguir à independência, eram poetas e ficcionistas.

JUO senhor disse recentemente que o Brasil é a súmula dos mundos europeu e africano. Entretanto, sempre houve por aqui, ao longo da história, o predomínio da visão eurocêntrica, e, mais recentemente, da americanizada. A que você atribui essa distorção e a negação das raízes africanas?

Agualusa – Ao fato dos brasileiros de origem africana permanecerem afastados do poder político, ao fato de não existir ainda uma forte burguesia negra, à associação imediata entre pobre e negro – só alterando isto se começará a processar uma verdadeira mudança de mentalidades.

JU A matriz africana está fortemente presente na literatura brasileira, seja na origem dos escritores, entre os quais Machado de Assis e Lima Barreto, como também nas histórias de Jorge Amado, para ficar num exemplo. Entretanto, essa matriz é mencionada apenas nas biografias do tipo perfil edificante, ignorada solenemente no atacado, e não raro reduzida à caricatura e ao estereótipo. Por que o branqueamento? É diferente em Angola?

Agualusa – Completamente diferente. O caso brasileiro, aliás, é único no mundo. O Brasil tem uma literatura fundada por negros e mestiços, no século XIX, tem um escritor como Jorge Amado, que alcançou enorme dimensão internacional trazendo para as páginas dos seus livros a cultura africana da Bahia, e, no entanto, hoje, não existe um único ficcionista importante de origem africana; ainda mais extraordinário, os personagens negros desapareceram misteriosamente. A actual ficção brasileira é hoje, talvez, mais “branca” do que a portuguesa. Em Portugal surgiram nos últimos anos alguns importantes escritores, como Pedro Rosa Mendes e Francisco José Viegas, que se interessam por África e por personagens de origem africana.

JUPor outro lado, os maiores nomes da música popular brasileira contemporânea desempenham um papel importante na difusão de idéias (cabe registrar que nem sempre foi assim – os sambistas, por exemplo, foram violentamente reprimidos nas primeiras décadas do século 20). Esses artistas conseguiram em suas obras revelar nossas matrizes africanas. São freqüentes, também, as parcerias entre músicos e poetas. Na sua opinião eles estariam ocupando um vácuo deixado pela literatura? Como a coisa funciona em Angola?

Agualusa – Em Angola, como no Brasil, a música popular é popular – a literatura não é popular. Não existe uma literatura popular brasileira, ou uma literatura popular angolana. Então, naturalmente, em Angola há muito poucos músicos de origem européia, ao contrário do que acontece na literatura.

JU É opinião corrente que hoje o enfoque multidisciplinar é fundamental para a compreensão das culturas. O senhor já lançou mão de pesquisas e componentes históricos, e quase sempre boa parte dos grandes romances fornece pistas, mesmo que subjetivas, do período retratado. Em que medida a história pode contribuir e/ou contaminar na confecção de um romance?

Agualusa – Eu acho que ainda tenho muito passado à minha frente. Angola é um país de pouca memória. Tudo se esquece rapidamente. Temos poucas bibliotecas, poucos museus. Por isso mesmo me parece tão importante trabalhar a História de um ponto de vista literário.

JUAinda sobre sua obra. Você disse recentemente que seus personagens saltam de uma obra para outra e que seus livros são, na verdade, um só. Fez de Borges um narrador, afirmou que a inspiração é uma forma benévola de possessão e prega que o escritor pode – ou deve – dar voz aos deserdados. O que você faz para conciliar o fantástico, a crítica social e a boa história?

Agualusa – Acho que nenhuma dessas coisas exclui a outra – porque haveria? Entre nós, em Angola, e também em todos os lugares onde o Brasil é mais africano, como nos terreiros de candomblé da Bahia, o fantástico coexiste pacificamente com o real. Num país como Angola, com frágeis mecanismos democráticos, escassa imprensa, etc., é importante que o escritor saiba dar voz aos que não têm meios de se fazerem ouvir. São esses, aliás, que quase sempre têm as melhores estórias de vida. Exatamente como no Brasil.

JU Você comparou a Internet ao Aleph borgiano. Em que medida você acha que a rede pode ser uma ferramenta da literatura e alimentar redes de discussão que busquem um mundo mais igualitário? No caso de Angola, sua difusão e uso se dão em que escala?

Agualusa – A Internet, sim, é o Aleph. Um bom exemplo de como a fantasia alcançou a realidade e a está a transformar. A Internet é democrática. Coloca toda a informação do mundo ao alcance tanto dos ricos quanto dos pobres. Uma criança de uma aldeia indígena da floresta profunda na Amazônia pode, eventualmente, conversar e travar amizade com os filhos de Bill Gates... Não sei se Bill Gates tem filhos, mas enfim, com os supostos filhos de Bill Gates. No caso de Angola a Internet está em expansão rápida. Evidentemente, são ainda, sobretudo, os ricos e poderosos que se servem dela, mas há cada vez mais escolas, ou ciber-cafés, que disponibilizam computadores e uma ligação rápida. Acredito muito na Internet. Acredito inclusive na sua capacidade para derrubar ditaduras.

JUQue análise você faz da literatura sub-saariana hoje?

Agualusa – Creio que a literatura africana poderá ganhar os palcos do mundo amanhã, desde que haja um investimento sério na educação – veja, isso já começa a acontecer com o sucesso dos escritores ingleses de origem africana. África mantém viva a arte de contar estórias. Além disso preserva uma grande diversidade de povos e de culturas. Finalmente, os povos africanos são, de uma forma geral, muito abertos ao mundo e à novidade e, tal como os brasileiros, capazes de devorar tudo, de transformar e integrar todas as outras culturas. Isso é maravilhoso. É o futuro.

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OBRAS

* A Conjura (1989)

* D. Nicolau Água-Rosada e Outras Estórias Verdadeiras (1990)

* Coração dos Bosques (1991)

* A Feira dos Assombrados (1992)

* Lisboa Africana (1993)

* Estação das Chuvas (1997)*

* Nação Crioula (1997)*

* Um Estranho em Goa (2001)*

* O Ano em que Zumbi Tomou o Rio (2002)*

* Vendedor de Passados (2004)*

* Manual Prático de Levitação (2005)*

* Livros publicados no Brasil

(Gryphus Editora)

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