Leia nessa edição
Capa
Artigo: dinheiro e palavras
Projetos de pesquisa de
   saneamento
Metas: Agência de Inovação
Da ciência ao conhecimento
Biodiesel
Feagri
Painel da semana
Oportunidades
Teses da semana
Unicamp na mídia
Fórum: Globalização
Teatro sobre capoeira
Ciências da terra
 

6

Para o pesquisador Gilberto Câmara, o grande dilema que
as ciências humanas brasileiras têm hoje é como sair da
armadilha idealista e adotar uma perspectiva realista do mundo

“É preciso medir e capturar o máximo de dimensões possíveis”


continuação da página anterior

Foto: Arquivo Edgard LeuenrothQuantos muros de Berlim caíram?

Se olharmos para as ciências humanas brasileiras, constatamos que elas são plasmadas a partir da missão francesa que data da fundação da USP. Elas nascem justamente a partir desse burburinho da década de 1930, quando começam a haver os grandes avanços da área. Ao longo do tempo, o predomínio da tradição qualitativa francesa e da tradição marxista, que é fundamentalmente idealista – fundada no idealismo alemão, na idéia dos universais, de que existe um valor absoluto – resultou em formas mais ou menos extremadas de relativismo. Caberia perguntar quantos muros de Berlim caíram... Não caiu um só. Caiu o muro político, mas outros permanecem erguidos, entre os quais o muro ideológico, teórico, a crença idealista num futuro glorioso. Em resumo: ainda não caiu a ficha plenamente de muita gente. Eles continuam usando instrumentos teóricos que hoje em dia não só estão superados pela prática, mas também não nos permitem entender adequadamente o mundo de hoje. O grande dilema que as ciências humanas brasileiras têm hoje é como sair da armadilha idealista e adotar uma perspectiva realista do mundo, sem perder de vista os compromissos morais com uma sociedade mais justa.

O problema não é apenas teórico. A intelectualidade brasileira tem influência na forma como o Estado atua. Por exemplo: como abordar o problema da criminalidade? Podemos partir do princípio de que quem está doente é a sociedade, como dizia Darcy Ribeiro, e concentrar a política em temas universais como educação, crescimento econômico e assistência social. Se admitimos que é necessário entender a criminalidade tentando relacionar suas ocorrências e causas, é necessário ir além dos universais. Precisamos compreender a gênese do crime e de seus respectivos padrões de recorrência. Porque em alguns bairros a criminalidade é muito maior que outras regiões com padrão semelhante de renda? É necessário compreender a realidade com dados, muitos dados. É preciso medir e capturar o máximo de dimensões possíveis, entender as interações sociais que ocorrem. Em resumo: não ficar apenas nos universais, em uma visão idealista que tudo explica.

Como fazer ciência multidisciplinar?

Como visão geral, sabemos da validade de atuar em projetos científicos multidisciplinares. Na prática, para fazer ciência multidisciplinar, precisamos de um estatuto teórico adequado.

Para funcionar, um projeto científico multidisciplinar tem de permitir a colaboração efetiva de competências muito distintas. Para estudar a exclusão social, precisamos de antropólogos, estatísticos, demógrafos, urbanistas, sociólogos, assistentes sociais, e especialistas em educação e saúde. Como construir uma ontologia comum sem um espaço de debate neutro? Como conciliar tantas visões de mundo sem abdicar de perspectivas relativistas e idealistas? Num projeto multidisciplinar de sucesso, a visão realista e a tecnologia de informação são imprescindíveis.

Participo do comitê multidisciplinar da Capes, e fico surpreso com a visão idealizada que muitos têm sobre a pesquisa multidisciplinar. Alguns acham que este tipo de pesquisa irá criar um novo estatuto teórico, distinto das ciências naturais. Muito pelo contrário: os projetos multidisciplinares de sucesso são justamente aqueles no qual o fosso epistemológico entre ciências naturais e ciências humanas foi transposto. Esta transposição tem dois lados: a adoção de uma perspectiva realista e uma abordagem quantitativa pelas ciências humanas, e a aquisição de uma sofisticação muito maior nos conceitos das ciências naturais.

A Unicamp multidisciplinar

Se olharmos para a própria gênese de várias áreas do conhecimento da Unicamp – até por ser uma universidade nova e de uma certa forma sem compromissos culturais com o passado como é o caso da USP –, observamos que se trata de uma instituição que tende a ter uma postura muito mais modernizante e aberta. A Unicamp é tradicionalmente um espaço mais multidisciplinar do que a USP, onde a cultura dos departamentos institucionais é bem mais forte. É claro que o desenho que estou dando é esquemático, mas a gente nota que ao longo do tempo a renovação desse pensamento predomina na Unicamp. O professor Daniel Hogan [pró-reitor de Pós-Graduação] tem tido um papel importante tanto na Unicamp como em comissões nacionais e internacionais.

A demografia

Vejo como muito promissor o futuro da demografia no Brasil. Sua importância tende a crescer cada vez mais, mesmo porque temos vários indicadores que apontam para isso. O primeiro deles, sem dúvida, é essa mudança drástica e dramática do perfil da população, uma coisa sem precedentes no mundo inteiro. Os números mostram uma mudança radical, nos últimos 20 anos: as alterações se verificam não só na natalidade, mas também na mortalidade infantil, longevidade etc. Num país-continente como o Brasil, esta mudança drástica não pode estar acontecendo ao mesmo tempo, do mesmo jeito, em todos os lugares. Eu me recuso a crer que o que acontece em Pinheiros e em Barão Geraldo, acontece do mesmo jeito no sertão de Quixeramobim. Não é razoável imaginar que isto esteja acontecendo. De tal forma que, mais do que nunca, os demógrafos estão sendo chamados a entender qual o perfil da população. Numa cidade como São Paulo, por exemplo, os perfis urbanos são cada vez mais distintos, o que demanda políticas públicas distintas. As diferenças são imensas de um bairro para outro. É preciso saber quais áreas da cidade estão envelhecendo, quais têm uma população mais jovem, e assim por diante. É evidente, portanto, que na medida que os demógrafos começam a refinar os dados, eles desempenhem um papel fundamental. Tudo o que você vai fazer em política pública é mexer com gente.

A técnica e o ceticismo

Temos que ser céticos em relação à técnica em si, até por dever do ofício. Não acho que o geoprocessamento, por exemplo, resolva o problema de ninguém. Ele só será eficiente quando alguém com a perspectiva das ciências humanas estiver usando esta ferramenta. Só o profissional de tecnologia de informação não tem a menor condição de responder às questões contemporâneas fundamentais. No limite, há um consenso de que é preciso universalizar os serviços públicos e até a cidadania – como saúde, educação, segurança pública. Essa idéia não existia há 40, 50 anos. É claro que o pessoal que lida com informação tem um papel importante, mas eu diria que este não é um papel fundamental. Eles não podem protagonizar a formulação da política. O geoprocessamento só funciona na medida em que ele serve a uma concepção teórica de política pública multidisciplinar. O INPE só trabalha com exclusão social porque tem um diálogo com equipes qualificadas de outros campos do conhecimento.

As tecnologias informacionais são subsidiárias, são meios a serviço de uma concepção das ciências humanas. Do contrário, esse novo paradigma científico não se realiza. No fundo, a pessoa de ciências humanas tem que entender a ciência da informação. Não entender o que é programação, códigos, softwares, mas sim o que acontece quando a informação chega ao computador – o que ela pode tirar daí. Esse entendimento não tem substituto. O profissional de informática jamais poderá substituir esse insight.

Amazônia

Está atualmente em curso um grande experimento científico sobre a Amazônia, chamado LBA. É um experimento multidisciplinar que envolve cientistas de alto nível de várias instituições nacionais e estrangeiras. Já temos alguns resultados importantes, a começar da reafirmação do óbvio: a floresta é mais frágil do que o senso comum indica. As condições sobre as quais existe a floresta amazônica são frágeis, no sentido de a capacidade de ela resistir a uma perturbação é menor do que imaginamos. Os cientistas não têm uma medida exata, por exemplo, da medida do impacto que o desmatamento exercerá sobre o que restou da floresta em razão das alterações climáticas. Não sabemos ainda qual o ponto de inflexão em que isso ocorre. A gente tem apenas idéia, sabe que a partir desse ponto de inflexão os efeitos são cumulativos, não só sobre a área desmatada como também sobre a área intacta.

Na Amazônia de hoje, estamos verificando um conflito nítido de interesses sobre o controle do território. A comunidade de cientistas e ambientalistas tem preocupações pertinentes sobre o impacto climático, biodiversidade, ecossistema; outra parte da sociedade, por sua vez, está procurando se apropriar daquele espaço da forma mais rápida possível. O Mato Grosso, por exemplo, foi um dos estados onde a renda per capita mais cresceu nas últimas décadas. No norte deste Estado, cidades surgiram do nada e hoje têm qualidade de vida razoável e com boa infra-estrutura. Não são mais fronteiras de faroeste. Por quê? Por conta de uma economia baseada na exportação – seja na soja ou na pecuária. Uma economia que está gerando dinheiro para as pessoas, de forma desigual e injusta, como de resto é o próprio desenvolvimento brasileiro.

O outro lado da geração de dinheiro é que as taxas de desmatamentos continuam altas. No início da década de 90, á área desmatada era da ordem de 13 mil km2/ano. Tivemos um pico em 1994, na época do lançamento do Plano Real, de 29 mil km2; depois caiu um pouco, para subir novamente nos dois últimos anos, ficando em torno de 23 mil km2/ano, o que corresponde à área de uma Brasília e meia mais ou menos. Para permitir um melhor acompanhamento do desmatamento, o INPE a partir de deste ano passou a fazer um monitoramento mais detalhado, quinzenal.

Grilagem na Amazônia

Existe hoje um esforço real de vários órgãos do governo federal, mas o problema do desmatamento é muito grave. Como as dimensões espaciais são enormes, o desmatamento ocorre ao mesmo tempo no Norte do Mato Grosso, no Sul do Pará, na Terra do Meio, no Sul do Amazonas. A complexidade de lidar com esse território é enorme; patrulhar um espaço dessa magnitude é complicado. Um outro problema é que o sistema legal nacional não está aparelhado. Se existisse uma forma de coibir a grilagem de terras, ou seja, o registro ilegal de terras públicas pelos madeireiros, uma parte substancial do desmatamento ilegal não aconteceria. Sabemos que o desmatamento ocorre numa freqüência muito menor nas áreas indígenas e florestas nacionais. A razão é que essas áreas estão demarcadas, os cartórios não podem registrá-las. Assim, devemos considerar a demarcação das terras indígenas e dos parques nacionais como uma conquista da sociedade para preservar um pedaço da Amazônia, mas o resto é alvo de um grande processo de apropriação fundiária pessimamente controlado. Se todo o território brasileiro estivesse mapeado no computador, para usar uma metáfora de hoje, não haveria o maior motivador do desmatamento desenfreado, que é a especulação. Precisamos assim ter instrumentos legais muito mais fortes em relação à nossa capacidade de gestão do território.

A lição de casa

Para transpor o fosso epistemológico é preciso construir uma ponte com duas mãos. Os pesquisadores das ciências naturais e exatas também precisam fazer um substancial dever de casa para poder atuar na área multidisciplinar. O diálogo requer dois lados e, nesse ponto, os clássicos das ciências humanas são uma leitura que não são uma questão exclusiva dos cientistas de humanidades. Um cidadão informado não pode desconhecê-los. Por sorte, apesar de estudar numa escola com grande viés técnico (ITA), tive a sorte de conviver com colegas de mente aberta, muitos dos quais estão hoje na Unicamp, como os professores Brito Cruz [reitor], Carlos Pacheco [IE] e Renato Pedrosa [Imecc]. Formávamos uma espécie de grupo de estudos, e buscávamos ver além da engenharia. De minha parte, tenho um enorme dever de casa ainda incompleto. Além de ler os clássicos como Marx, Gramsci, Popper, Adorno, Benjamim, Braudel, Habermas, Bobbio, é preciso manter-se minimamente atualizado com as “novidades” e ter uma bagagem básica em Rawls, Searle, Amartya Sen, Harvey, Gibbons, e Castells. Isto sem falar na neurociência e na genética: Dawkins, Pinker, e Damasio. O espaço multidisciplinar é muito bonito na conversa, mas sem um mínimo de bagagem intelectual e de lustro – que só vem com muito contato e experiência –, não se conseguiria entender o outro. Resumo da história: existe um novo paradigma multidisciplinar. Só que ele não pode rejeitar – pelo contrário, ele reafirma – as técnicas da ciência estabelecida. Continuam valendo as coisas básicas: o mundo é maior que a gente, e fazemos conjecturas sobre o mundo. E essas conjecturas de alguma maneira a gente tem que poder refutar, testar e avaliar. Os físicos vêm fazendo isso desde sempre. A novidade é que os profissionais das ciências humanas têm agora a possibilidade de, num contexto limitado, também lançar mão disso. Tenho ainda a felicidade de continuar interagindo com núcleos de competência como o Nepo/Unicamp, o Cebrap, o NEPSAS/PUC-SP, a Fiocruz. E o mais interessante é que continuamos cheios de dúvidas. Mas, a longo prazo, espero, – pois sou otimista –a racionalidade acabará prevalecendo, do contrário o Brasil teria explodido há muito tempo.

Intersecções de disciplinas, a aposta

A interdisciplinaridade será debatida na terceira edição do Seminário “Diversidade na Ciência – uma reflexão sobre o conhecimento e seuO professor Daniel Hogan, pró-reitor de Pós-Graduação: “Conferencistas têm vasta experiência na consolidação de campos multidisciplinares” (Foto: Antoninho Perri) modo de produção”, que a Unicamp promove no próximo dia 11 (quarta-feira). Organizado pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação, o evento, que integra a série “Seminários Unicamp”, terá a participação dos professores e pesquisadores Cláudio Augusto Sampaio (Unifesp), Dimas Floriani (UFPR), Enrique Leff Zimmerman (PNUMA, México) e Gilberto Câmara (Inpe).

Segundo o pró-reitor de Pós-Graduação, professor Daniel Hogan, o evento, diferentemente das duas edições anteriores, nas quais predominaram as discussões acerca das fronteiras da ciência, vai mostrar as peculiaridades da inter/multidisciplinaridade. “Os quatro conferencistas têm vasta experiência na criação e na consolidação de campos multidisciplinares”. De acordo com Hogan, a mensagem principal da série de seminários organizados pela PRPG é justamente a de insistir que o futuro da ciência não pode ficar vinculado apenas ao desdobramento das disciplinas tradicionais. “É preciso apostar cada vez mais nas intersecções das disciplinas”.

Nesse contexto, o pró-reitor lembra que o seminário acontece justamente na véspera da aula inaugural da primeira turma do doutorado em Ambiente e Sociedade, do Nepam (Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais), cuja abertura, às 10 horas do dia 12 (quinta-feira), no auditório do Nepam, será feita com palestra do reitor Carlos Henrique de Brito Cruz. “O curso do Nepam corporifica exatamente essa idéia de interdisciplinaridade. O que vai marcar o crescimento da pós-graduação no futuro é o investimento nas intersecções. Estamos querendo criar um clima crítico e favorável para que isso aconteça”, afirmou Hogan.

Seminário Diversidade na
Ciência III - uma reflexão sobre o conhecimento e seu modo de produção



Local: Auditório da Faculdade de Ciências Médicas
Rua Tessália Vieira de Camargo, No. 126

Dia 11/08/2004
8:30 h: Abertura
9:00 h: Dimas Floriani (UFPR, Curitiba, PR)
Produção de Conhecimento: Possibilidades e Obstáculos para um Diálogo de Saberes
10:30 h: Enrique Leff Zimmerman (PNUMA, México, DF)
Diversidade na Ciência e Diálogo de Saberes
14:00 h: Gilberto Câmara (INPE, São José dos Campos, SP)
O Conhecimento como Construção: A Epistemologia da Representação
Computacional de Conceitos Multidisciplinares

15:30 h: Claudio Augusto Sampaio (UNIFESP, São Paulo, SP)
Multidisciplinaridade, uma das Estratégias de Formação de Quadros Qualificados

Mais Informações: fone (19) 3788-4729 (Kelly); e-mail
homepage: http://www.prpg.unicamp.br/

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP