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Artigo: Educação nutricional
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Educação: mundo menos
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Retirada do útero
Componentes nutricionais de
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"Elixir" para atletas
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Pet reciclado em adesivos
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Da teoria à prática
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Atletas com necessidades
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30 anos do AEL
Os Brasis dos cineastas
 

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Artigo

Educação nutricional:
por que e para quê?

MARIA CRISTINA FABER BOOG

Nos últimos tempos, expressões como qualidade de vida e alimentação saudável vêm atraindo a atenção de pessoas de diferentes idades, classes sociais e graus de instrução. De igual modo, desperta interesse a possibilidade de se desenvolver estilos de vida saudáveis, para o que ocupa posto privilegiado a alimentação e a educação nutricional. Mas afinal, o que é Educação Nutricional?

A educação é inerente à vida. O ser humano aprende e se desenvolve ao longo de sua existência no esforço por responder aos desafios cotidianos. A educação acontece nesse cotidiano social e também por intermédio de ações de instrução e ensino planejadas por pessoas capacitadas para tal. Assim, como não se faz educação musical, artística ou moral em cursinhos de cinco dias, não há nenhuma fórmula mágica para conseguir que as pessoas passem a comer melhor de um dia para outro. Isto não justifica, porém, desconsiderar essa importante ação em prol da promoção da saúde.

A educação nutricional, enquanto especialidade de interesse acadêmico, remonta à década de 1940, quando, no período pós-guerra, aventava-se a possibilidade de, perante a súbita escassez de recursos, melhorar a qualidade da alimentação de populações pauperizadas, por intermédio de modificações na alimentação que permitiriam obter a melhor relação custo/benefício mediante o emprego de alimentos mais baratos e nutritivos. Nesta época, a antropóloga Margareth Mead foi secretária executiva do “Comitê sobre Hábitos Alimentares” do Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos, que reunia nutrólogos, antropólogos, psicólogos e educadores com o objetivo de agregar conhecimentos, buscando estratégias mais eficazes para melhorar a alimentação.

No Brasil, foi criada, no início da década de 40, a função da “Visitadora de Alimentação”, uma profissional de saúde que deveria ir à casa das pessoas para fazer educação alimentar no local onde a alimentação era preparada, ou seja, na cozinha. A iniciativa foi considerada invasiva pela população, que reprovava a intromissão de profissionais de saúde no âmbito doméstico. Nas décadas de 50 e 60, vemos a Educação Nutricional ligada sobretudo às campanhas que visavam a introdução da soja na alimentação. Por ser a soja produto exportável, privilegiava-se o interesse econômico, em detrimento da preferência nacional pelo feijão. Neste período a educação voltava-se também para a utilização dos produtos obtidos através do convênio MEC-USAID, por meio do qual eram doados a países pobres do terceiro mundo os excedentes agrícolas dos Estados Unidos com o objetivo primeiro de garantir estabilidade dos preços no mercado internacional e fomentar o desenvolvimento de mercados externos, compostos por potenciais compradores que se habituariam a certos produtos recebidos inicialmente por intermédio destas doações. Evidentemente não faltaram críticas a tais iniciativas, o que levou ao descrédito a Educação Nutricional, por razões de ordem ética e política.

Nas décadas de 60 e 70, no âmbito internacional, a Educação Nutricional distanciou-se de suas raízes sociais e antropológicas. A sociologia cedeu lugar à medicina como mentora dos programas de Educação Nutricional e o critério de êxito, inspirado nas concepções behavioristas de educação passou a ser exclusivamente a mudança de comportamento observável. No Brasil, nas décadas de 70 e 80, ela passou a ser vista como prática domesticadora, repressora e até aviltante, reprovada por todos os que prezassem a liberdade de expressão. Comer o que se quer, na hora que se quer e como se quer era uma forma de exercer o direito à liberdade e ensinar o que é melhor para a saúde era entendido como cerceamento desse direito. Autores que analisaram a questão, referiram-se ao fato dizendo que a Educação Nutricional fora para o “exílio”.

No início da década de 90, fatos novos fizeram ressurgir o interesse pelo assunto: a divulgação dos resultados da Pesquisa Nacional Sobre Saúde e Nutrição realizada pelo Ministério da Saúde, que apontavam para o expressivo aumento na prevalência de obesidade, principalmente entre mulheres de baixa renda; a comparação dos resultados da Pesquisa de Orçamento Familiar, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com estudos de décadas anteriores, evidenciou incremento importante no consumo de alimentos, especialmente daqueles mais calóricos e menos nutritivos. No mesmo período, observou-se decréscimo no consumo de frutas, cereais e leguminosas. O tradicional arroz e feijão perdia seu prestígio enquanto biscoitos doces, refrigerantes e embutidos ocupavam terreno nas gôndolas dos supermercados. Por outro lado, a constatação científica do fato de que a alimentação de má qualidade é um fator de risco para várias doenças, fez com que a Educação Nutricional fosse lembrada como medida a ser considerada para reverter a tendência ao crescente consumo de gorduras, açúcar e produtos industrializados que não trariam benefícios à saúde. Então, ensinar a comer é necessário?

Quem se vê às voltas com níveis elevados de colesterol, quem está com a pressão alta e tem excesso de peso, quem experimenta uma crise de gota, busca uma orientação sobre como mudar a alimentação. Escolas começam a contratar nutricionistas para oferecer merendas de melhor qualidade e serviços de alimentação de empresas a preocupar-se em atender às expectativas dos usuários no sentido de oferecer alternativas alimentares mais saudáveis. Há uma notória demanda por orientação profissional na área de alimentação. Serviços de saúde que contam com nutricionistas são muito procurados atualmente porque há uma percepção de que é preciso re-educar-se para tornar a alimentação mais saudável e isso não é mais visto como imposição, mas como uma chance de ganhar mais vida com qualidade, pondo em prática alguns conhecimentos gerados pela ciência da nutrição, devidamente trabalhados por quem sabe que o fenômeno da alimentação não é apenas biológico. Não comemos nutrientes, mas alimentos e o significado deles na esfera afetiva, psicológica e nas relações sociais não podem jamais ser desconsiderados pela Educação Nutricional. Educar no campo da nutrição implica em criar novos sentidos e significados para o ato de comer. Foi-se o tempo em que se puxava da gaveta dietas prontas de 1200kcal que proibiam o consumo de tudo que não fosse arroz, bife grelhado e salada. Educar, no âmbito da alimentação, implica em conhecer profundamente o que é alimentação. O filósofo Edgar Morin, discorrendo acerca do respeito à condição humana, no seu livro “A cabeça bem feita”, lembra que:

“O que há de mais biológico – o sexo, o nascimento, a morte – é também o que há de mais impregnado de cultura. Nossas atividades biológicas mais elementares – comer, beber, defecar – estão estreitamente ligadas a normas, proibições, símbolos, mitos, ritos, ou seja, ao que há de mais especificamente cultural; nossas atividades mais culturais – falar, cantar, dançar, amar, meditar – põe em movimento nossos corpos, nossos órgãos; portanto, o cérebro”.

Educar em nutrição é tarefa complexa que pode ser pensada pelo paradigma da complexidade. Além da busca por um certo conhecimento necessário à tomada de decisões que afetam saúde, cabe analisar as atitudes e condutas relativas ao universo da alimentação. Atitudes são formadas por conhecimentos, crenças, valores e predisposições pessoais e sua modificação demanda reflexão, tempo e orientação competente.

E, por fim, mas com o devido destaque, cabe mencionar que a sinalização da segurança alimentar como meta de governo trouxe a esta temática novos desafios. À Educação Nutricional compete desenvolver estratégias sistematizadas para impulsionar a cultura e a valorização da alimentação, concebidas no reconhecimento da necessidade de respeitar, mas também modificar crenças, valores, atitudes, representações, práticas e relações sociais que se estabelecem em torno da alimentação. Visa-se o acesso econômico e social a uma alimentação quantitativa e qualitativamente adequada, que atenda aos objetivos de saúde, prazer, convívio social. Iniciativas relativas ao incremento da qualidade da alimentação e à Educação Nutricional podem estar contempladas dentro de projetos de promoção à saúde tais como criação de ambientes favoráveis à saúde, ações comunitárias e reorientação dos serviços de saúde que ponham em relevo ações destinadas a fomentar saúde. Também é fundamental que os cidadãos problematizem a questão da pobreza, da fome e da desnutrição. Doar alimentos quando se vai a shows e outros eventos é muito pouco. Discutir essa questão, especialmente com os jovens de classes mais favorecidas, representa o desafio de romper a disjunção existente entre aqueles que passam fome daqueles que jamais experimentaram a sensação de não saber se amanhã haverá o que por na mesa. Diferente de desastres naturais, a fome atinge exclusivamente um segmento social que permanece à margem da sociedade, justamente porque está excluído. Estudar e discutir a fome é discutir o problema “dos outros”, e o desafio que se apresenta é de superar essa disjunção nós/outros, desenvolvendo uma educação para a solidariedade que permita perceber esses “outros” como fazendo parte da sociedade à qual pertencemos.

A alimentação de cada cidadão, de cada ser humano, não pode ser descolada da sociedade que a determina e por isso o ensino da nutrição não pode ser visto apenas do ponto de vista biológico, separadamente desse fenômeno rico e instigante que é a alimentação humana situada no âmbito da ecologia e da cultura. O desafio que se apresenta hoje à Educação Nutricional é o de aproximar esses múltiplos componentes com a finalidade de promover a saúde e a qualidade de vida por intermédio da ampliação da compreensão sobre a multidimensionalidade da alimentação humana, cujo estudo encontra espaço nas ciências biológicas, humanas, econômicas, tecnológicas, nas artes e na literatura. E ninguém conseguiu expressar isso melhor do que Neruda:

Pan


!Cuán simple y sublime eres!,

Hecho de granos y de fuego;

Milagro repetido,

Acción del hombre,

Voluntad de vida...

Todo nasció para ser

Entregado, compartido,

Multiplicado.

Todos los seres

tendran derecho a la vida...

Así será el pan de mañana,

Para todas las bocas,

sagrado y consagrado,

Porque será el producto

De la mas larga

Y de la mas dura

Lucha humana.

Pablo Neruda

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Maria Cristina Faber Boog, nutricionista, é professora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (FCM

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