Unicamp Hoje - O seu canal da Noticia
navegação

Corpo docente, corpo doente?
Professor lembra que, se vivo, Paulo Freire ficaria alegre em ver que, apesar de tudo,
campanha contra o “pedagocídio” ainda sobrevive graças à união dos educadores

oesia não compra sapato. Mas dá para andar sem poesia?” O poeta pantaneiro Manoel Marinho, que subiu ao palanque sem ser anunciado, recita os versos que vão nortear os discursos do 13o Cole. Afinado com a massa de quase cinco mil participantes do evento e com a comissão organizadora, Marinho levantou a platéia com seus poemas de protesto que depois seriam traduzidos em discursos. “Tem pão velho? Não criança, temos talheres, mulheres servis, toalhas de linho, mas não temos pão.

Mário Sérgio Cortella, professor da PUC-SP, convidado especial para a conferência de abertura do congresso, mostrou quão real são os versos do poeta. “O neoliberalismo nos coloca uma regra: tudo o que você tiver de melhor, guarde; tudo o que o outro tiver de melhor, tome”, disse, lembrando que os educadores presentes estão na contramão do ditado. “Tudo o que tiver de melhor, reparta e tudo o que o outro tiver de melhor, traga também para nós como maneira de convivência. Isso é loucura, só o professor entende o significado disto. O que fazemos aqui no mês de férias?”, pergunta, como que incrédulo com o número de participantes.

“Dizemos que somos professores de carreira. Você corre de uma escola para outra. Esta é a carreira do professor. Porque somos educadores? Ganhar mal, correr muito, trabalhar demais? Todos os dias pensamos em largar tudo, o nosso corpo docente está cansado, seu corpo docente não comeu, não tomou banho, está com fome, só se alimentou de café e bolacha. Para onde vai, café e bolacha. Eu vou largar isso! Para que fazer isso?”.

Na platéia, professores distribuem um abaixo-assinado para uma campanha visando derrubar vetos do presidente Fernando Henrique ao Plano Nacional de Educação, principalmente aquele que impede o comprometimento do poder público de elevar o investimento em educação para um mínimo de 7% do PIB.

Cortella lembrou-se do 3o Cole, realizado em 1981 com a participação de Paulo Freire, que chegara do exílio havia dois anos. “Ele teria uma alegria imensa em ver que, 20 anos depois, não desistimos. Que continuamos a fazer campanha contra o ‘pedagocídio’ que a gente ainda tem no Brasil. De nossa capacidade de nos juntarmos e continuar a dizer não a este tipo de patifaria”. Paulo Freire, na época, fez um pronunciamento no Cole que depois se tornou um de seus textos mais importantes, sobre o componente político do ato de ler.

Mas Freire também ficaria infeliz se soubesse que pouco mudou na situação do ensino brasileiro nas duas últimas décadas. O “pedagocídio” continua, como mostra o professor Cortella, ex-secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo. Ele informa que 90% das crianças em idade escolar no país estão longe do perfil idealizado para um feliz aprendizado. “Têm o nariz escorrendo, tomam banho de vez em quando e estudam em um canto escuro”.

Além da precariedade de sua existência, os alunos ainda têm pela frente a barreira do próprio corpo docente que pouco aprecia a leitura e ainda ignora as diferenças entre os alunos. A vocação magisterial enrosca no estereótipo do aluno idealizado. “Você quer ser professora? Gosta de crianças? Sabe quanto ganha? Mas de que criança você gosta? De qual idade? Porque você pode gostar de seu sobrinho, que toma banho todo dia, que não tem piolho, que vai ao médico, que o nariz não escorre, que compra os livros, que os pais são alfabetizados, que tem um canto para fazer tarefas”, alerta o professor Cortella.

Para os professores que sonham com este tipo de aluno, Cortella lembra que só 10 por cento das crianças brasileiras são assim. O restante não tem pais escolarizados, não toma banho diariamente, não tem alimentação adequada, não vai a médico, tem deficiência visual, às vezes confundida com deficiência mental, não ouve direito, não tem onde fazer tarefa, faz na mesa da cozinha sem iluminação, não viaja para meio de obter mais conhecimento, não tem como comprar livro, nem incentivo em casa.

Contradição

Cortella define a escola como uma instituição social contraditória, pois de acordo com o conteúdo selecionado, em vez de beneficiar a humanidade, pode conduzir à barbárie. “Dependendo do tipo de aula que você dá, vai interferir no modo como as pessoas serão formadas e viver socialmente”, disse, lembrando do nazismo alemão, que floresceu nas escolas mesmo sem existir uma matéria chamada nazismo, mas a partir do ensino de geografia, literatura de língua alemã ou física.
“Ao professor não basta amorosidade. Tem que ser consciente das implicações políticas do trabalho. Tem que prestar atenção no aluno”, afirma. Cortella se recorda de uma tarefa trazida em um livro de estudos sociais para a criança levantar a memória do lugar em que ela vive. Ela deve perguntar para seu pai como era a cidade quando ele era criança.

“Perguntar ao pai como? Quarenta por cento das crianças da periferia das grandes cidades não moram com os pais, só com a mãe, 40 por cento das casas só têm mulheres na direção”.
Uma das maiores aberrações das escolas brasileiras, segundo o professor, são as festas juninas. “Professores e professoras formam crianças sem respeito ao homem do campo, ensinando-as a ridicularizá-lo, ao fazer com que criança ande torto, pintar o dentinho para ficar engraçado, isso não é engraçado. É sinal de miséria. A primeira coisa que o pobre faz é cobrir a boca, ele tem vergonha, fala olhando para ao chão. Aí a gente não presta atenção e faz a festa esquecendo que folclore não é para humilhar. Educação e participação são amor. E essa criança vai crescer com idéia incorreta a respeito do trabalhador do campo”.

 

CADERNO TEMÁTICO - PÁGINAS

 

© 1994-2000 Universidade Estadual de Campinas
Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP
E-mail:
webmaster@unicamp.br