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A língua entre os dentes


ilvan Muller de Oliveira acredita que a língua é um poderoso instrumento de poder e de resistência das minorias aos desmandos do Estado. Graduado em Lingüística pela Unicamp, com mestrado em História e Filosofia na Alemanha, o professor da Universidade Federal de Santa Catarina percorre aldeias, atuando na formação de professores indígenas. Na entrevista que segue, concedida após a mesa-redonda “Língua e Discriminação”, realizada em 17 de julho como parte da programação do 13º Cole, o lingüista critica a aliança entre os gramáticos e as classes dominantes, julga que a globalização enfraqueceu o poder centralizador do Estado e vislumbra o surgimento de um novo modelo educacional no Brasil.

Jornal da Unicamp – Em que áreas da lingüística o senhor atua?
Gilvan Muller de Oliveira - Trabalho atualmente com política lingüística, uma área que não é representada na universidade brasileira por uma série de razões históricas. É uma área que se preocupa com a questão de que as línguas estão estruturadas numa relação de pode entre si. E, portanto, são instrumentos de poder, instrumentos de resistência ao poder e, assim, compõem a história das sociedades humanas como um elemento ativo.

P – Em que contexto?
Gilvan Muller de Oliveira – Pelo deslocamento, pelo assassinato e pela expansão de línguas, por exemplo. A discriminação utilizada contra os falantes para excluí-los de certos meios de produção faz parte de uma das manobras de poder de uma sociedade ou de sociedades que se confrontam. Isso possibilita uma leitura diferente daquela que normalmente é feita no âmbito da universidade brasileira, do que é a responsabilidade do lingüista frente aos vários grupos étnicos, aos vários grupos de classe que compõem a sociedade. Enquanto os gramáticos tradicionais são aliados de um certo grupo de elite e, portanto, utilizam esse instrumental para assegurar o lugar desses grupos de elite (Academia Brasileira de Letras, jornais etc), a gramática será claramente uma aliança entre o pensamento lingüístico e as classes dominantes.

P – Como o seu trabalho se diferencia dos demais?
Gilvan Muller de Oliveira – É possível estabelecer alianças com outros grupos. No meu caso, trabalho sobretudo com grupos indígenas, que precisam também de aliados tecnicamente qualificados no sentido de trazer a esses povos ferramentas para pensar o poder, para pensar a resistência ao poder e seu projeto político de inserção nessa sociedade dita nacional. Então o lingüista revela que a atividade lingüística é uma atividade de alianças com grupos, numa iniciação política inevitável. Isso pode ser visto nessa relação dos gramáticos com as classes dominantes, que mantêm a discriminação e o preconceito como uma forma ativa de se perpetuar nesse lugar, de legitimar o seu próprio lugar.

P – Como o senhor vê o papel da universidade brasileira nesse cenário?
Gilvan Muller de Oliveira – Não é muito diferente. Muitos lingüistas universitários criticam os gramáticos, mas apenas fazem o trabalho de tribuna, apenas anunciam essa crítica, dentro dos muros da universidade, não estabelecendo alianças com grupo algum. Esse discurso não tem representatividade na luta política.

P – Quais seriam então os instrumentos de representatividade?
Gilvan Muller de Oliveira – Nós fundamos uma entidade chamada Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística, que é uma ONG com sede em Santa Catarina. Foi necessário nos constituirmos assim porque as pessoas que trabalham com essa questão estão dispersas pelo país. Trabalhamos com vários programas que se limitam a espaços político-lingüísticos. Por exemplo: um programa chamado Mercosul Lingüístico. Por que? Porque o Mercosul é um espaço político e, portanto, se estabelece uma série de relações, de poder, de expansão do espanhol, do português, de planificação. Outra área é de línguas indígenas e educação indígena. Por que? Porque o Estado brasileiro tem cerca de 180 línguas indígenas que lutam por certos direitos e, por isso, precisam de instrumentos. Um terceiro programa se chama línguas alóctones, que trabalha com as línguas de imigração, que no Brasil são cerca de 30, mas não têm um quadro jurídico capaz de assegurar-lhes um lugar. Outro programa se chama gestão da língua portuguesa na escola, que trabalha com as questões do preconceito. E um último programa é o da CPLP, da comunidade dos países de língua portuguesa. A ONG tem programas que analisam e atuam em projetos pontuais e aglutinam profissionais brasileiros e de outros países.

P – Que tipo de trabalho é desenvolvido nas comunidades indígenas?
Gilvan Muller de Oliveira – Minha grande atuação é em curso de formação de professores indígenas. Há muitos projetos em curso. Eu assessoro o governo do Estado do Amazonas, onde se falam 54 línguas e onde há seis projetos de formação de professores indígenas em curso; assessoro também o governo do Ceará, onde vivem 11 povos indígenas, cujas línguas desapareceram, assassinadas nesse processo de deslocamento que o Estado brasileiro ativamente construiu.

P – Quais seriam as bases dessa atuação?
Gilvan Muller de Oliveira – As elites sempre tiveram um projeto lusófono e monolíngüe do Brasil. E continuam trabalhando nesse sentido, por mais que, a partir da Constituição de 1988, a gente tenha tido importantes ganhos em termos de rever esses conceitos de monoculturalismo, de monolingüismo, e o reconhecimento, muito parcial ainda, do caráter plurinacional, pluriétnico e pluricultural do país.

P – O senhor poderia dar exemplos de avanços estabelecidos pela Constituição de 1988?
Gilvan Muller de Oliveira – Através dos artigos 210 e 230, que garantem, aos índios, direitos à sua cultura e à sua língua. Depois vão ser ancorados também na LDB. E que pela primeira vez acenam para o reconhecimento, por parte do Estado, de que os índios são uma categoria permanente, que não vão desaparecer. Na mentalidade das elites, índio será integrado, o que significa ser dissolvido enquanto etnia e cultura. E passará a ser mão-de-obra nas fazendas, favelas e periferias; passará a ser brasileiro pobre e excluído da estrutura de classe, mas tendo deixado de ter essa especificidade étnica, o que justamente traz um potencial de resistência, de reivindicação de direito. O índio ameaça o Estado, para o qual é muito mais fácil lidar com o mito republicano de um homem e um voto, e com a relação individual entre a pessoa e o Estado, não mediada por grupo ou povos. A atomização dos grupos e a emergência do indivíduo são importantes para o Estado se afirmar como única fonte de representatividade.

P – Que tipo de trabalho é feito para fortalecer esse potencial de resistência?
Gilvan Muller de Oliveira – No sentido de ajudar os professores a pensarem a sua língua e seu projeto de futuro. Colocamos algumas questões. Como nós queremos lidar com a situação da nossa língua? Qual é a situação sócio-linguística da nossa língua hoje? É preciso fazer um diagnóstico de cada caso? Queremos estabelecer o bilingüismo, mas o que é isso? Trabalhamos em sociedades plurilingües, como no Alto Rio Negro, onde num único município (São Gabriel da Cachoeira) se falam 19 línguas indígenas, e onde numa parte significativa da cidade os casamentos são interlinguísticos. É um lugar onde o repertório lingüístico é diversificado. Que modelo esses povos querem construir, querem escrever suas línguas?

P – Como se dá a inserção do português nesse universo?
Gilvan Muller de Oliveira – Línguas como o português foram constituídas como escrita a partir da eliminação da diversidade. Não é o caso das línguas indígenas, que não têm um centro. São línguas que convivem com essa pluralidade, com essa diversidade. Cada aldeia tem uma forma, e não se trata de estabelecer uma política de centralização, porque isso seria artificial, não é essa a estrutura dos povos indígenas. Eles não têm um Estado, uma capital, nenhuma corte... Então, necessariamente, as discussões correm por esse viés: qual é o projeto de futuro desse povo particular para esta relação linguística, dessa língua indígena com a língua portuguesa, oficial e dominante? Meu trabalho é escutar, quase como psicanalista. Dialogar, trazer exemplos, trazer instrumentos, fazer junto e colaborar para que esses povos e seu projeto lingüístico estejam de acordo com seu projeto político. Só assim esses povos vão ter uma chance contra um Estado que divulgou ideologias, hoje dominantes, de intolerância com a diferença.

P – Quais as diretrizes desse trabalho no cenário de globalização e exclusão?
Gilvan Muller de Oliveira – Interessante essa pergunta. Autores ligados à globalização têm refletido, Otávio Ianni por exemplo, que ao mesmo tempo em que a globalização traz uma homogeneização, traz também a emergência da diversidade. Alguns teóricos afirmam que entramos numa fase de explosão das diferenças. Por que? É simples: porque o grande eliminador das diferenças sempre foi o Estado. Ele, com sua ideologia nacional de equalização de todos os cantos do país, foi o grande vilão que atacou as diferenças. A globalização é um grande perigo e ao mesmo tempo uma grande oportunidade, porque enfraquece o Estado. As coisas não são simples, pelo menos para as minorias. E a globalização faz o que? Enfraquece esse poder, cria interferências internacionais em questões sobre as quais a soberania do Estado era indiscutível. Se a Turquia queria matar 1,5 milhão de curdos, ninguém interferia, era caso interno. Mas hoje, não. Isso traz oportunidades muito grandes para a diferença.

P – Dá para dissociar os componentes econômicos dos culturais?
Gilvan Muller de Oliveira – É um cenário muito complicado para a gente lidar. Eu diria que o cultural e o econômico não estão tão dissociados assim. No Brasil de hoje, com essa crise, vivenciamos um cenário de ameaça contra as minorias, ameaça contra os territórios indígenas, inclusive em processo de demarcação – são muitos os pedidos de fazendeiros e de suas representações políticas para mutilar territórios indígenas como a Serra do Sol, em Roraima, e tantos outros. Mas, com todas essas ameaças, nunca tivemos tamanha movimentação das organizações indígenas que se dirigem ao MEC, ao governo, a entidades internacionais. Elas têm estabelecido alianças e conseguido recursos para projetos, seja na área cultural, seja na área de sustentabilidade. Nunca as representações indígenas – mesmo que ainda pequenas e débeis para o conjunto da sociedade, por serem uma minoria de 400 mil pessoas – fizeram uma movimentação tão interessante. E, dentro de toda a perspectiva negra, é também promissora. Não é uma questão simples, nem dicotômica, dual – é bom ou ruim... Todas as coisas acontecem concomitantemente. Estou tendo o privilégio de participar de projetos na Amazônia, no Sul, no Centro-Oeste, no Nordeste, vendo povos indígenas tomar as rédeas em vários processos.


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