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Intelectual do divã
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Pioneiro do Departamento de Psicologia Médica da
FCM, psicanalista de 82 anos volta aos tempos de cronista

Um intelectual do divã

Clayton Levy

O psicanalista Roberto da Silveira Pinto de Moura, que hoje se divide entre o consultório, a literatura e o ensino: planos de escrever livro com as histórias de vida (Foto: Neldo Cantanti)Queria ser advogado, mas estudou medicina, enveredou pelo jornalismo e acabou se destacando como psiquiatra. Prestes a completar 82 anos, Roberto da Silveira Pinto de Moura é, antes de tudo, um intelectual do divã. Primeiro psicanalista de Campinas e um dos fundadores do Departamento de Psicologia Médica da Unicamp, ele hoje divide o tempo entre o consultório, o ensino de psicanálise e a literatura. Fala de Machado de Assis com o mesmo entusiasmo com que evoca Sigmund Freud. Um é seu mestre literário; o outro, seu guru científico. E avisa: voltou a escrever como nos velhos tempos em que assinava saborosas reportagens crônicas no Diário da Noite e Diário de São Paulo, dois importantes elos do império capitaneado por Assis Chateaubriand.

Na sala ampla de seu apartamento próximo, ele acomoda-se numa poltrona, passa a mão pelo rosto alongado e vai desfiando lembranças. Começa pelo jornalismo. Diz que veio ao mundo em junho de 1925, mas só foi nascer de verdade em 1946, na redação de um jornal. “Até então, eu não sabia o que era a vida”. Aos 21anos, recém-chegado de Campinas e trabalhando como repórter para pagar os estudos na Escola Paulista de Medicina, Pinto de Moura começou a conhecer os dois lados da sociedade: o glamuroso e o perverso.

Psicanalista foi o primeiro de Campinas

“Freqüentava museus e andava por favelas”, conta. “Fiz amizade com jovens artistas, como Flávio Tambelini, Marcelo Grassman e Aldemir Martins, mas também testemunhei dores sem tratamento e sem cura na cidade grande”. A vida na redação pulverizou a ingenuidade que o jovem estudante herdara da educação interiorana. “Tornei-me agnóstico e resolvi me guiar pela própria cabeça”.

Quando fala dessa fase, que foi de 1946 a 1951, Pinto de Moura traz à cena personagens que marcariam para sempre sua formação. Fúlvio Abramo, “um homem heróico, que discursava sob tiros de fascistas”; Rômulo Fonseca, “portador de enorme bagagem literária”; Olinto Guastini de Castro, “que me adestrou na técnica da reportagem”; e Hermínio Sacheta, “chefe de redação e histórico dirigente trotskista”. Faz um silêncio fundo e arremata: “Essa gente mudou a minha vida”. Em pouco tempo, Pinto de Moura tornou-se socialista.

Designado para cobrir a Câmara Municipal, tornou-se amigo pessoal do então vereador Jânio Quadros, opositor ferrenho do governador Adhemar de Barros, cujo estilo, peculiar à época, daria origem à lógica do rouba, mas realiza. “Jânio era um incêndio, brilhantíssimo”, rememora. “Uma vez, bastou um discurso seu para derrubar o secretário de Saúde”. Ao relembrar o episódio, faz questão de imitar o personagem, com aquela correção gramatical e califásica que era sua marca registrada: “Esse secretário é muito peralta e levado da breca, le-va-do-da-bre-ca”. Em seguida, faz um ar de deboche e solta uma gargalhada.

Cronista – Pinto de Moura atingiria o auge no jornalismo ao final da década de 1940, quando passou a assinar duas colunas: “Bancadas e Galerias” e “O Drama Cotidiano”. Numa, comentava o cenário político, na outra, o dia-a-dia na grande capital. Em ambas, transbordava o tom crítico do espírito socialista. De vez em quando, a direção do jornal rosnava: “subversivo!” Mas o cronista, apoiado pelos colegas, fazia que não era com ele. Até o dia em que, por volta de 1951, um novo chefe assumiu o lugar de Hermínio Sacheta. “Reacionário e adepto do sistema, passou a censurar minhas crônicas”. Percebendo que havia perdido a liberdade de expressão, Pinto de Moura pediu demissão.

Embora no início tenha “apanhado” da velha Remington, Pinto de Moura não teve dificuldades para conciliar medicina com jornalismo. A mãe, carioca, havia crescido num ambiente de efervescência cultural. “Ela ouviu Caruso emitir o seu famoso dó de peito, viu Ana Pavlova morrer no palco em O Lago dos Cisnes e deliciou-se com as obras de José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo”. O pai, que saíra de Campinas para cursar medicina no Rio de Janeiro, não ficava atrás. Aluno de Carlos Chagas e Miguel Couto, pretendia elaborar uma tese discorrendo sobre a morbidez dos personagens de Machado de Assis. “Só não o fez porque outro estudante apresentou o mesmo trabalho primeiro”.

O interesse dos pais por temas culturais foi decisivo na formação dos quatro filhos. Aos 16 anos, Pinto de Moura já conhecia a obra dos romancistas e poetas românticos. Também ficou fã de Vitor Hugo. Aliás, o psicanalista atribui ao autor de Os Miseráveis o fato de ter desistido da advocacia. “Quando li a história do personagem Jean Valgean, condenado por ter furtado um pedaço de pão, vi que a lei era injusta”. A exemplo do pai, escolheria a medicina.

Apesar de cardiologista, em 1931 o pai de Pinto de Moura interessou-se pela obra de Freud. Influenciado pelo colega e amigo João Cortes de Barros, um dos pioneiros da psicanálise no país, passou a estudar a psicossomática, novidade na época. Publicou livros e artigos sobre o tema, no Brasil e no exterior. “O assunto começou a freqüentar nossa mesa durante as refeições”. Quando concluiu o curso de medicina, em 1951, Pinto de Moura já sabia o que iria fazer. Saía de cena o jornalista para entrar o psiquiatra.

A opção pela psiquiatria, porém, tinha a ver com sua experiência no jornalismo. “O contato com as misérias humanas despertou meu interesse pelos distúrbios de personalidade e suas causas”. Pinto de Moura volta para Campinas e ingressa no hospital dirigido pelo psiquiatra Bierrembach de Castro. Naquele tempo, dado os poucos recursos terapêuticos, a camisa de força ainda era um antipático mas indispensável meio de contenção e a insulinoterapia surgia como novidade ao lado do eletrochoque.

Embora os novos métodos contribuíssem em alguns casos de esquizofrenia e melancolia, não havia consenso sobre seu modo de atuação. “Desde o início, notei que os pacientes submetidos ao eletrochoque não se livravam dos delírios e idéias obsessivas”, comenta. Além disso, segundo ele, os recursos tradicionais tornavam o psiquiatra um ente mecânico. “A psiquiatria com que eu tanto sonhara fechava suas portas aos segredos por trás das doenças e desvios psíquicos”.

Ao entrar no tema psiquiatria, Pinto de Moura assume um ar acadêmico. Transita com desenvoltura pelo assunto. Fala de fisiologia, bioquímica, terapias. Conta casos, revive cenas, gesticula, até chegar no personagem principal: Freud. “Precisava conhecer as causas psicológicas das neuroses e psicoses”, justifica. Entusiasmado com as teorias do “mestre”, dá início a uma viagem sem volta. “Me admirava a coragem com que adentrava os meandros da mente humana”.

Não foi uma tarefa fácil. Naquela época, a doutrina freudiana tinha mais adeptos entre humanistas do que entre médicos. “Para muitos, Freud não passava de um pervertido”. Cercado por esses conceitos, ele próprio hesitou. “Tinha medo que aquela nova teoria me conduzisse no rumo errado”. Ainda assim, não desistiu. “Fascinado com aquelas idéias, iniciei sozinho a psicanálise para o meu próprio autoconhecimento”. Pinto de Moura ainda não sabia, mas era só o início de uma nova fase em sua vida.

“Freudinho” – A psicanálise abriria um horizonte novo ao jovem médico. Agora, além da abordagem psiquiátrica clássica, Pinto de Moura utilizava outro recurso: ouvia os pacientes. “Muitas vezes, eles me contavam, com a voz embargada e infantil, os sentimentos que traziam por dentro”. Começou a ficar conhecido como o único psiquiatra seguidor de Freud em Campinas. “Em pouco tempo, me senti uma espécie de ‘freudinho’ da cidade”. Não demorou para tornar-se alvo de críticas dos próprios colegas.

Uma vez, um padre chegou a aconselhar uma paciente a interromper o tratamento. “Ele me acusava de ser comunista, ateu e freudiano”. E, dando uma gargalhada, completa: “o inferno era pouco”. Na mesma época, Pinto de Moura foi excluído da Escola Superior de Enfermagem “Madre Teodora”, ligada a então Universidade Católica de Campinas. Motivo: estava falando de Freud em suas aulas.

Em 1960, Pinto de Moura achou que era hora de encerrar a fase autodidata e tornar-se psicanalista de verdade. Viajou para São Paulo em busca de orientação na sede da Sociedade Brasileira de Psicanálise. Ao longo de seis anos, teve aulas com grandes mestres, entre eles Judite de Carvalho Andreucci, Virginia Leone Bicudo, Lígia Amaral. Fez psicanálise com Isaias Melsohn. “Viajava quatro vezes por semana, de litorina”.

Um dia, logo após concluir sua formação no Instituto, Pinto de Moura recebe um telefonema. Era Zeferino Vaz, chamando-o para uma conversa na Maternidade de Campinas, onde funcionava a reitoria da então recém fundada Unicamp. “Ele sabia que eu era o único psicanalista da cidade e convidou-me para ajudar na organização do departamento de psiquiatria na Faculdade de Medicina”. Surpreso, Pinto de Moura ainda tentou se esquivar, dizendo que não se sentia à altura. Zeferino, porém, foi incisivo: “Adoro Freud, quero a psicanálise aqui”.

Agora, Pinto de Moura acumulava as funções de psiquiatra no hospital, psicanalista no consultório e professor da área de Psicologia Médica na Unicamp e Psicologia na Puccamp. “Comecei a reunir professores e fazer apostilas”, conta. “Às vezes, varava a madrugada preparando material para as aulas”. Quando deixou o cargo, dois anos depois, o departamento começava a decolar. “Foi uma experiência enriquecedora, mas tive de deixar o cargo porque sustentava minha família predominantemente com o trabalho no consultório”.

Hoje, ao puxar o fio da memória, Pinto de Moura refaz o caminho de volta como quem assiste a um filme de Fellini, com personagens, cenários e dramas que sintetizam a condição humana com todos os seus absurdos e contradições. Mais maduro, permite-se até mesmo a uma análise critica da obra de Freud. “Modestamente, penso que se pode fazer uma revisão em alguns pontos de sua obra, considerando a evolução das ciências humanas bem como da Biologia”. Mas não se anima a publicar textos científicos. Agora o psicanalista inquieto só pensa em voltar aos velhos tempos de jornalista. “Tenho muita coisa guardada, histórias de vida, que um dia pretendo contar”.

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