| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 318 - 3 de abril a 16 de abril de 2006
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Educadora mostra que o jogador de futebol driblou
também os problemas que afetam os negros

O trabalho e a educação no Brasil
e a torcida por Ronaldinho Gaúcho

MANUEL ALVES FILHO

A professora Liliana Segnini em palestra com a presença do ex-ministro José Gregori: “A trajetória de Ronaldinho Gaúcho oferece informações sobre a sociedade brasileira do presente” (Fotos:- Claudio Chaves – Folha Imagem/Neldo Cantanti)O meia-atacante Ronaldinho Gaúcho, quem diria, chegou à academia. Eleito pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) como o melhor jogador do mundo nas duas últimas temporadas, o atleta do Barcelona e da Seleção Brasileira foi “convocado” pela professora Liliana Rolfsen Petrilli Segnini, da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, para auxiliá-la na apresentação da palestra intitulada “Trabalho e Educação no Brasil Contemporâneo”, ocorrida no dia 29 de março. O craque não esteve de corpo presente na Universidade, mas a sua trajetória social e profissional ofereceu elementos importantes para as reflexões da docente. “Embora singular, a história de vida do Ronaldinho nos fornece informações interessantes sobre a sociedade brasileira no presente”, afirmou Liliana durante a conferência.

Palestra aborda etnia, escolaridade,
renda e emprego

A idéia de refletir sobre as questões do trabalho e da educação no Brasil a partir da biografia de Ronaldinho surgiu quando a professora Liliana estava em Lisboa, no final de 2005, participando do programa “Cátedra Brasil/Portugal em Ciências Sociais”, desenvolvido em conjunto pela Unicamp e Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE). Nos três meses em que permaneceu no exterior, ela realizou diversos trabalhos acadêmicos, como curso e seminários. A palestra apresentada na Unicamp foi a mesma ministrada por ela por ocasião do encerramento do programa.

À platéia, a docente contou como resolveu usar a trajetória do jogador de futebol para pensar o Brasil de hoje: “Todos os dias, quando me dirigia ao ISCTE, via o rosto sorridente de Ronaldinho num enorme outdoor. Na peça publicitária, ele oferecia uma conhecida marca de chicletes [pastilha elástica, em Portugal]. Como socióloga, eu me perguntava o que aquele jovem, que alcançou um grande sucesso no mundo dos esportes, podia nos informar sobre a atual sociedade brasileira”. Entre as questões analisadas pela professora Liliana Segnini a partir das circunstâncias sociais do atleta, quatro mereceram destaque: condição étnica, de escolaridade, de renda e de trabalho.

Quanto ao primeiro aspecto, a socióloga destacou que o craque do Barcelona é afro-descendente. Nascido um século depois da assinatura da Lei Áurea, disse, ele não foi feito escravo. No entanto, cresceu em um bairro pobre de Porto Alegre, marcado pela desigualdade social e de renda. Um lugar, como afirmou a professora, reservado principalmente aos pobres e negros, igual a muitos espalhados pelo Brasil e por outras metrópoles do Ocidente. “Ronaldinho, mesmo experimentando um grande prestígio internacional, enfrenta preconceito racial nos estádios. Freqüentemente, ele escuta, junto com outros companheiros na mesma situação étnica, ofensas como ‘macacos’”.

De acordo com a socióloga, apesar das múltiplas etnias que se mesclam em sua sociedade, o Brasil contemporâneo não se apresenta como uma democracia racial. “O grupo menos escolarizado no país é o constituído pelos negros, e dentro dele os homens negros. O grupo que aufere as menores rendas também é formado pelos negros, e entre estes as mulheres negras. Quanto tempo mais precisaremos para avançar em relação à Abolição da Escravidão e erradicar definitivamente o preconceito?”, indagou. No que toca à escolarização, Liliana Segnini lembrou que Ronaldinho não é analfabeto, situação vivida por 10,4% da população brasileira. Nem tampouco ficou fora da escola, como ocorre atualmente com 2,9% das crianças entre 7 e 14 anos.

O jogador faz parte do grupo de jovens brasileiros que têm entre 20 e 24 anos, que freqüentaram a escola durante oito anos. Não integra, portanto, o contingente da população (26%) que cursou o ensino médio. “A despeito dos números revelarem um processo de expansão da escolarização no Brasil, ainda há muito que conquistar nesse aspecto. Um dos desafios a serem superados é, evidentemente, a melhoria da qualidade do ensino”. Ao refletir sobre o país a partir das condições de renda do melhor futebolista do mundo, a socióloga recordou que o craque não pertence mais ao time dos mais pobres, constituído por 50% da população, cuja participação na renda nacional é de 15,2%.

Grupo seleto – Na atualidade, Ronaldinho se insere no seleto grupo dos 5% mais ricos, detentores de 32,5% da renda, conforme dados de 2004 do IBGE. “É interessante observar que, em 1983, os mais ricos se apropriavam de 46,2% da renda nacional. Ou seja, uma concentração um pouco menos intensa do que a observada nos dias de hoje”. As desigualdades nessa área, segundo a docente da FE, aprofundaram-se a partir da desconstrução do mercado de trabalho formal, ocorrida no período de 1980 a 2003. Tal processo deu-se dentro de preceitos democráticos: privatizações, fusões de empresas, crescimento do trabalho precário e perdas de direitos. “A desigualdade de renda é o problema mais agudo do Brasil contemporâneo e Ronaldinho, ainda tão jovem, já ocupou um lugar nos dois extremos desta história contada estatisticamente, mas vivenciada como drama por muitos”.

No que toca ao último ponto de análise, o das condições de trabalho, Ronaldinho está entre os 11,8% das crianças e adolescentes brasileiros que começaram a trabalhar com 5 a 17 anos de idade. A lei determina que é ilegal o trabalho de jovens com idade inferior a 16 anos. O ex-atleta do Grêmio começou a atuar profissionalmente aos 17 anos. Desde então, sua carreira tem sido marcada pelo sucesso. “Ele leva às últimas conseqüências o conceito prescrito de competências tão em voga no mundo do trabalho e da educação. Em outras palavras, Ronaldinho sabe mobilizar e demonstrar individualmente que é capaz de concretizar em uma dada situação de trabalho um conjunto de conhecimentos e habilidades para solucionar problemas em contextos flexíveis”.

Ronaldinho nunca esteve desempregado, situação que atinge 46,4% dos 6,5 milhões de jovens brasileiros entre 16 e 24 anos. No país, de acordo com dados da Fundação Seade, o fantasma do desemprego atinge 19% da população economicamente ativa. O astro do Barcelona também integra um distinto grupo de jovens que o Brasil não conseguiu reter em seu território. Seu talento e preparo futebolístico foram comprados por clubes de países ricos. Cumpriu, portanto, o mesmo caminho de engenheiros, médicos, dentistas e artistas, que foram buscar no exterior as condições favoráveis de trabalho que não encontraram aqui.

Olhar o passado – A professora Liliana Segnini lembrou que o contrato milionário firmado entre o jogador e o seu clube, apesar de conter cláusulas que objetivam proteger os dois lados, tem a validade da competência, juventude e desempenho do atleta. “Como a carreira do jogador é efêmera, o contrato não o protegerá no amanhã”, advertiu. Por fim, a socióloga afirmou que se Ronaldinho tivesse cumprido a trajetória a que estava fadado, considerando sua classe social e nível de escolarização, ele possivelmente não gozaria do prestígio e riqueza que tem hoje, mas poderia eventualmente ter imigrado para Portugal ou outros tantos países, a partir da década de 90. Mas em vez de estar atuando no Barcelona, ganhando milhões de euros e sendo aclamado pela multidão, ele faria parte de um conjunto de trabalhadores de baixo custo e qualificação que lutam com enormes dificuldades para sobreviver.

Ao encerrar a sua palestra, acompanhada pelo ex-ministro da Justiça José Gregori, que atuou como embaixador do Brasil em Portugal e empreendeu esforços para a concretização da “Cátedra Brasil/Portugal em Ciências Sociais”, Liliana Segnini afirmou que a compreensão de questões tão importantes para a sociedade brasileira obriga todos a olhar para o passado e trazer, por meio dele, algumas reflexões históricas e sociológicas para informar o presente.

 

 

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