| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Enquete | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 209 - 7 a 21 de abril de 2003
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A saga de Paulo Duarte, combativo
e combatido, nas 60 mil peças de seu acervo na Unicamp



O Dom Quixote brasileiro

LUIZ SUGIMOTO


Dois motivos únicos me levaram a dispor dessa biblioteca: o desejo ardente de nãoO advogado e jornalista Paulo Duarte e a caveira formada por suas iniciais (destaque): trajetória tumultuada vê-la dispersada em caso de minha morte e uma razão de premência e necessidade: as misérias deste nosso Brasil e a minha própria miséria (parafraseando Maurice Sele) que me obrigam a procurar recursos para uma vida de apreensões materiais que se torna cada dia mais difícil e insuportável, que só poderia ser amenizada com a venda desse praticamente único patrimônio que possuo.

(...) Eis pois porque me dirijo a V.Exa., propondo a venda da biblioteca por um preço mínimo de Cr$ 500.000,00 (quinhentos mil cruzeiros novos) desde que a avaliação da biblioteca alcance esta quantia - pagos integralmente ou em duas ou três prestações a combinar, caso V.Exa. se interesse pela proposta que ora faço".

A carta do jornalista e advogado Paulo Duarte, dirigida ao reitor da Unicamp Zeferino Vaz, é datada de 20 fevereiro de 1970. Nela o intelectual dá mais detalhes sobre sua proposta, destacando títulos de um acervo formado em 50 anos de estudos e buscas, com aquisições no Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália e em outros pólos culturais. Um leque de áreas do conhecimento: Bibliografia, História do Brasil (Brasiliana), Literatura portuguesa, francesa e italiana, Etnografia e Pré-História, Sociologia, História Natural, Filologia, revistas e publicações periódicas.

"Dada a variedade de livros raros, poderá ser o primeiro núcleo capaz de facilitar quaisquer estudos sobre nosso país e outros que possam interessar a uma universidade organizada", argumentava na carta o jornalista, sabedor de que Zeferino Vaz pretendia implantar um centro de estudos brasileiros na recém-fundada Unicamp. A compra foi concretizada em poucos meses, ao preço pedido por Paulo Duarte, como veremos em texto à parte.

Um carimbo, em que as iniciais P e D formam a figura de uma caveira, chamaria a atenção de especialistas em documentação que viriam a manusear o acervo entregue à Universidade. Como a marca do Zorro ou do Fantasma dos gibis, fazendo uma associação barata. Ou a marca do "Dom Quixote brasileiro", na associação preferida por Marli Guimarães Hayashi, para o título da tese de doutorado que defendeu na USP em janeiro de 2002. Entre vindas e idas, a pesquisadora gastou seis meses vasculhando o arquivo pessoal do intelectual no Cedae (Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio).

"Em meu mestrado sobre Adhemar de Barros, de quem Paulo Duarte foi inimigo histórico, já tinha recorrido à Unicamp para pesquisar os dossiês do jornalista contra o governador. Pude perceber não apenas a riqueza do acervo, mas também que o desafeto era tão interessante quanto o personagem. Apesar das controvérsias, seria Duarte o autor do slogan "rouba, mas faz", atribuído a Adhemar", relembra a historiadora. No trabalho de doutorado, Marli Hayashi reconstrói a trajetória de um homem polêmico, que ao ser aposentado compulsoriamente na USP pelo AI-5, em 1969, consolidara a fama de "humanista e antitecnocrático, progressista patriota e antitotalitário, polemista de temperamento ardente".

"Paulo Duarte nunca foi figura unânime e cordata. Muito pelo contrário. Desentendeu-se com inúmeras pessoas e fez inimigos. Talvez esta tenha sido a razão para que cerca de trinta pessoas, dentre as quais Florestan Fernandes, Hélio Bicudo, José Mindlin, Luiz Vieira de Carvalho Mesquita e Alípio Corrêa Neto, comparecessem ao seu enterro no dia 24 de março de 1984", escreve a pesquisadora na conclusão da tese, depois de narrar os fatos resumidos em seguida.

Exílios - Paulistano nascido em 17 de novembro de 1899, Paulo Alfeu Junqueira Monteiro Duarte tinha 20 anos ao iniciar a carreira jornalística, como revisor em O Estado de S. Paulo. Foi repórter responsável pelas notícias do governo e chegou a editor-chefe no final dos anos 40. A amizade com a família Mesquita - proprietária do jornal - permitiu que ele participasse de importantes episódios da vida política e cultural paulista.

Duarte fez da redação trincheira e palanque. Atuou no movimento constitucionalista e, detido numa fuga pela mata, ficou exilado por um ano; ajudou a articular oposição ao Partido Republicano Paulista, engajando-se com industriais emergentes no Partido Democrático; foi consultor jurídico do prefeito de São Paulo; elegeu-se deputado estadual pelo Partido Constitucionalista com a plataforma do socialismo "sadio"; depois de onze prisões no espaço de um ano, acabou expulso pelo Estado Novo em 1938, ficando exilado pela segunda vez, até 1945, a maior parte na França.

Desgastada a relação com os donos de O Estado, Paulo Duarte deixou o jornal e criou em 1950 a revista Anhembi, que em meio ao sensacionalismo vigente na época, abriu espaço para intelectuais brasileiros e estrangeiros e suas pesquisas acadêmicas. Até 1962, quando acabou fechada por razões econômicas, a publicação também virou trincheira em embates com Adhemar de Barros e Getúlio Vargas, ao mesmo tempo em que o jornalista alimentava incompreendida amizade com Jânio Quadros.

Por mais de uma vez Paulo Duarte prometeu abandonar a política e se dedicar à cultura, seu verdadeiro gosto. O interesse em antropologia foi despertado, ainda no colégio, pelo diretor do Museu do Ipiranga Hermann von Hering. Cursaria medicina, não fossem a falta de recursos e o emprego no jornal, e, se freqüentou a São Francisco a contragosto, é porque esperava conhecer a medicina legal através do direito criminal. Na França, foi discípulo de Paul Rivet, criador do Museu de l'Homme e culpado pela obsessão de Duarte em viabilizar o Instituto de Pré-História. Sustentou amizades entre a nata da literatura, como Mário de Andrade, Érico Veríssimo e Monteiro Lobato.

A mágoa - Apesar de presente em momentos marcantes da vida política e cultural, Paulo Duarte sempre apareceu em segundo plano, como primo pobre desta elite. Carregou grande mágoa pela omissão de seu nome entre os fundadores da Universidade de São Paulo, embora, ao que tudo indica, tenha participado das decisões cruciais para a criação da instituição, tanto quanto Armando Salles Oliveira e Júlio de Mesquita Filho. Mesmo sua última realização, o Instituto de Pré-História, fundado em 1962 depois de uma década de lutas, acabaria absorvida por outra unidade da USP.

A vivência como professor da universidade foi igualmente tumultuada, diante de suas críticas à situação interna e em período especialmente difícil imposto pela ditadura. Duarte aparece como a "figura mais incômoda de toda a Universidade" em Livro Negro da USP: o controle ideológico da Universidade de São Paulo, publicado pela associação dos docentes em 1978.

É ainda Marli Hayashi quem afirma: "Semelhante a Dom Quixote, Paulo Duarte passou "a vida brincando de sonhar sonhos impossíveis", como o Departamento de Cultura, o Instituto de Criminologia, o Museu do Homem Americano, a revista Anhembi e o Instituto de Pré-História, todos bruscamente interrompidos".

Retrato Realista

Sou quase um psicopata que amedronta o mundo são e os homens de bom senso, as famílias cristãs me têm de ponta e a gente honesta tem-me ódio imenso.

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Como a réplica trago sempre pronta, o doesto vive sobre mim suspenso e a sociedade não perdoa a afronta de dizer tudo quanto dela penso.

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Com o meu característico descoco, sou sempre amigo incômodo que bota tudo a perder porque transige pouco.

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Por isso analisando a minha rota julgam-me todos um completo louco, quando não passo de um vulgar idiota...

Arquivo particular veio como "brinde"

Menos de um mês após receber a carta de Paulo Duarte, o reitor Zeferino Vaz solicitou uma avaliação do valor intelectual da biblioteca do jornalista, convidando para esse trabalho Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda, da USP; José de Barros Martins, diretor da Editora Martins; e Rubens Borba de Moraes, da UnB, então considerado o maior conhecedor de livros sobre o Brasil.

A comissão visitou Duarte para conferir sua lista de raridades: livros de Jean de Lery (1585), Rocha Pita e Brito Freire (1675), Ulsius (1628), Gandavo, Antonil, La Condine (1788), e da maior parte dos viajantes como Nieuoff (1682), Martius, príncipe Maxiliano, Spiz e Martius, S. Hilaire, Grevaux, Maria Graham e Kester. Perto de 70 títulos e documentos estão na Coleção de Obras Raras da Biblioteca Central. O Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) solicitou para sua biblioteca quase 3.500 títulos de áreas afins.

A comissão avaliou o acervo em Cr$ 500.725,00 e a compra foi fechada em agosto de 1970, mediante duas parcelas totalizando 500 mil redondos. Dois meses antes, em reconhecimento ao interesse da Unicamp, Paulo Duarte havia se comprometido a entregar, como doação, outra grande quantidade de volumes e coleções, além de 17 estantes de aço com seu arquivo particular.

Neire do Rossio Martins ficou encarregada, em 1985, de transferir o arquivo de Paulo Duarte para a então recém-criada Divisão de Documentação da Unicamp, atual Siarq (Arquivo Central do Sistema de Arquivos) que hoje coordena. O acervo estava com o empresário e bibliófilo José Mindlin, que só então soube do compromisso assumido pelo jornalista.

Mindlin liberou para a Unicamp aproximadamente 60 mil itens, entre manuscritos, correspondências, fotos, quadros, gravuras e outros objetos pessoais, transferidos em 1994 do Siarq para o Cedae. Nesta remessa vieram nove livros de Memórias, incompletas, visto que Duarte planejara um total de quinze volumes. O arquivo traz ainda inúmeros dossiês, que refletem a efervescência cultural e política do Brasil num período que vai do século 19 ao começo dos anos 1980. Numa estante, jazem três capacetes de combatentes da Revolução de 32.



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