Joyce e as memórias de sua infância com Lobato
A neta do escritor venerava o homem aventureiro e divertido, mas revela
que ele não era um avô do tipo afetuoso, apesar
de escrever para crianças: ‘Nunca me pôs no colo’

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JU – Como assim, obrigada a fazer o papel?

Joyce – Eu podia ser artista no desenho, mas era tímida. E sempre teve aquela coisa de exigirem mais, por eu ser neta de Monteiro Lobato. Apesar de não levar o nome – sou Joyce Campos, apenas – os professores de português exigiam que a neta de Lobato fosse a melhor. É muito chato, muito pesado. Lembro-me de quando fazíamos as composições, descrições... Sempre o professor me chamava: “Dona Joyce, leia a sua”. Por que? Neta de Lobato! Meu primo Rodrigo, que leva o sobrenome Monteiro Lobato, ficou fora de si com a perseguição. Ficou revoltado. Em todos os colégios de São Paulo e Taubaté, ele foi perseguido. É uma das profissões mais difíceis do mundo: ser parente de Lobato.

JU – Como era seu relacionamento com ele?
Joyce – Não foi uma relação intensa, como todo mundo pensa. Houve épocas em que ela foi próxima, em outras não. Ele vivia viajando, principalmente durante a campanha do petróleo. Morava na casa dele, eu na dos meus pais. Meu avô nunca foi afetuoso. A sensibilidade que demonstra na obra é uma coisa. Todos pensam que, por ele ter escrito para crianças, era aquele avô que mima. Mas não. Ele me tratava como adulta. Tinha conversas que obrigavam, a mim e a outras crianças (amigas e vizinhas), a pensar. Muita gente viu foto dele com crianças no colo e acha que ele era assim. Mas nunca fiquei no colo dele. Aquilo era pose para fotografia. Ele gostava de crianças, mas quando elas eram inteligentes, falantes, até pernósticas. Eu tinha muito ciúme das outras meninas. Seu pudesse estrangular, estrangulava, estou sendo honesta. Passeávamos juntos, mas nunca de mãos dadas. Primeiro, porque eu saía correndo, e outra porque ele não era disso. Meu avô nunca me deu bronca, nunca se exaltou comigo e eu era uma criança tremendamente reinadeira. Não era malcriada, mas tinha imaginação fértil para fazer coisas esquisitas.

JU – O que a senhora leu da obra de Lobato?

Joyce – Li tudo. O que devia e o que não devia. Há livros que não li totalmente, porque participei da confecção. Eu tinha outro hábito, de dormir com ele e minha avó, na cama deles, mesmo depois de grandinha, já com 11, 12 anos. E meu avô lia trechos dos livros que estava escrevendo, perguntando o que a gente achava. Então, esses eu não li, porque já sabia o que ia acontecer. “Reforma da Natureza”, por exemplo, li bem mais tarde – na época achei que era dona do livro, tipo de besteira que criança inventa.

JU – Algum a marcou em especial?

Joyce – Alguns. Do “Histórias de Tia Nastácia”, por exemplo, eu tenho horror, porque aprendi a ler nele, com 5 anos. Quem me ensinou a ler foi meu pai e ele era muito exigente. Tabuada, até hoje eu tenho na ponta da língua. Se você errava, ele dava um coque na cabeça. Minha cabeça até hoje é dolorida... terrível (risos). Minha cartilha foi “Histórias de Tia Nastácia”. E eu ficava apavorada para ler, porque já sabia que vinha um coque. Eu errava e pronto: coque! Então, era um suplício. Muitas vezes lia metade da história de jeito normal, metade chorando. Nunca mais esqueci esse livro. Depois, do que mais gosto é “Reforma da Natureza”, que ouvi na cama, com minha avó e meu avô. Outros com os quais aprendi muito foram “Os Doze Trabalhos de Hércules” e “O Minotauro”.

JU – A partir de quando a senhora passou a ter consciência da dimensão da obra de Lobato?

Joyce – Só depois que ele morreu. A gente admira o avô porque é avô, não porque é Monteiro Lobato. Ele era uma pessoa que não se abalava. Tinha uma teoria que dizia: “remédio pra tudo, é chapéu”. Quando tinha um problema, pegava o chapéu, ia pra rua e, depois que passava tudo, ele voltava. Era contador de casos. Convencia as pessoas a aplicar todos os tostões de suas vidas em um negócio. Nunca o vi se queixar de nada, apesar dos problemas. Chegava para minha avó e dizia: “Purezinha, vamos mudar para o Rio”. Ela perguntava: “E a mobília?”. E ele respondia: “Leilão, Purezinha, leilão”. Quem salvou o arquivo pessoal dele foi minha avó. Então, era isso: ele era meu avô, um aventureiro, divertido. E quando você está numa família onde as pessoas fazem coisas diferentes, você aceita. E era meu ideal ser como meu avô, como meu pai. Exceto escrever. Peguei ojeriza, porque eu tinha que escrever melhor que os outros e isso é muito chato. Eu era a primeira da classe, mas era uma coisa horrível. Se eu voltasse (no tempo), queria ser a última.

JU – E o relacionamento entre os Lobato hoje, como é?

Joyce – Não tenho irmãos. Tenho um primo-irmão, Rodrigo, que tinha 4 anos quando o seu pai, Edgar, um dos filhos de Lobato, morreu. Minha avó foi morar com esse filho doente, perto de Taubaté. Meus avós tiveram quatro filhos. A mais velha era minha mãe, a que mais durou. Depois veio o Edgar, Guilherme (que faleceu aos 24 anos) e Ruth (que não se casou e morreu em 72, aos 54 anos). A morte prematura dos dois filhos abalou a vida de Monteiro Lobato e de Dona Purezinha. Tenho uma filha que mora dos Estados Unidos. Tenho um neto, deficiente físico, que mora com o primeiro marido da minha filha e passa os finais de semana conosco. Eu faço o papel de mãe. Minha filha foi refazer a vida dela, casou-se de novo, trabalha, mas filhos ela não teve mais. Agora já está com 42 anos.

JU – A senhora sente falta de crianças correndo pela casa?

Joyce – Claro que sim, muita falta. Mas, se não tem, vou fazer o quê? Me dedico a meu netinho, que é uma flor. Ele foi levado a todos os hospitais, inclusive ao mais famoso dos EUA (o John Hopkin), em Baltimore, e não conseguiram descobrir porque é deficiente físico. A única coisa que funciona é a cabeça dele – e até hoje não cheguei a uma conclusão se isto é bom ou ruim. Deve ser horrível entender tudo e não conseguir fazer nada. Ele não fala. Se expressa com os olhos, criou uma linguagem que a gente entende. Está com 11 anos, namora, gosta de loiras (ri). E entende de cores, números. O sorriso dele é a coisa mais gratificante que existe pra mim. Ilumina. As pessoas que convivem com ele ficam apaixonadas.

JU – Qual a opinião da senhora sobre a nova versão do “Sítio do Picapau Amarelo”?

Joyce – Gosto. Não sou saudosista. A partir de 1967, Jorge passou a cuidar do arquivo pessoal de Lobato e, em 76, assinou o primeiro contrato com a Globo em torno do “Sítio”. O grande herdeiro é o meu marido, porque ele segurou tudo.

Jorge – As principais fontes de recursos dos herdeiros, hoje, são os direitos autorais dos livros e do licenciamento, que só foi possível por estar atrelado a um veículo como a televisão. Chegamos a ter 10, 11 licenciados sem a tevê. Com a Globo, nossa agente exclusiva, temos mais de 30. Agora são os fabricantes que procuram a Globo para pedir licenciamento. Quanto ao “Sítio”, eu acho magnífico o que estão fazendo. Ao contrário de algumas pessoas, que dizem ser absurdo a Dona Benta na Internet, eu acho perfeitamente normal, porque se Lobato fosse vivo estaria fazendo isso. Em 1920, ele falava num livro sobre um aparelho que existirá no mundo, chamado “porviroscópio”, por onde se vê o que está por vir. Ele estava sempre um passo à frente, seja no campo técnico ou artístico. Foi um dos mais competentes críticos de arte e era novidadeiro, progressista. E o novo “Sítio” está dentro do que a gente pensa que seja a cabeça de Lobato. Se você ligar para a minha casa entre 11h30 e meio-dia, a secretária eletrônica vai dizer: “No momento não posso atender, estou assistindo ao Sítio do Picapau Amarelo. Favor ligar mais tarde”.

JU – O que a senhora lê atualmente?

Joyce – Leio o que gosto. Mais literatura estrangeira. Mitologia, história. Li o “Harry Potter”, para ver o que as crianças estão lendo. E cheguei à conclusão de que tudo o que eu queria fazer quando criança está ali. Gostei porque o livro trabalha com a imaginação. A diferença em relação aos livros infantis de Lobato é que ele, além de provocar a imaginação, ensinava alguma coisa. “Harry Potter” não ensina nada, só a fazer aquilo que não se deve. Mas criança gosta.

JU – Qual a opinião da senhora sobre as crianças de hoje?
Joyce – Me recuso a dar essa opinião, porque não as entendo. Até os 4 anos, tudo bem; mas aos 10, hoje, elas já são adolescentes.

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