A negociação e a garimpagem do TESOURO
No contrato com o Cedae, familiares pedem organização
dos documentos pessoais de Lobato em cinco anos

TATIANA FÁVARO

Foram quase dois anos de negociação entre Unicamp e os familiares de Monteiro Lobato. Tempo curto para a doação – e não comercialização – de um acervo tão rico e importante para a história da literatura brasileira, ao Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio”, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). “Quando a família manifestou o interesse em doar o material para a Universidade, quase caímos de costas”, lembra Flávia Carneiro Leão, supervisora do Cedae.

Por enquanto, é um acordo de comodato, com promessa de doação. Uma cláusula do contrato determina que, se em cinco anos os documentos não estiverem organizados, os familiares terão autorização para retomá-los. “Isso não vai acontecer. Não só porque já estamos trabalhando com o acervo, mas também porque apresentamos um projeto à Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), que foi aprovado, solicitando recursos para a organização desse tesouro. A partir deste ano teremos apoio para cuidar do material”, explica Flávia.

Igualmente com dinheiro da Fapesp, foram compradas, em 1999, muitas das primeiras edições das obras de Lobato. A chamada Coleção Biblioteca Lobatiana é composta por obras do autor e referentes a ele, traduções de livros feitas por ele e de autores como Rudyard Kipling, Grimm, Andersen, Jack London, além de correspondências, aquarelas, revistas, adaptações de sua obra, almanaques e folhetos.

A pesquisadora Cilza Bignotto, utilizando verba de reserva técnica disponibilizada pela Fapesp, também adquiriu raridades encontradas nas mãos de um vendedor ambulante, na cidade de Santos (veja matéria na página 4). Cilza teve a sorte de descobrir a mina quando concluía seu mestrado, sob orientação da professora Marisa Lajolo, conhecida nos corredores do IEL como imbatível “lobatóloga”.

Foi na mostra organizada para anunciar a chegada desta coleção encontrada na Baixa Santista, que a neta do escritor, Joyce Campos, e seu marido Jerzy Kornbluh, demonstraram interesse em doar o acervo guardado na residência do casal, no Jardim Paulistano, em São Paulo.
Segundo Joyce, caso o acordo seja cumprido, o restante da herança deixada por Lobato, que ficou nesta casa da Capital, também será doado à Unicamp. O que inclui, além de algumas fotos, aquarelas e livros que não chegaram ao Cedae na primeira remessa, a mobília da Fazenda Buquira, propriedade próxima a Taubaté, que Lobato herdou em 1911 com a morte de seu avô, José Francisco Monteiro, o Visconde de Tremembé.

Riqueza – Decidida a doação, deu-se início ao que pode ser chamado de garimpo. A supervisora do Cedae, Flávia Carneiro Leão, passou a freqüentar a residência de Joyce e Jerzy para preparar a transferência do acervo para a Universidade.

Separar, acondicionar, listar e organizar são verbos que Flávia conjugou inin-terruptamente, por quase dois meses a fio. “Esse é um momento importante do trabalho, o da transferência dos documentos, o de como você encontra o acervo, observando quais documentos estão juntos ou separados. Parece simples, mas exige cuidado extremo, pois é nesta fase que informações podem ser pedidas”, explica.

A mesma surpresa que tomou conta de Flávia durante o contato com o acervo vai se transferir aos visitantes do Cedae. “É um tesouro incrível. Meu conhecimento sobre Lobato era o mesmo da maioria das pessoas: vinha de leituras de criança, do Sítio do Picapau Amarelo, do que se sabe sobre a vida dele quando se estuda literatura na escola”, recorda a supervisora.

A multiplicidade admirável de uma personalidade extremamente ativa do Lobato político, editor, pintor, desenhista, tradutor, fotógrafo, documentalista, progressista, encantou Flávia Leão. Entre os documentos há registros do menino José Renato Monteiro Lobato, nascido em 18 de abril de 1882, em Taubaté. Juca, como era tratado mesmo depois de mudar seu nome para José Bento, em cada pequena obra já mostrava seu potencial. Ele foi para a Faculdade de Direito em 1900. Ali começou a desempenhar sua história política e literária, liderando grupos como o Arcádia Acadêmica e O Cenáculo, até tornar-se figura inesquecível no País.

-------------------------------------

A incorporação

Na foto à esquerda, cerimônia realizada em 5 de dezembro último, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), quando o Centro de Documentação “Alexandre Eulálio” (Cedae) passou a contar com o maior acervo lobatiano do Brasil. Presentes, da esquerda para a direita: professora Marisa Lajolo, vice-reitor Fernando Galembeck, bibliófilo José Mindlin, reitor Hermano Tavares, diretor do IEL Luiz Carlos Dantas, Jerzy Kornbluh (marido de Joyce Campos, neta do escritor) e professor Paulo Sérgio Vasconcelos. Na foto abaixo, carta de amor de Lobato a Purezinha, escrita em papel de embrulho na solitária, durante o Estado Novo.

-------------------------------------

‘Matado’ por Mário de Andrade

De espírito arrojado e olhar atento às oportunidades, Monteiro Lobato munia-se sempre da ironia. Quando foi nomeado adido comercial brasileiro em Nova York, para onde se mudou em 1927, continuou mantendo contato com os escritores Oswald e Mário de Andrade. Com Oswald, preservou uma relação cordial, que jogou por terra a insinuação de rixa entre os modernistas. Quanto a Mário, não se pode dizer o mesmo.

Naquele ano de 27, com a saída do país de Lobato, Mário de Andrade mandou publicar uma nota de óbito com o nome do rival, em um jornal brasileiro. Dos EUA, então em 1930, Lobato mandou carta a Mário, oferecendo-lhe a chance de publicar “Macunaíma” fora das terras brasileiras. Sarcástico, escreveu que o colega modernista não deveria se assustar com a carta “vinda d’além túmulo”:

“(...) Há de tudo na vida, até mortos que escrevem cartas aos matadores. O que me traz é um livro seu, Macunaíma. Tenho cá um editor que deseja conhecê-lo, com palpite de que a coisa é editável em inglês (...). Se achar que um morto pode representar um vivíssimo, mande também a autorização para eu tratar com o homem. É incrível como dá voltas o mundo! Vou eu ajudar Mário a publicar-se neste país e ajudar na produção. Vou sair da cova só pra isso. Depois me recolherei de novo, porque não existir é a delícia das delícias, meu caro Mário. Hurry up. Manda logo dois exemplares. Depressa. De seu matado, Monteiro Lobato”.

-------------------------------------

Algumas pérolas do acervo de Lobato

- Convite de casamento de Monteiro Lobato com Maria Pureza da Natividade, em 28 de março de 1906.
oCartas de amor trocadas com Purezinha, como ele chamava a mulher.

- Carta de Oswald de Andrade, mostrando a proximidade entre ele e Lobato.

- Cartas de escritores que tiveram obras editadas por Lobato, como a de Chrysanthémi, feminista da década de 20.

- Cartas de Érico Veríssimo, admirador de Lobato.

- Cartas de Belmont, ilustrador de grande parte das obras do escritor.

- Aquarelas, nanquins, desenhos.
- Fotos de Purezinha.
- Edição de “O Minotauro” corrigida a lápis pelo escritor (há páginas inteiras canceladas por ele e, na capa, uma pequena indicação: “revisto por Monteiro Lobato”).

- Originais de contos sobre Pedrinho.

- Cartas com ilustrações (Lobato sempre fazia para Purezinha um desenho do local onde se encontrava).

- Livros da biblioteca pessoal, obras com dedicatórias, como a de Olavo Bilac.

- Foto da festa de formatura da neta Joyce Campos, em São Paulo, na qual foi encenado o “Sítio do Pica Amarelo”, em 1940.

- O primeiro desenho do Saci, feito por Lobato.

- Fotos da campanha do petróleo.

- Reproduções de ilustrações em que são retratados o Visconde de Tremembé, avô de Lobato, e Maria Belmira de França, a avó viscondessa.

- Desenho feito por Lobato ainda menino, com lápis de cor.

- Foto de um ex-escravo da Fazenda Buquira, herdada em 1911 por Lobato, depois da morte do Visconde de Tremembé.

- Pintura reproduzindo a filha Marta ainda criança.

- Carta escrita a Purezinha na solitária, em papel de pão, durante o Estado Novo.

- Correspondências trocadas com Mário de Andrade.

- A biblioteca do escritor.

-------------------------------------------

Veja como é feito o trabalho no Cedae