Exposição "Eustáquio Gomes" abre com cartas inéditas

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Exposição fica até 31 de agosto
Exposição pode ser vista até 31 de agosto

Convidado para apresentar um perfil do amigo, o jornalista Eustáquio Gomes, Roberto Goto preparou um texto riquíssimo para falar do companheiro de redação e de ações culturais em Campinas. "Estou entre os que tiveram o privilégio de conhecer e conviver com Eustáquio Gomes, mas devo admitir e sustentar que esse privilégio me cabe num grau mais elevado que o da maioria", começou a descrever no auditório do Centro de Ciências Letras e Artes (CCLA), na noite de quarta-feira (16). Goto participou da abertura da exposição "Eustáquio Gomes - Cronista, Jornalista e Escritor" e fez parte de uma mesa com os também jornalistas Sérgio Castanho e Gustavo Mazzola. Os três trabalharam com o jornalista falecido em 2014 e que comandou a comunicação da Unicamp por quase três décadas. A exposição organizada por João Antonio Buhrer, que conheceu Eustáquio quando foi caixa do Banespa na Unicamp e o atendia, conta com os 16 livros de Gomes, as mais de 800 crônicas publicadas no jornal Correio Popular e outros trabalhos com participação de Gomes. Pode ser visitada até o fim de agosto.

"Nossas existências se cruzaram em plena juventude. Era o segundo semestre de 1972 (ele com 20 e eu com 18 anos). O lugar: a redação do Correio Popular, no quinto andar do prédio da rua Conceição, 124", continuou Goto. Em sete páginas, detalhou a criação do "Projeto de Grupo Literário, discriminando objetivos, campos de ação e publicação". Há trechos de cartas inéditos trocados entre os dois jornalistas (hoje Goto é professor na Faculdade de Educação da Unicamp), embora morassem em bairros próximos (Eustáquio no Bonfim e Goto no Castelo). Uma das cartas que Goto recebeu, datada de 23 de fevereiro de 1977, dizia: "Roberto. Desalmado! Vou aí, te exponho um plano luxuoso, renovo de um golpe as esperanças da literatura nacional, liquido com Drummond e os outros, e você nada, nem um pio, um vislumbre sequer de carta. Mesmo admitindo que hoje chegue algo, é masoquismo comprovado o não me ter escrito logo após aquele desastre de encontro, de onde saí com o gosto acre de todas as imbecilidades ditas".
 

Roberto Goto: troca de cartas com Eustáquio
Roberto Goto: troca de cartas com Eustáquio

Não é a única carta. Tem um bilhete anterior, de setembro de 1976. "Goto! Lembra que falei a V. de umas cartas que pretendia te escrever, iniciando um diálogo que ficasse, sobretudo, como uma espécie de documento nosso? Taí o resultado dessa promessa. Prosseguimos? Eust." O bilhete veio acompanhado de duas cartas, uma datada de 4 de julho de 1975, outra de 3 de março de 1976. Goto citou no CCLA os dois parágrafos iniciais da primeira. "Caro Roberto. Na impossibilidade de nos falarmos com a frequência que ambos desejamos, e para evitar que a exposição mútua de nossas ideias se fragmente contra a barreira da falta de tempo, sugiro que iniciemos esta correspondência. Veja a que ponto chegamos. Residindo num mesmo bairro e obrigados a nos falar por escrito! Por telefone, nunca. De todo modo, não me parece um sistema indesejável e não é de forma alguma um processo doloroso. Ao contrário, creio que nos sentiremos extremamente à vontade, livres e vagarosos para dizer as coisas, nem sempre exprimíveis de forma conveniente quando se tem a expectativa do interlocutor a um palmo da nossa confusão mental. Por outro lado, como estou certo de que nosso nome fará sentido, um dia, para os jovens que buscarão calor nos escritos íntimos dos que não tinham sentido existencial, alegro-me por ser esta uma forma possível de documentar-nos e àquilo que julgamos pensar."

Segundo Goto, a correspondência "durou até o começo da década de 1980, quando Eustáquio, então morando e trabalhando no Rio de Janeiro, voltou a Campinas, primeiro no Correio Popular, depois passando brevemente pelo Jornal de Hoje e finalmente estabilizando-se, à custa de muito trabalho e de tempo tirado à família e à literatura, como assessor de imprensa da Unicamp". Melhor ler toda a apresentação de Goto e se deliciar com cada detalhe descrito. O texto a seguir foi encaminhado por Roberto Goto ao Portal Unicamp. Leia!

Mazzola, Goto e Castanho falam sobre Eustáquio
Mazzola, Goto e Castanho falam sobre Eustáquio. Depoimentos foram coordenados por Luís Carlos Ribeiro Borges



Abertura
Além dos relatos de colegas de trabalho, a  abertura da exposição teve uma apresentação formal de Buhrer, Luís Carlos Ribeiro Borges e Alcides Acosta, este presidente do CCLA. Acosta abriu dizendo que Eustáquio foi seu aluno no curso de jornalismo da PUC-Campinas, que começou a funcionar no bairro Swift, no antigo Seminário, em 1972. Da mesma turma são as jornalistas Ilze Scamparini e Angela Canguçú, conforme Alcides. Um filme sobre Eustáquio, feito pela TV Unicamp há dois anos, com 37 minutos, foi apresentado ao final da cerimônia. (Assista ao final).

Pausa para o Almoço
Clayton Levy

Na hora do almoço, ele passa na minha sala e seguimos de carro para uma cantina próxima à Universidade. Durante a refeição, ele conta os sonhos da noite anterior. Impressiona-me sua facilidade para achar o significado de cada vivência onírica. Aprendeu isso com Jung, de quem se tornou admirador. Também acostumou-se a anotar os sonhos assim que abre os olhos, quando as imagens ainda estão frescas na memória. Até pouco tempo, vinha colhendo material para um novo livro cujo título, a princípio, seria Sonhos Constelados.

Entre uma garfada e outra, a conversa muda de rumo. Agora falamos sobre a morte. Não de um jeito tétrico, mas com a naturalidade que o assunto pede. Uma de suas preocupações é saber se poderá continuar escrevendo. Outra é saber se no além haverá bibliotecas, pois sem bibliotecas nem o paraíso valeria a pena. Tudo isso porque, entre outras coisas, mesmo depois de morto, não pretende interromper o hábito de escrever diários.

Essa coisa de diários vem de longe. É um jeito de “filtrar os venenos” do cotidiano. Boa parte dos livros que publicou, 16 ao todo, nasceram desses manuscritos íntimos. Até pouco tempo ainda registrava tudo a mão. Um dia abriu o armário e mostrou-me mais de 20 cadernos recheados de anotações. O segredo está em não banalizar o dia a dia. Miudezas opacas ganham brilho após ser banhadas na riqueza intelectual de seus neurônios. Personagens apagados emergem do anonimato de um jeito que jamais foram vistos.

A conversa dá mais algumas voltas, e ele agora fala do passado. Atravessou parte da infância num seminário, mas desistiu da vida eclesiástica a tempo de tornar-se escritor. No início, temeu que Deus punisse a falta mandando-o para o inferno. Mas depois, ao saber que o inferno estava cheio de escritores, passou a olhar o problema com outros olhos. Afinal, se já estavam aceitando essa gente por lá, não devia ser tão mal assim. Conta-me essas histórias e ri do tom caricato com que descreve a si mesmo.

Depois do almoço, caminhamos até o sebo que fica ali perto. Ele adora sebos. Conhece todos os que há na cidade, bem como os inquilinos ilustres que habitam cada uma de suas prateleiras. Com paciência e generosidade, apresenta-me um a um: Kafka, Camus, Mann... Pode ter desistido do seminário, mas mantém uma relação religiosa com a literatura. É devoto de Machado de Assis.

Corre o dedo pelas lombadas e puxa um volume: O eu profundo e outros eus, de Fernando Pessoa. Abre uma página ao acaso e começa a ler em voz alta: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe, todos eles príncipes, na vida... Quem me dera ouvir de alguém a voz humana...” Dois estudantes param de conversar e olham com o rabo do olho. A gerente estica o pescoço para certificar-se do que está acontecendo.

Ele não dá bola e segue adiante: “...Quem me dera ouvir de alguém a voz humana, que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; que contasse, não uma violência, mas uma covardia! Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos...”

A essa altura, já há uma rodinha de curiosos ao nosso redor. Eu, que não sou escritor nem sei declamar, sinto que estou sobrando na cena. Tento esgueirar-me, sair de fininho, mas estou encurralado por pilhas de livros. A plateia entra numa expectativa muda, esperando o próximo ato. Ele se empolga:

“... Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, podem ter sido traídos, mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza.”

Um dos estudantes começa a bater palmas. Os demais vão atrás. Aliviado, porém orgulhoso, sigo a plateia. Ele ajeita os óculos, fecha o volume e devolve-o à prateleira. Depois, dá uma risadinha sardônica e começamos a sair.  Lá fora, o ruído de um monomotor chama nossa atenção. Como num sonho, ganha altura, faz uma curva e some atrás das nuvens.
 
Clayton Levy é jornalista da SEC-Unicamp

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Livros publicados por Eustáquio
Alcides Acosta: professor na Puc-Campinas e presidente do CCLA
Livro em russo e uma das crônicas na Metrópole
Crônicas
Em crônica, Eustáquio recorda o seu pai
João Antonio Buhrer: idealizador da exposição
Publicações do tempo de Bosch
João Antonio Buhrer, à direita, detalha a concepção da exposição
Imagem de capa
Eustáquio Gomes, em desenho de Bira Dantas, entre flores amarelas

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