Para especialistas, medicina deve olhar
a ética antes dos avanços técnico-científicos

18/11/2015 - 14:44

“Retirar o sujeito da ideia de patologia, de doente, lidar com ele em outro lugar social, pela música, cultura, educação, pensando nos direitos humanos. Como parte de inclusão, reconhecer pessoas e suas formas de lidar com a vida, permitindo a emancipação e dando autonomia aos indivíduos”. A fala de Paulo Amarante, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), abriu os debates do segundo dia do II Fórum Construindo Vidas Despatologizadas. O evento reuniu especialistas e estudiosos, nos dias 16 e 17 de novembro, no Centro de Convenções da Unicamp.

A produção cientifica deve se posicionar de forma a desenvolver o pluralismo, a tolerância, o exercício da liberdade e escolhas éticas. Entretanto, a vida cotidiana nos empurra a estabelecer normativas, isso nos “coisifica”. Daí surge a violência, situação em que a pessoa humana é reduzida à condição de coisa, afirmou Carla Biancha Angelucci, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Todo progresso traz em si aspectos de regressão, expresso na contradição entre o avanço do conhecimento científico e a ressignificação de valores morais. Segundo Angelucci, o limite da questão deve ser estabelecido pela ética e não mais pelo desenvolvimento técnico-científico.

“A ética diz respeito à dimensão da relação humana, ser ético é ter comigo mesmo um compromisso de não usar um recurso que eu tenho para prejudicar o outro”, definiu Raul Gorayeb, psiquiatra e professor da Unifesp.  Apesar dos avanços técnicos, a medicina falha em se colocar como ciência positivista, que produz verdades absolutas antes de pesquisar. Os diagnósticos, que podem ser ferramentas úteis, são distorcidos de sua forma prática e não levam consideração as peculiaridades da manifestação da doença. O resultado é a falta de olhar para ser humano, e o aumento de diagnósticos rápidos, feitos a partir de um questionário e que podem ser encontrados até na internet, criticou Gorayeb.

“Precisamos pensar o que é ético e o que não é ético frente às vidas mais vulneráveis”, apontou Amara Moira, ativista do transfeminismo, frente ao debate sobre a exclusão social imposta às travestis, para as quais, socialmente, só é deixada a possibilidade da prostituição em péssimas condições de trabalho. Além disso, desde criança, a pessoa que não se reconhece no seu sexo biológico, aprende a ver na genitália a impossibilidade de construção do que ela é. “O ódio com que esses indivíduos veem no próprio corpo foi criado socialmente. Despatologização é deixar de criar nas pessoas esse sentimento, para que elas possam viver tranquilas com seus corpos e existência”.

Ao excluir a subjetividade do ser humano, as práticas médicas se tornam mutiladoras. “Minha aposta não é na medicalização de nossas subjetividades, mas no acolhimento delas”, afirmou Benjamin Braga, pesquisador e ativista do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (IBRAT). Segundo Braga, a exclusão do transexual começa a partir dos termos médicos. “Eu não faço terapia hormonal, faço reposição hormonal, assim como mulheres cis fazem reposição hormonal. Porque é que homens trans fazem hormonoterapia? Novamente, para nos colocar em outro lugar.”

O II Fórum Construindo Vidas Despatologizadas é uma realização do [re]pense, novo grupo de estudos do Fórum Pensamento Estratégico (Penses) que se dedica a organizar eventos  e produzir reflexões e discussões sobre patologização, intolerância e discriminação. O evento é organizado também pelo Despatologiza - Movimento pela Despatologização da Vida. O Penses é um espaço acadêmico, vinculado ao Gabinete do Reitor, responsável por promover discussões que contribuam para a formulação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento da sociedade em todos seus aspectos.

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