O mutualismo e a organização dos trabalhadores no Brasil

Houve um tempo em que a historiografia sobre os trabalhadores brasileiros afirmava com veemência que as experiências mutualistas foram a “pré-história” da classe operária. Essa visão – elaborada por historiadores e sociólogos, mas também por memorialistas militantes – se alterou ao passo que os historiadores, sobretudo aqueles filiados à história social, passavam, no exercício de seu ofício, a utilizar a empiria de forma mais metódica e densa.  A tese da “pré-história” não resistiu às pesquisas empíricas com resultados ancorados em ampla documentação. Organizar e proteger é exemplo dessa história social que se consolidou na historiografia brasileira.

A percepção da fragilidade da tese “pré-histórica” é fruto de um movimento historiográfico mais amplo e crítico das interpretações guiadas por uma visão teleológica da história, visão predominante na produção acadêmica brasileira das décadas de 1960 e 1970 e muito influenciada pelo marxismo mais ortodoxo – que teve especialmente nos historiadores marxistas ingleses vinculados à New Left, como E. P. Thompson e Eric J. Hobsbawm, seus primeiros e principais críticos. Sem essa crítica, historiadores narravam uma história dos trabalhadores vinculada à história da grande indústria. As vivências associativas anteriores em irmandades católicas de gente leiga, corporações de ofício, cooperativas, caixas de beneficência e sociedades de auxílio mútuo não recebiam a devida importância como experiência associativa e, até então, quando citadas, a elas era reservado papel miúdo e vão.

Esse movimento de crítica historiográfica possibilitou as abordagens que compõem Organizar e proteger e que são a materialização do campo de estudos sobre o mutualismo, inserido no campo das pesquisas sobre as experiências associativas de trabalhadores. Igualmente, demonstram empiricamente que as experiências mutualistas foram um momento de bastante maturidade do associativismo de trabalhadores. O leitor vai encontrar nos nove capítulos estudos de experiências do Sul, do Sudeste e do Nordeste que analisam formas de solidariedade de classe que remontam aos tempos coloniais, passam pelo Império e pela República.

Organizar e proteger mostra que não se podem mais ignorar as experiências de associação em sociedades mutualistas e que tais análises são indispensáveis para a compreensão mais geral do fenômeno associativo no Brasil. Ademais, mostra que entender o mutualismo tem imprescindível função na reconstrução histórica do papel dos trabalhadores na conformação da luta por direitos sociais, na participação política e, ainda, na compreensão da cidadania no Brasil.

De um lado, os estudos presentes no livro oferecem interpretações que ligam o mutualismo às noções previdenciárias da proteção ao trabalho e de auxílio mútuo e, de outro, destacam os usos da lei, o caráter associativo, a conformação de identidades de classe e, especialmente, a cultura política de luta por direitos. São aspectos interpretativos de divergência de concepções historiográficas entre alguns dos autores dos capítulos. Essas especificidades interpretativas, que indicariam desacordo, nada obstante, não os opõem em grupos imiscíveis. O que se lê ao longo das páginas do livro é a convergência de argumentos com os quais se pode construir uma rica e detalhada compreensão do fenômeno mutualista no Brasil.

Cabe destacar as trajetórias de pesquisa dos organizadores da coletânea. Claudio Batalha tem longa carreira acadêmica dedicada à compreensão do associativismo dos trabalhadores brasileiros. Seus estudos sobre a cidade do Rio de Janeiro resultaram em artigos, capítulos e livros nos quais, de forma precursora, as experiências associativas e mutualistas ganharam importância e destaque. Editou, ainda em 1999, dossiê para Cadernos AEL (v. 6, n. 10/11) que reuniu artigos sobre o mutualismo e que estimulou diversas novas pesquisas. Marcelo Mac Cord não figura entre os autores daquele dossiê. À época, ainda dava os primeiros passos de sua densa e importante pesquisa sobre as sociedades de artífices recifenses da qual resultaram artigos e livros. Foi provavelmente leitor do dossiê, que, juntamente com outros trabalhos monográficos, ajudou a florescer o interesse na compreensão da experiência mutualista. Há um fio que une as duas trajetórias acadêmicas e que se materializa nesta obra.

Organizar e proteger é, nesse aspecto, mais que um livro que reúne boas pesquisas. É a solidificação de uma temática dentro da história das experiências associativas de trabalhadores e, mais que isso, demonstra que o porvir trará muitas pesquisas com temática correlata. Organizar e proteger nasce como uma obra indispensável aos estudiosos do associativismo de trabalhadores no Brasil.

Deivison Amaral é doutor em História pela Unicamp. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado no CPDOC/FGV sobre a relação entre a religião e as experiências associativas de trabalhadores brasileiros.

 

O mutualismo e a organização dos trabalhadores no BrasilSERVIÇO

Título: Organizar e proteger - Trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX)

Organização: Marcelo Mac Cord e Claudio H. M. Batalha

Editora da Unicamp

Páginas: 280

Área de interesse: História

Preço: R$ 48,00

http://www.editoraunicamp.com.br

 

Imagem de capa JU-online
O mutualismo e a organização dos trabalhadores no Brasil

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