NOTÍCIAS

Demógrafa tipifica e vê feminicídio como fenômeno epidemiológico

Estudo inédito no país confirma que maior número de mortes ocorre no ambiente doméstico e abrange vítimas em idade reprodutiva

Edição de imagem

Metade das mulheres mortas por agressões no Brasil, entre 2009 e 2014, foi assassinada dentro da própria casa, conforme dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do Ministério da Saúde. O número inclui crianças e adolescentes. Foram mais de 2,7 mil mortes por violência provocada no período, sendo que em mais de 40% dos casos os autores são familiares, cônjuges ou ex-cônjuges. Os “casos”, entretanto, têm um nome: feminicídio. “Os óbitos cujas relações são familiares e conjugais devem ser interpretados como feminicídio doméstico, dentro dos elementos que caracterizam os feminicídios”, afirma a demógrafa Jackeline Aparecida Ferreira Romio em sua tese de doutorado “Feminicídios no Brasil, uma proposta de análise com dados do setor de saúde”. A tese foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Demografia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e orientada pela docente Tirza Aidar.

O trabalho é inédito na tentativa de realizar um diagnóstico dos feminicídios no Brasil, a partir de três categorias identificáveis pelos dados do setor da saúde. A pesquisadora identificou o que poderia ser considerado morte por violência de gênero contra mulher, desenvolvendo uma nova tipologia dos feminicídios, divididos entre feminicídio doméstico (no espaço da residência); reprodutivo (mortes por aborto); e sexual (quando a morte decorre da violência sexual). Ela também separou as faixas de idade das mulheres: de 0 a 14 anos, de 15 a 49 anos e 50 anos e mais.

Jackeline tabulou os dados das Fichas de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou outras Violências do SINAN e informações de mais duas bases da saúde: as Declarações de Óbito do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), e as Atas de Internações Hospitalares, do Sistema de Informações Hospitalares (SIH). Todas as bases são geridas pelo Ministério da Saúde.

A escolha por dados da saúde teve o objetivo de tratar a questão como epidemiológica, além de evitar um viés por vezes “sexista” dos documentos jurídicos, conforme a autora descreve no trabalho. Também pesou a questão de os dados do Ministério da Saúde serem mais acessíveis e corresponderem ao tipo de documentos tradicionalmente utilizados para a análise demográfica.

Foto: Divulgação
A pesquisadora Jackeline Aparecida Ferreira Romio, autora da tese de doutorado: dados do setor da saúde fundamentaram trabalho

 “Minha ideia era desenvolver um leque de estatísticas confiáveis que demonstrasse, ao menos, as dimensões mínimas da vulnerabilidade da mulher em relação aos feminicídios. O perfil de vitimização é fundamental para que se possa agir sobre o problema”, destaca.

Mas não foi uma tarefa simples trabalhar com as bases da saúde porque, embora os feminicídios já sejam reconhecidos pela legislação brasileira como crime hediondo, inclusive, há muitas vezes incompatibilidade entre as bases de dados que, de acordo com Jackeline, não foram elaboradas para capturar a mortalidade feminina por violência de gênero. Também há uma lacuna em relação à identificação de mulheres transgêneras.

O maior número de feminicídios domésticos encontrado por Jackeline foi na faixa de 15 a 49 anos, que coincide com a idade reprodutiva. De acordo com a autora, os dados do SIM revelaram que de 2009 a 2014 foram mortas 5.598 mulheres nesta faixa etária, do total de 7.707 feminicídios, o que representa mais de 70% de todos os feminicídios domésticos registrados pelo SIM no período estudado. A mesma base demonstrou que as mortes de mulheres de 50 anos e mais se concentraram nos domicílios. “No caso das mulheres adultas, mais velhas e idosas, as agressões letais se dão mais concentradamente no domicílio”, escreve a autora.

Quando a violência sexual é a causa da morte, Jackeline considera que houve feminicídio sexual. Nesse caso os dados do SINAM trazem números maiores devido à especialidade da base em caracterizar a violência doméstica e sexual. A porcentagem de vítimas que são crianças e adolescentes, de 0 a 14 anos, foi de 40% dos casos. Comparando-se com a porcentagem das mulheres em idade reprodutiva, que foi de 50%, pode-se ter a dimensão do problema. “As crianças e adolescentes de 0 a 14 anos demonstram serem afetadas em maior número pelo feminicídio sexual diante das jovens e adultas de 15 a 49 anos, que são as maiores vítimas dos feminicídios domésticos”, salienta Jackeline.

Os feminicídios sexuais também têm relação com cor, raça ou etnia. Segundo o estudo, mulheres pretas, pardas e indígenas correspondem a 43% dos casos de mortes por agressão sexual no período. Também chama a atenção o dado de que 31% das mulheres mortas por violência sexual, de acordo com os números do SINAN tabulados na pesquisa, tinham como grau escolar apenas o ensino fundamental.

Para tipificar o feminicídio reprodutivo, que engloba as mortes por aborto, Jackeline avaliou as informações de 1.134 mortes, de acordo com o SIH, e 832, segundo o SIM. Ambas as fontes mostraram o número baixíssimo de mortes por aborto realizado por razões médicas, o que pode indicar que a interrupção da gravidez quando realizada dentro dos procedimentos médicos, praticamente não causa mortes. “A falta de garantias ao aborto legal acaba se configurando em um fator indireto que colabora para o aumento dos feminicídios reprodutivos no país”, observa a autora.

Em relação à ocorrência do feminicídio nas diferentes regiões do País a pesquisadora afirma que as agressões domésticas são um fenômeno que atinge todo o território nacional. O feminicídio reprodutivo foi registrado em maior número em cidades específicas como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Manaus. O feminicídio sexual aparece com mais frequência nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro, além de algumas regiões de fronteiras.

A comparação dos dados sobre feminicídio com as mortes violentas masculinas costuma ser feita de maneira equivocada, considera Jackeline. “É comumente apresentada a afirmativa de que mulheres morrem menos que homens por violências. Este argumento gera invisibilidade das mortes femininas por violência”, constata a autora.

A pesquisadora ressalta que o trabalho da tese não se contrapõe aos estudos da mortalidade masculina por violência, “mas busca considerar esta causa de morte como um desafio a ser superado também para as mulheres se nos guiamos por objetivos que não somente o de estabelecer o foco na maior incidência, transferindo o olhar para as singularidades e tendências, e aplicando denominadores endógenos a cada grupo populacional estudado”.

Segundo a pesquisadora, a mortalidade masculina por causas externas explode na faixa dos 15 aos 49 anos, por isso há mais similaridade entre as mortes de homens e mulheres de menos de 14 anos e mais de 50 anos. “Ao estudar mortalidade por sexo e gênero é fundamental entender a relevância de cada causa dentro do total da própria mortalidade feminina e, após isso, comparar a masculina, para buscar a diferença de sexo com olhar para as desigualdades de gênero”.

O trabalho também procura lançar um olhar feminista para os dados da saúde. “Percorri toda a teoria feminista para poder observar a mortalidade feminina em relação à opressão de gênero. A sociedade não pode ver todas as violências que a mulher sofre, mas uma parte dessas violências acaba em óbitos”.

De acordo com a pesquisadora, os números de homicídios contra as mulheres são recorrentes. Houve um salto nos registros logo depois da promulgação da Lei Maria da Penha, em 2007, mas hoje os índices permanecem estáveis. Em contrapartida, a mortalidade de mulheres negras e mulheres indígenas têm aumentado.

Jackeline fez um mapeamento de variáveis que sugerem as chances de que a morte de uma mulher seja por feminicídio. A tese apontou que, quando a violência é reincidente, a chance é cinco vezes maior para feminicídio doméstico, quatro vezes maior para o caso de autoria masculina e duas vezes maior se a situação conjugal é alguma vez unida. Mulheres que moram em municípios de fronteira também têm as chances ampliadas em uma vez e meia, e mulheres negras ou indígenas têm a chance aumentada uma vez.

Para o feminicídio sexual, se a variável é autoria masculina a chance aumenta três vezes. Autor alcoolizado aumenta uma vez, bem como a vitimização é maior caso a mulher seja negra ou indígena.

Na tese a autora faz recomendações de melhorias nos registros das agressões e mortes violentas de mulheres para que os dados exponham o problema com mais clareza a fim de contemplar as políticas públicas. Jackeline recomenda que a coleta de dados do SINAN seja aprimorada, sobretudo em relação aos quesitos raça/cor e tipo de relação com autor, além de uma ampliação da cobertura do registro no território nacional. Ela também menciona a necessidade de integração dos sistemas de saúde com “atenção especial aos casos recorrentes de agressão, que elevam as chances de morte”.

 


Lei e história

- A lei nº 13.104, de 9 de março de 2015, alterou o Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. O agravamento da pena para homicídio doloso em homicídio qualificado eleva a condenação para até 30 anos de prisão.

- O art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, foi alterado para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.

- Conforme a tese, o conceito de feminicídio surge a partir de meados dos anos 1970, do movimento feminista, “como uma nova forma de nomear as mortes de mulheres por homicídio devido a sua condição social de mulher, e se opor a aparente neutralidade do termo homicídio, que designava as mortes por assassinato sem a observação sobre as diferenças de sexo e gênero nestas mortes”.

- O termo foi utilizado pela primeira vez durante o Primeiro Tribunal Internacional de Crimes contra as Mulheres, em Bruxelas, Bélgica, em 1976, sobre as mortes de mulheres nos Estados Unidos e no Líbano. A ativista feminista Diana Russell defendeu que as mortes “seriam consequência de ações misóginas e, como tal, deveriam ser apresentadas e julgadas como feminicídios (femicide)”.

-  17 países da América Latina já utilizam a terminologia dentro do código criminal como forma de agravante à figura penal dos homicídios, segundo a tese.

Imagem de capa JU-online
Manifestantes durante a “Caminhada das flores”, ocorrida em Brasília no ano passado | Foto: Wilson Dias - EBC

twitter_icofacebook_ico