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Os Direitos Humanos são um caso particular dos direitos da natureza

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Sabine Pompeia é professora adjunta na área de Cognição Humana no Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
 

 

 

Foto: Antonio ScarpinettiLuiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 2a edição, 2016. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br).

 

 

Artigo XXX: “Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos”

(Declaração Universal dos Direitos Humanos)

 

Os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada por 50 dos 58 estados que compunham em 1948 a ONU, retomam o espírito, e por vezes quase a letra, dos 17 artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pela Assembleia Nacional francesa em 1789.

O primeiro artigo da Declaração de 1789 – “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem se fundar senão na utilidade comum” – é retomado pelo primeiro artigo da Declaração de 1948: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Eles são dotados de razão e de consciência e devem agir uns para com os outros em um espírito de fraternidade”. O artigo 2 da Declaração de 1789 reza que: “O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do Homem. Esses direitos são a liberdade, a segurança e a resistência à opressão”. O artigo 3 da Declaração de 1948 retoma a mesma ideia ao afirmar que: “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa”, afirmando mais à frente o direito à associação política, sindical etc.

É claro que 1948 difere de 1789 ao menos em dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, como organismo inteiramente laico, a ONU não se coloca mais, como em 1789, “sob os auspícios do Ser supremo”. Em segundo lugar, a razão de ser mesma da ONU e de sua Declaração é a necessidade de se tornar, como afirma justamente seu título, “Universal”.  À sombra de duas catastróficas guerras mundiais motivadas pelo exacerbamento do sentimento nacional-imperialista, a ONU deve necessariamente almejar um estatuto supranacional, o que supõe subordinar a soberania nacional ao direito de ingerência internacional. É fato que também o século XVIII conheceu projetos filosóficos visando a criação de uma comunidade racional das nações. Os mais influentes são o “Projeto para tornar perpétua a paz na Europa” do Abade de Saint Pierre, nascido de sua experiência nas negociações da Paz de Utrecht em 1713 e, sobretudo, o texto-manifesto de Kant, “Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita” (1784), seguido por “Para uma paz perpétua” (1795 )[1]. Mas a Revolução de 1789 não podia obviamente dar ouvidos a esses textos inspiradores do direito à ingerência internacional no contexto da hostilidade militar das monarquias europeias. Tal é a razão manifesta pela qual a Declaração de 1789 afirmava em seu artigo 3 que “o princípio de toda Soberania reside essencialmente na Nação”.

Resguardadas essas duas diferenças, decorrentes de situações históricas muito distintas, ambas as Declarações são tributárias de uma idêntica concepção do fundamento filosófico dos direitos humanos. Este se enuncia já no artigo primeiro de 1948: os homens “são dotados de razão e de consciência”. Por sermos criaturas racionais e conscientes, atributos que a Declaração de 1948 não estende a outras espécies, temos direitos sobre entidades supostamente desprovidas desses dois atributos. Em outras palavras, temos o direito de dispor do sistema Terra, vale dizer, da biosfera, da hidrosfera, da atmosfera, da pedosfera, da criosfera e da litosfera, como um fim dispõe de seus meios. Ambas as Declarações pretendem exprimir solenemente “os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem” (1789). O homem usufrui de um direito “natural”, isto é, não contingente, mas inerente e constitutivo de sua condição. A própria natureza funda seu estatuto “sagrado” e, portanto, superior ao de outras espécies. Definido como direito natural em 1789, o confinamento da ideia de direito nos limites da espécie humana mantinha-se inalterado em 1948. E isso, creio, por três razões principais.

(1) A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi concebida e redigida por indivíduos como John Peter Humphrey, René Cassin e Stéphane Hessel, engajados, no âmbito da diplomacia do pós-guerra, em dar a ver ao mundo toda a extensão do horror a que conduzira a ideologia racial nazista: o extermínio de cerca de 11 milhões de pessoas nos campos de concentração [2]. O nazismo combinou ódio e planificação de Estado em sua obsessão pela eliminação dos “outros” humanos. Essa obsessão situava-se na continuidade do uso de pesticidas sobre insetos e plantas, base tecnológica para a fabricação sucessiva de armas químicas pelos beligerantes na I Grande Guerra já a partir de abril de 1915. O Zyklon A, um pesticida à base de cianureto, foi o precursor do Zyklon B, usado nas câmaras de gás dos campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau e Majdanek. Dos compostos de organofosforados, que agem sobre o sistema nervoso central das espécies “daninhas”, originaram-se armas químicas como o Tabun (1936), o Sarin (1938), o Soman (1944), desenvolvidas, ainda que não usadas, pelo exército alemão na Segunda Grande Guerra. Esses compostos e outras armas de destruição em massa possibilitaram às pulsões agressivas de nossa espécie uma escala jamais sonhada no passado em capacidade de genocídio. Nesse contexto de horror inaudito, a ideia de igualdade e fraternidade entre os homens tornava-se necessariamente o ponto não apenas central, mas exclusivo (e tacitamente excludente dos direitos de outras espécies), da Declaração Universal de 1948.

(2) A segunda razão do silêncio da Declaração de 1948 acerca do direito de outras espécies à vida e ao bem-estar é o fato de ser anterior a nosso saber atual sobre as capacidades emocionais e cognitivas de outras espécies. Já a partir dos anos 1950 [3], algumas pesquisas tendiam a mostrar habilidades insuspeitadas no uso e fabricação de instrumentos em primatas vivendo em liberdade. Começava aos poucos a ruir a presunção de que tais habilidades eram apanágio de nossa espécie. Em 1963 e 1964, os primeiros artigos de Jane Goodall sobre o comportamento dos chimpanzés [4] abalam de vez essa presunção, abrindo as portas para sucessivas descobertas não apenas sobre o engenho e as impressionantes capacidades de autêntica aprendizagem (algo diverso do condicionamento) e de raciocínio dedutivo, mas também sobre a autoconsciência, a individualidade e a complexidade emocional dos mamíferos, das aves e, mais recentemente, também de algumas espécies de peixes [5]. Em 2012, a “Declaração de Cambridge sobre a Consciência”, assinada por um proeminente grupo de neurocientistas especializados em cognição, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais, afirma:

“Evidências convergentes indicam que animais não humanos possuem substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência, além da capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso da evidência indica que humanos não são únicos em possuir os substratos neurológicos que geram consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos”

A distância que nos separa dos outros animais em termos intelectuais encurta-se dia a dia e a maior capacidade de simbolização e de pensamento abstrato de nossa espécie parece sempre mais ser de ordem quantitativa, não mais qualitativa. Não havia evidências dessa percepção em 1948, ao passo que tudo aponta hoje para a conclusão de que os outros animais compartilham conosco os atributos de “razão e consciência”, proclamados em 1789 e 1948 como próprios e constitutivos dos homens.

(3) A terceira razão do silêncio da Declaração de 1948 sobre o direito de outras espécies à vida e ao bem-estar é o fato de ser ela também anterior a um processo que viria a se acelerar exponencialmente a partir do terceiro quarto do século XX: os impactos do crescimento econômico e da globalização extrema do capitalismo sobre a biodiversidade. Em 1948 era nula a percepção de que essa expansão havia desencadeado o que veio a se chamar, desde ao menos Richard Leakey e Roger Lewin, a sexta extinção em massa [6]. Não surpreende, neste contexto, o choque produzido em 1962 pelo best-seller de Rachel Carson, Primavera silenciosa, ponto de partida da tomada de consciência dos processos em aceleração de defaunação e de aniquilação biológica. Hoje, a percepção de que a acumulação de capital funciona segundo uma lógica incompatível com a biodiversidade torna-se rapidamente consensual, ao menos entre os especialistas e o público cientificamente informado. Esse consenso era inconcebível, mesmo em forma embrionária, na nova ordem mundial nascente em 1945, sedenta de “milagres econômicos” e de otimismo hollywoodiano.

Quem é sujeito de direito?

Em seu famoso livro, Should Trees Have Standing? – Toward Legal Rights for Natural Objects, de 1974, Christopher D. Stone levanta o problema jurídico do direito da natureza a se tornar um sujeito de direito. Para ele, o objeto natural poderia “ter um valor e dignidades legalmente reconhecidos em si e não meramente como meio de nos beneficiar”. Desde então, cresce, ainda que demasiado lentamente, a convicção científica, moral, filosófica e política de que a ideia de direito deve ser estendida aos que não podem reivindicá-la: os nascituros, os animais sencientes e mesmo entidades naturais, como os rios e as florestas. Há pequenos progressos nessa direção. As legislações reconhecem e buscam diminuir o sofrimento infligido pelos humanos a outros animais, confinados em condições atrozes em granjas, fazendas (terrestres e aquáticas), matadouros e biotérios, verdadeiros campos de concentração e de extermínio. Graças a uma reivindicação dos Maori, a Nova Zelândia dotou há pouco o rio Whanganui do estatuto jurídico, e portanto o direito, de uma pessoa, com autoridade para mover processos por intermédio de seus guardiões. O mesmo ocorreu na Índia com o Ganges. Os artigos 71-74 da Constituição do Equador, de 2008, codificam os direitos inalienáveis dos ecossistemas a existir e a florescer, conferindo às pessoas a autoridade para petições de valor jurídico em nome desses ecossistemas [7]. De seu lado, a Bolívia levou à ONU a questão dos Direitos da Mãe Terra (Rights of Mother Earth) e esta foi incluída na pauta das discussões em 2009.

Não há mais sustentação científica, filosófica ou política para a arrogância pueril de que somos excepcionais na cadeia da vida, de que o homem é uma entidade “diferenciada” da natureza. Nossa capacidade de simbolização é muito maior que a de outras espécies, mas nossa concepção antropocêntrica de direito está transformando essa vantagem em desvantagem, está transformando essa maior capacidade em uma arma ecocida e, portanto, suicida. Como entidades biológicas que somos, nosso direito à sobrevivência e bem-estar depende tão imediatamente do sistema Terra quanto qualquer outra espécie. O direito humano é um caso particular do direito da natureza porque o homem é, ele mesmo, um caso particular, um elemento entre outros, da biosfera. A ideia de que as demais espécies se adaptam ao meio ambiente, ao passo que nós adaptamos o meio ambiente a nossas necessidades foi, ao menos parcialmente, verdade no passado. Já não é mais, porque não poderemos viver (e, antes de mais nada, não quereremos possivelmente viver) sem a beleza e a necessidade de outras espécies, sem corais, sem aves e peixes, sem os mamíferos, mesmo sem os insetos e, definitivamente, sem o fitoplâncton que gera metade do oxigênio da atmosfera. Não podemos viver sem polinizadores, chuvas regulares, água pura, solos biologicamente saudáveis e estabilidade do clima. Como milhões de outras espécies, não podemos viver sem florestas. A FAO proclama reiteradamente essa elementar verdade, enquanto o agronegócio as aniquila, suprimindo 15,3 bilhões de árvores por ano [8]. “A maior parte das mais de 40 mil espécies de árvores tropicais podem ser agora [2015] consideradas como globalmente ameaçadas de extinção” [9]. O relatório da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), que acaba de ser publicado, alerta que apenas 25% da superfície terrestre permanece não degradada por atividades econômicas e que apenas 10% permanecerá livre desses impactos até 2050, a nos mantermos escravos da lógica econômica da acumulação de capital. Segundo Robert Scholes, do IPBES, degradação ocorre “quando uma determinada região tem sua capacidade de sustentar a vida – humana ou não – persistentemente reduzida” [10]. Humana ou não: de há muito, a ciência já não reconhece um direito “natural” do homem a desobedecer às leis que regem os equilíbrios dos ecossistemas. Mas continuamos prisioneiros de uma concepção antropocêntrica de direitos humanos como se nossa própria existência não fosse uma simples extensão desses ecossistemas. Temos de obedecer ao mar, por exemplo, para sobreviver. O Objetivo 14 dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável afirma com elementar bom senso: “Os oceanos fazem a vida humana possível (…) Mesmo pessoas que vivem longe do mar não podem viver sem eles”. Estamos, portanto, atentando contra o primeiro dos direitos humanos, o direito à existência, quando liquidamos os cardumes, os corais e asfixiamos os oceanos com fertilizantes nitrogenados e com plástico. Num trabalho publicado na Science de 2015, Jenna R. Jambeck e seus colegas afirmam que “275 milhões de toneladas de lixo plástico foram gerados em 192 países banhados pelo mar em 2010; desse total, algo entre 4,8 e 12,7 milhões de toneladas entraram no oceano. [...] Sem melhorias na infraestrutura de manejo do lixo, a quantidade cumulativa de plástico disponível a entrar no oceano a partir da terra deve previsivelmente aumentar dez vezes em 2025” [11]. Ao longo do próximo decênio (2015-2025) acumular-se-ão no mar, afirmam os autores, mais 80 milhões de toneladas de plástico. O mar que, por causa do aquecimento global, começará a inundar as cidades costeiras nos próximos decênios será um mar sem peixes. Ele se terá transformado, em contrapartida, em depósito de lixo do capitalismo global, com dominância de plásticos, poluentes orgânicos persistentes (POPs), metais pesados, metilmercúrio, nitrogênio e resíduos sólidos urbanos (RSU).

Em conclusão, nossa sobrevivência como sociedade e provavelmente como espécie depende de nossa capacidade de abandonar de vez a concepção de direito humano baseada num pretenso direito natural (jus naturae) do homem sobre o sistema Terra, em proveito de uma concepção – inimaginável no capitalismo – de direito como res communis omnium, como coisa comum a todos, humanos e não humanos. O direito humano confinado no antropocentrismo é o obstáculo maior – jurídico, ideológico, político e epistemológico – à compreensão da posição, atualmente insustentável, do homem no sistema Terra. Se somos, como afirma a Declaração de 1948, dotados de consciência e razão, se somos Homo sapiens e não Homo exstinguens, então ainda podemos nos desviar de nossa atual trajetória de colapso socioambiental.

 

 

 


 

[1] Cf. Charles-Irénée Castel de Saint-Pierre, Projet pour rendre la paix perpétuelle; Immanuel Kant, Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht. "Berlinische Monatsschrift", Novembro de 1784, pp. 385-411 e Zum ewigen Frieden (1795).

[2] Cf. Louise Ridley, “The Holocaust’s forgotten victims: the 5 million non-jewish people killed by the nazis”. The Huffpost, 7/XII/2017.

[3] Cf. H.E. Beatty, “A note on the behavior of the chimpanzees”, Journal of Mammalogy, 32, 1951, p. 118; F.G. Merfield, Gorillas were my neighbours, Londres, 1956.

[4 ]Cf. Jane Goodall, “My life with the wild chimpanzees”, National Geographic, 1963; Idem, “Tool-Using and Aimed Throwing in a Community of Free-Living Chimpanzees”. Nature, 201, 28/III/1964.

[5] Cf. Culum Brown, “Fish intelligence, sentience and ethics”. Animal cognition, 18, 1, Janeiro, 2015, pp. 1-17.

[6] Cf. Richard Leakey & Roger Lewin, The Sixth Extinction. Biodiversity and its survival, Londres, 1995.

[7] Artigo 71 - “A Natureza, ou Pacha Mama, onde a vida se reproduz e ocorre, tem o direito a um respeito integral por sua existência e para a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estruturas, funcões e processos evolutivos. Todas as pessoas, comunidades, povos e nações podem convocar as autoridades públicas para a aplicação dos direitos da natureza”.

[8]  W. Crowther et al. (2015). “Mapping tree density at a global scale” Nature, 02 September 2015; Gerardo Ceballos, Paul H. Ehrlich, Rodolfo Dirzo, “Biological annihilation via the ongoing sixth mass extinction signaled by vertebrate population losses and declines”. Proceedings of the National Academy of Sciences, 10/VII/2017.

[9] Cf. Hans ter Steege et al. “Estimating the global conservation status of more than 15,000 Amazonian tree species”. Science Advances, 1, 10, 20/XI/2015.

[10] Citado por Karina Toledo, “Atividades humana já danificaram 75% da superfície terrestre”. Agência Fapesp, 26/III/2018.

[11] Cf. Jenna R. Jambeck et al., “Plastic waste inputs from land into the ocean”. Science, 347, 6223, 13/II/2015, pp. 768-771; Stéphane Foucart, “Le déversement des plastiques dans les océans pourrait decupler d’ici à dix ans”. Le Monde, 12/II/2015.

 

 

 

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