#Luís Renato Vedovato é doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA); pesquisador associado FAPESP do Observatório de Migrações em São Paulo; e autor do livro “Deve Haver” (2017).

Não é culpa da OTAN e não é uma guerra contra o Ocidente

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O fluxo de pessoas em busca de refúgio nas fronteiras da Ucrânia com Eslováquia, Polônia, Hungria e Moldávia, além da chegada de solicitantes de refúgio em países mais distantes, como Alemanha, França, Dinamarca, entre outros, é um claro sintoma de que a tragédia causada pela invasão da Rússia à Ucrânia afeta vida privada, o cotidiano e os planos de futuro das famílias. A crueldade da guerra chega ao mundo por imagens de grávidas feridas, famílias inteiras mortas ao tentarem fugir, crianças viajando sozinhas para escapar das bombas e jornalistas reportando a tensão e a tristeza de vidas perdidas ou, no mínimo, alteradas. Não há guerra mais cruel que outra. Todas são execráveis. Violações cometidas em outros conflitos, como no Iraque, no Afeganistão, no Vietnã, no Iêmen, na Líbia, na Síria, no Congo ou em Ruanda, apenas para citar alguns palcos de tragédias recentes, não torna a ação russa menos condenável.

Tão frequentes quanto as guerras é a busca pelos responsáveis e, não há dúvida nesse ponto, o responsável sempre é quem as inicia. Pode haver tergiversações, como é o caso de se dizer que a invasão da Ucrânia pela Rússia se deve ao avanço da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Ora, repise-se, isso é equivalente a culpar a vítima pelo estupro, e nem de longe seria um fundamento. Mas de onde vem essa suposta justificativa?

No início dos anos 1990, vários especialistas, como o diplomata e historiador norte-americano George Kennan (1904-2005), alertavam para o avanço da OTAN em direção às fronteiras da Rússia, afirmação que vem sendo repetida desde então como sendo verdade. Apesar disso, nada indica que os ataques de 2022 não aconteceriam, caso a OTAN tivesse permanecido do tamanho que tinha em 1991. Aliás, países que se vincularam à organização militar ocidental parecem menos preocupados com os avanços russos quando comparados àqueles que não fazem parte do pacto.

Então, o que explicaria a invasão? Desde o fim da União Soviética (URSS), a Rússia passou por crises econômicas e políticas, tendo conseguido estabilidade em ambos os campos a partir de meados dos anos 2000, depois de passar a fornecer petróleo e gás para o mundo, especialmente para a Europa. Em outras palavras, a economia deu fôlego à política.

Essa estabilidade veio ao mesmo tempo em que Putin se fortalecia no poder. Com tal fortalecimento veio a repressão à mídia. Logo em 2006, após a guerra que destruiu Grozny, na Chechênia, houve várias críticas dos meios de comunicação russos, especialmente por parte da jornalista Anna Stepanovna Politkovskaya. Há quem diga que seu homicídio, que se deu enquanto ela deixava seu apartamento em direção à redação do jornal Novaya Gazeta, está relacionado às suas investigações sobre as violações a direitos humanos durante o ataque determinado por Putin. De toda sorte, até hoje não se sabe quem foram os mandantes do crime, tendo sido presos apenas os executores.

Com uma economia baseada na venda de petróleo e gás, o Kremlin sentiu que poderia gerar na população uma percepção de prosperidade, deixando no passado o sentimento de fraqueza, com atraso de salários e incerteza inflacionária dos anos de Boris Ieltsin, fazendo voltar a esperança de que o poder russo retornava ao mundo, resgatado de uma era imperial longínqua ou da União Soviética, extinta mais recentemente. Em todo caso, o curto período democrático passou a ser confundido com os complicados primeiros anos após o esfacelamento soviético.

Ao lado dessa expansão, percebe-se a presença dos militares e das forças que poderiam fazer Putin se perpetuar no poder. Vale ressaltar que a ação militar na Síria colocou os militares em destaque no país. Aos poucos, portanto, o presidente russo fez que seus principais competidores saíssem de cena, valendo citar Garry Kasparov, Dimitri Medvedev, que substituiu o presidente por um curto período, além de Alexei Navalny, que hoje se encontra preso na Rússia, depois de passar por tratamento na Alemanha, por conta de um envenenamento de que teria sido vítima.

Além da censura à mídia, que se aprofundou nas últimas semanas, a difusão de informações falsas ganhou patamares mais elevados no país, fazendo que parte da população simplesmente não acredite na existência da guerra que destrói o país vizinho. Somando tudo isso, não há como se dizer que a culpa é da OTAN ou que é uma guerra contra o Ocidente. O que se configura é uma luta pela manutenção no poder internamente. O Ocidente é apenas mais uma desculpa.

Segundo Andrey Kurkov, escritor russo que mora há muitos anos na Ucrânia, Putin deseja deixar seu legado para o futuro do que ele chamaria de Grande Rússia que, para o ocupante do cargo mais alto do Kremlin, não teria fronteiras, assim como parece não ter sua sede por permanecer no cargo.

No fundo, trata-se de mais um ditador que se incomoda em ser contraditado. Se não fosse a OTAN, seria outro motivo, se não fosse o Ocidente, seria outro povo. O que o deixa em posição diferente de qualquer ditador que usa seu poder para violar direitos é o fato de possuir armas atômicas.

Superar esse momento é tarefa árdua. A escalada parece ser inevitável. Que de tudo isso fiquem duas certezas: 1. a importância da liberdade de imprensa para fazer correções de rotas em governos; e 2. a necessidade de foros globais coletivos para solução de disputas com base em direitos, que nos últimos anos tem sido demonizado sob o rótulo de "globalismo", mas que é a fórmula usada desde há muito tempo para diminuir as possibilidades de conflitos.

O cenário atual indica menos para uma solução coletiva e mais para um avanço no conflito, o que pode tornar a Ucrânia apenas a primeira trincheira dessa longa batalha.

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