Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

A Venezuela e o sequestro de Bolívar

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Ilustra: luppa Silva Em novembro de 1830, um mês antes de falecer, Bolívar registrou algumas conclusões sobre sua experiência histórica numa carta ao general Juan J. Flores. Dentre suas certezas estava a de que “quem serve a uma revolução ara no mar”. O desapontamento do libertador de parte da América do Sul era tão grande quanto havia sido a sua pretensão político-militar nas campanhas que produziram o fim do domínio colonial espanhol no início do século XIX.

Entre o entusiasmo e a decepção há uma constante: a visão do líder que seguia suas ideias e tinha pouco apreço pela realidade que o cercava. Sua visão de mundo parecia enquadrar as condições históricas e, num traço romântico e messiânico, queria dobrá-las às suas convicções. Simón Bolívar (1783-1830) é uma figura emblemática que ecoa paixões e construções políticas à direita e à esquerda.

O culto a Bolívar, tomando de empréstimo o título da obra publicada em 1969 pelo historiador Germán Carrera-Damas, ultrapassa as barreiras ideológicas. Os ciclos políticos na Venezuela, por exemplo, produziram uma instância histórica de legitimação de regimes a partir e em torno da figura de Bolívar: ora como herdeiro da ilustração e do liberalismo, ora como um porta-voz contra o imperialismo. Nessas operações, emergem uma visão heroica de um projeto histórico inacabado que flerta tanto com o ideal republicano quanto com o autoritarismo do poder vitalício para combater as divisões internas.

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Símon Bolívar e protesto em Caracas: na crise atual da Venezuela, silêncio em torno da figura histórica | Fotos: Reprodução | REUTERS Marco Bello

Com a ascensão de Hugo Chávez ao poder, em 1999, o fenômeno em torno do libertador adquiriu dimensão continental em torno de um suposto “bolivarianismo” ou da construção do socialismo do século XXI, a partir de alianças entre governos progressistas em diferentes pontos da América e do Caribe. O termo bolivarianismo não é suficientemente claro em seus significados e usos políticos, mas foi uma apropriação de Bolívar pelo governo de Caracas. Os opositores de Chávez, por sua vez, não podiam abrir mão da figura que seus antepassados políticos construíram em torno da história oficial venezuelana e da imagem de um governante forte representado pelo próprio Bolívar que, se necessário, usaria a violência para obter o que considerava ser o bem comum.

O modelo político venezuelano mimetizou os vários bolívares e suas facetas presentes na vasta produção discursiva e epistolar do prócer. Não existe um único Bolívar e, tampouco, uma perspectiva unívoca em torno de seu legado. Na crise recente da Venezuela, entretanto, observa-se um silêncio em torno de Bolívar. Tanto o governo de Nicolás Maduro como a oposição têm se enfrentado em um quadro que se assemelha a uma guerra civil, sem que a figura histórica esteja sendo reivindicada por nenhum dos grupos.

O agravamento da crise venezuelana e os impasses políticos mostram um quadro preocupante de violação de direitos humanos por parte de um governante que tem, cada vez mais, aspectos ditatoriais. A perseguição à oposição, as disputas entre os poderes constituídos e a corrosão da legitimidade governamental são cada vez mais visíveis. Os países vizinhos, envolvidos em suas turbulências internas, têm feito manifestações protocolares sobre a crise venezuelana. Os indícios de um desfecho parecem controversos após o assassinato de mais de 90 manifestantes desde abril de 2017 e a transferência para prisão domiciliar do opositor Leopoldo López, no início de julho.

A violência nas ruas, as divisões dentro do chavismo, a crise de abastecimento, o uso de milícias e as permanentes manifestações políticas indicam que o governo ainda se sustenta pela força e pela retórica do ataque ao projeto de soberania popular que ele representaria e, ao mesmo tempo, enfrenta o descontentamento crescente entre jovens universitários, a mídia e a classe média. O chavismo, com suas variadas consultas plebiscitárias, contribuiu para o esvaziamento da democracia representativa e foi exitoso enquanto havia prosperidade econômica, avanços sociais e a presença de uma liderança carismática como Hugo Chávez. Na ausência das mesmas condições, o atual regime político está em colapso.


Um processo de esvaziamento?

Os usos de Bolívar na disputa política venezuelana anterior ao contexto atual não são tão inquietantes quanto as estratégias que aparentam poupar o herói da independência. Para os historiadores os silêncios são mais eloquentes do que os discursos. O caráter histórico do tempo presente, tal como o passado, não produz sentidos únicos de interpretação e a possível concordância em grupos dicotômicos em torno de um silêncio quanto a Bolívar podem sugerir algumas interpretações.

À ampla exposição de Bolívar seguiu-se um esgotamento da imagem de um ser dotado de consciência histórica que tinha as respostas para os descaminhos vivenciados no passado e no presente? Ou a história seria ainda mais complexa e trágica se pensarmos que mais do que o próprio Bolívar, o que estaria em crise seriam os possíveis intérpretes do projeto político que melhor corresponderia aos impasses da vida política atual? Nesse caso, tanto no oficialismo como na oposição, a crise torna-se mais ampla pelas escassas alternativas de algum projeto que pudesse reconectar a Venezuela a alguma convergência.

Ou ainda podemos pensar que esse silêncio é apenas uma estratégia momentânea dos grupos em disputa com receio de qual Bolívar emergiria nesse cenário conturbado: o líder patriota tradicional ou o das releituras chavistas? 

Qualquer especulação indica que há uma espécie de sequestro de Bolívar e que, em algum momento, um grupo emergirá com uma proposta de resgate de simbolismos e discursos políticos que buscam uma filiação a um passado convertido em santuário.  O trágico, como adverte o próprio Bolívar na carta mencionada neste texto, será pensar que o poder pode cair em mãos de “pequenos tiranos quase imperceptíveis”. Esse será o risco permanente sempre que se pense em soluções messiânicas ou quando se ignore os anseios de justiça social para poder pensar algum princípio que podemos chamar de democrático.

Escolhas entre autoritarismo e exclusão social, não são escolhas, são fardos.

Talvez a questão esteja, ao fim e ao cabo, na necessidade de reavaliar as experiências e desmistificar sujeitos convertidos em divindades históricas. Figuras e processos históricos devem ser sempre questionados, problematizados, mas não catapultados à condição essencializada dos destinos de povos e sociedades. E, nesse caso, melhor seria que o velho Bolívar ficasse nas páginas e nas discussões historiográficas e menos no embate imediato da vida política venezuelana. A onipresença de Bolívar remete à pergunta e advertência do argentino Juan Bautista Alberdi (1810-1884) após a libertação do domínio espanhol: “quem nos libertará de nossos libertadores? ”

 

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