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Direitos Humanos e meio ambiente no sistema das Nações Unidas: quais princípios para uma justiça climática?

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Foto: DivulgaçãoRosana Icassatti Corazza é economista e doutora em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp. É professora do Instituto de Geociências, sendo responsável por disciplinas da graduação, em Geografia e Geologia, e da pós-graduação, no Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica (IG-Unicamp). Vice-coordenadora do LABTTS (Laboratório de Tecnologias e Transformações Sociais) e colaboradora do Grupo SocioEcoEconomia, conduz pesquisas e orientações na linha de pesquisa Economia Política Internacional dos Comuns e da Sustentabilidade.

 

Artigo III - “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”
(Declaração Universal dos Direitos Humanos)

 

De acordo com o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas sobre Direitos Humanos (OHCHR na sigla em inglês), o meio ambiente nunca foi especificamente mencionado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o que pode ser confirmado com uma apreciação do documento. Apesar disso, a relação entre Direitos Humanos e meio ambiente há muito tempo é reconhecida no sistema das Nações Unidas. Aparece na Declaração de Estocolmo, em 1972, e é reafirmada na Declaração do Rio, vinte anos mais tarde. A Comissão da ONU sobre Direitos Humanos adotou pela primeira vez em 1989 uma resolução chamada “Direitos Humanos e Meio Ambiente” para tratar dos problemas do trânsito internacional e da disposição de resíduos tóxicos e produtos e rejeitos perigosos. [I] Naquele ano, a Convenção da Basiléia, voltada ao Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito, sobretudo para evitar a transferência desses resíduos de países mais desenvolvidos para os menos desenvolvidos, foi aberta à assinatura pelas Partes. Até 2018, 185 países e a União Europeia (28 países) haviam assinado o documento. Estados Unidos e Haiti o assinaram, mas não ratificaram, o que significa que para esses países a Convenção não afetou suas ações políticas nacionais para o tema. Outras resoluções foram adotadas pelo sistema das Nações Unidas nos anos subsequentes, sendo que em 2002 as resoluções sobre meio ambiente e direitos humanos passam a ser, oficialmente, elementos do Desenvolvimento Sustentável. [II]

Atualmente, o OHCHR considera que, ao lado de dignidade e justiça, desenvolvimento, cultura, gênero e participação, o meio ambiente constitui um dos seis temas transversais dos direitos humanos. Tornou-se evidente que degradar o meio ambiente pode prejudicar os direitos das pessoas, próximas e distantes, a uma vida segura e saudável. [III]

Além dessa ampliação da dimensão ambiental dos direitos humanos na esfera internacional, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) nota que, em 2018, mais de uma centena de Constituições Nacionais incluíam direitos ambientais. [IV] Apesar disso, aponta que, tragicamente, esses direitos têm sido crescentemente violados. Os documentos Defenders Annual Reports, realizados com parcerias locais e internacionais pela Global Witness, projeto da Fundação britânica de mesmo nome fundada há 25 anos com o intuito de “proteger os Direitos Humanos e o meio ambiente pelo corajoso enfrentamento da corrupção e do desafio dos sistemas que a possibilita”, têm apurado no mundo todo situações em que ações vinculadas ao desenvolvimento dos mais variados setores (da agricultura à exploração florestal, da mineração à energia, passando por esquemas de corrupção, sonegação, lavagem de dinheiro, uso de contas bancárias em paraísos fiscais, dentre outras práticas) têm prejudicado direitos humanos de populações locais. [V]

Nos tratados internacionais, o direito ao meio ambiente saudável não aparece, normalmente, de forma explícita, mas costuma ser o resultado de direitos substantivos, mormente associados a direitos humanos, como “vida, alimento, saúde, habitação, desenvolvimento e autodeterminação”. O Acordo de Paris, documento que sela um novo acordo climático, em 2015, é exceção. O texto chama as Partes a promover suas respectivas obrigações em termos de direitos humanos, direito à saúde, direitos dos povos indígenas, comunidades locais, migrantes, crianças, pessoas com deficiências e povos em situações de vulnerabilidade e o direito ao desenvolvimento, bem como igualdade de gênero, empoderamento das mulheres e equidade intergeracional. [VI]

As formas pelas quais os direitos humanos podem ser afetados pelas mudanças climáticas são muitas. [VII]

O direito à vida pode ser afetado na ocorrência dos fenômenos previstos pelos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês)[VIII]: estima-se o aumento de óbitos e de pessoas feridas pela maior frequência e intensidade de inundações, tempestades, ondas de calor, incêndios e secas; esses fenômenos podem causar doenças respiratórias e gerar surtos ampliados de doenças tropicais transmitidas por insetos. Especialistas indicam que as transformações do clima devem afetar os quatro pilares da segurança alimentar – a disponibilidade, o acesso, a utilização e a estabilidade –, impactando negativamente a agricultura e, assim, afetando o direito à vida e ao alimento, pela fome e pela desnutrição, e ainda por desordens de crescimento e desenvolvimento de crianças. [IX]

O direito a uma habitação pode ser afetado de várias maneiras. Levando em conta que mais de 40% da população mundial se concentra em zonas que se estendem por poucas dezenas de quilômetros das linhas costeiras, o esperado aumento do nível do mar pode ter efeitos dramáticos, com desabrigados, deslocamentos populacionais dentro e entre fronteiras nacionais.

O direito à água também pode ser afetado dramaticamente pelas mudanças climáticas, a se julgar pela previsão de redução da disponibilidade de águas superficiais e de aqüíferos nas áreas subtropicais mais secas do planeta. As previsões incluem redução de 30% no escoamento superficial anual de água na Bacia do Mediterrâneo, no Sul da África e na América do Sul no cenário de aquecimento de 2ºC, e de 40% a 50% no cenário de aquecimento de 4ºC.

Pesquisas realizadas pela Organização Mundial da Saúde estimam que as mudanças climáticas já são responsáveis por 150 mil mortes anuais, desde 1970, por causa de uma maior incidência da já mencionada desnutrição, da diarreia e da malária.

Especialistas têm notado que muitas “perdas e danos” – como são os casos das restrições aos direitos mencionadas – devem atingir de forma mais dramática populações vulneráveis de regiões subdesenvolvidas na África, na Ásia e na América Latina. Isso contrasta com o fato de que os 10% mais ricos da população mundial, apropriando-se dos benefícios da “petroprosperidade”, são responsáveis pela metade das emissões globais, enquanto que a metade mais pobre responde por não mais de 10% das emissões. [X] Triste coincidência: são justamente os povos e regiões que historicamente pouco se beneficiaram dos padrões de desenvolvimento fóssil-intensivos, padrões que estão na origem das mudanças climáticas.

É curioso que, hoje, em iniciativas de governança global do clima, que vão além das negociações entre países nas sucessivas Conferências das Partes sobre o tema, e que envolvem cidades, compactos de empresas, redes de cidades, ONGs e outros atores não governamentais, muito se fale no Orçamento Global de Carbono. Uma espécie de “recurso comum global”, que contabiliza a quantidade de atmosfera que ainda pode receber gases de efeito estufa sem levar nossa civilização para além dos desastrosos 2oC de aquecimento do planeta até o final deste século. Para além dos variados fora de negociação, esse recurso está sendo, enquanto você lê esta matéria, continua e desigualmente apropriado. Pelas empresas, cimenteiras e petrolíferas no topo da lista, que emitem esses gases; pelos países que fomentam e se beneficiam dos investimentos fóssil-intensivos; pelo consumo energo-intensivo de populações afluentes, em países ricos e pelas elites de países desiguais.

Até o ano de 1990, a apropriação desigual do orçamento global de carbono era compreendida mais ou menos assim: os países mais ricos, de industrialização originária e avançada e as economias “em transição” (dentre os quais, Inglaterra, Estados Unidos, o antigo bloco soviético, Japão e a Europa Ocidental), eram responsáveis por cerca de 80% das emissões, detinha 80% do PIB mundial, partilhado por cerca de 20% da população do planeta. De forma correspondente, no resto do mundo, 80% da população detinha cerca de 20% do PIB mundial (mal distribuído, não é demais recordar) e era responsável por 20% das emissões globais. O Protocolo de Quioto era o quadro que regia, de forma ineficaz, é verdade, a governança global do clima neste cenário de apropriação histórica desigual do Orçamento Global de Carbono. Isso se dava pela atribuição àquele conjunto de países, agrupados no Anexo I do Protocolo, de responsabilidades obrigatórias de mitigação, de transferência de tecnologia e de financiamento da busca por energias renováveis e tecnologias limpas para um futuro de baixo carbono. Um dos princípios que governava essa estrutura do regime internacional do Protocolo de Quioto era o Princípio das Responsabilidades Históricas. Uma sugestão brasileira, aliás, à arquitetura do Protocolo.

Hoje, no âmbito do Acordo de Paris, não há mais metas obrigatórias. Numa abordagem “de baixo para cima”, os países puderam apresentar suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs na sigla em inglês). Essa “horizontalidade” em termos de responsabilidades reflete, é certo, a mudança do perfil de emissões de países que, como Brasil e China, despontaram no início do milênio como grandes emissores globais. Por outro lado, não se contabilizam as emissões embutidas no consumo: muito das emissões chinesas associadas à manufatura e das brasileiras associadas à produção agropecuária estão embutidas em exportações que alimentam padrões de consumo de outras partes do globo. E ainda: a contabilidade oficial sobre as emissões também não rastreia ou torna explícita a origem corporativa dessas emissões. Há estudos sobre esse tema e, apenas para que se tenha uma pequena ideia de sua relevância em termos de emissões corporativas e globais, um relatório recente do Climate Accountability Institute, identificou apenas 100 empresas foram fonte de mais de 70% das emissões globais de gases de efeito estufa desde 1988. [XI]

Em 2015, por ocasião dos trabalhos preparatórios para a COP 21 em Paris, o OHCHR enviou ao Secretariado da Convenção, um documento com “mensagens chave” sobre Direitos Humanos e Mudanças Climáticas, alertando, entre outras coisas, para a necessidade de enfatizar obrigações e responsabilidades essenciais não apenas dos Estados, mas de outros “portadores de deveres”, incluindo as corporações. [XII] Não sem razão: as corporações têm sido atores conspicuamente ausentes de quaisquer arenas internacionais em que se discutam medidas de caráter obrigatório para o enfrentamento das mudanças climáticas, sobretudo em se pensando em medidas de adaptação e de compensações para perdas e danos de populações vulneráveis. E de fato essa ausência é uma contradição com a noção de que a “agência” – a atribuição da ação sobre o problema – deve acompanhar a capacidade para agir. Também contradiz o Princípio das Responsabilidades Comuns, porém Diferenciadas (segundo as capacidades para agir), aplicado a países no âmbito das negociações climáticas. Ora, se os domínios da produção e das possibilidades técnicas estão, sobretudo, nas mãos das corporações, não haveria que se apontar para elas um espaço maior na estrutura das responsabilidades e da agência climática? Não me refiro aqui, evidentemente a ações voluntárias, que sobejam em nossos dias e cuja transparência e efetividade estão sujeitas a uma lógica, digamos, própria. Somando todas as metas – NDCs, as das redes de cidades e as voluntárias corporativas – o planeta esgotará seu orçamento de carbono em menos de três décadas, de acordo com o mais recente relatório “Gap de Emissões”, do PNUMA, que alerta que é preciso agir de forma mais ambiciosa. [XIII]

Recentemente, tivemos repactuadas as regras, as estruturas e as metas do regime climático internacional. Neste momento, parece que falta refazer uma reflexão mais profunda sobre a que vem tudo isso, afinal de contas. O acordo climático me parece uma espécie de epítome de nossos tempos. Ali parece se encontrar a dissensão entre, de um lado, aquilo em que dizemos crer e aquilo que dizemos querer para nosso futuro e, de outro, nossa prática contumaz. O contraste entre os princípios da solidariedade, da igualdade e da responsabilidade e a primazia de uma desatinada e desmedida fruição do presente, a qualquer custo.

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[I] OKEREKE, Chukwumerije. Global justice and neoliberal environmental governance: ethics, sustainable development and international co-operation. Routledge, 2007.

[II] KNOX, John H. Human Rights, Environmental Protection, and the Sustainable Development Goals. Washington International Law Journal Association, 2015, 20 pp.

[III] Resolução 16/11, do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Disponível em: https://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/16session/A.HRC.RES.16.11_en.pdf. Consultado em maio de 2018.

[IV] Informações disponíveis na página da Iniciativa de Direitos Ambientais do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Disponível em: https://www.unenvironment.org/explore-topics/environmental-rights-and-governance/what-we-do/advancing-environmental-rights. Consultado em maio de 2018.

[V] Os relatórios estão disponíveis a partir do ano de 2004 em: https://www.globalwitness.org/en-gb/about-us/annual-reviews/. Consultado em agosto de 2018.

[VI] Texto do Acordo de Paris disponível em: https://unfccc.int/sites/default/files/resource/docs/2015/cop21/eng/l09r01.pdf. Consultado em abril de 2018.

[VII] Um conjunto abrangente de documentos de relevância para esses assuntos podem ser encontrados em: https://www.ohchr.org/EN/Issues/HRAndClimateChange/Pages/RightHealth.aspx. Consultado em agosto de 2018.

[VIII] Os relatórios do IPCC, ao lado de outros documentos do Painel, podem ser encontrados em: http://www.ipcc.ch/

[IX] Uma apresentação sumária do tema pode ser encontrada em: http://library.fes.de/pdf-files/bueros/ghana/10518.pdf. Consultado em abril de 2016.

[X] O relatório da Oxfam, no qual essas e outras informações e análises podem ser encontrados está acessível em: https://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/file_attachments/mb-extreme-carbon-inequality-021215-en.pdf. Consultado em maio de 2018.

[XI] O último relatório do Instituto pode ser encontrado em: http://www.climateaccountability.org/pdf/CarbonMajorsRpt2017%20Jul17.pdf. Consultado em novembro de 2017.

[XII] Texto do documento da OHCHR, intitulado Understanding Human Rights and Climate Change, submetido à COP 21, em Paris,  27 November 2015. Disponível em https://www.ohchr.org/Documents/Issues/ClimateChange/COP21.pdf, consultado em 10 de setembro de 2018.

[XIII] UNEP (2017). The Emissions Gap Report 2017. United Nations Environment Programme (UNEP), Nairobi. Disponível em: https://wedocs.unep.org/bitstream/handle/20.500.11822/22070/EGR_2017.pdf?isAllowed=y&sequence=1. Consultado em abril de 2018.

 

 

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